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C ENA 2: A Q UEDA

T ERCEIRO I NQUÉRITO

O terceiro inquérito foi enxertado ao texto após nosso desejo de incorporar em BadenBaden a “Canção da Mercadoria”, oriundo de outra peça didática, A Decisão. Nossa proposta foi então que a letra dessa canção, já anteriormente citada, fosse transformada em um funk.

Essa ideia surgiu como reação ao próprio tema da música: a transformação do homem em mercadoria, conforme seu verso inal: “eu não sei o que é um homem, eu só sei qual é o seu preço”. Essa relação é levada ao extremo quando vemos, diariamente, o destaque dado a um determinado tipo de exploração comercial do corpo da mulher, bastante comum no universo do funk carioca, que são as “mulheres-fruta”. A Mulher-Melancia, a Mulher-Pera, a Mulher Melão e toda a sucessão de mulheres-fruta ofereciam um caminho a explorar na nossa tentativa de ressaltar um aspecto necessário à discussão proposta pelos inquéritos, ou seja, se o homem ajuda o homem.

Ao mesmo tempo, seria uma oportunidade de explorarmos uma cena que nos permitisse testar as relexões postas por Brecht no que tange o uso da música em cena, nos efeitos que a canção pode atingir em termos de estranhamento e de diálogo com o público. Nosso maior problema, uma vez resolvida a criação da música (uma parceria estabelecida entre a acadêmica Luísa Bresolin e o aluno do curso de música Bernardo Flesch, em processo já mencionado anteriormente), era o modo com que exploraríamos esse universo coreográico sem utilizar os elementos que desejávamos criticar. Assim, Luísa descreve o processo que desenvolveu a coreograia para o “Funk da Mercadoria”:

A cena do funk começou com a composição da letra e da batida, como explicado anteriormente. Houve e-mails, reuniões e discussão das possibilidades de solução para a cena. Carne podre, vitrines, reprodução de estúdio, cocares e coreograias complexas foram ideias cogitadas até a coreograia inal. Criávamos, apresentávamos para o grupo ou só para o Vicente e ele fazia as considerações. A inspiração crucial foi dada pela colega de turma, Vanessa, que nos mostrou um vídeo com uma cena no ilme Cabaret, com coreograias de Bob Fosse, que trazia dançarinas com rostos desinteressados. O tempo todo eu estava preocupada em propor um estilo coreográico que fosse estranho ao funk, para impedir a banalização da cena. O que eu menos queria era que as atrizes se tornassem três objetos “rebolantes” ao som de um funk. Uma bela tarde, numa semana cheia de ensaios, liguei o som alto, improvisei alguns movimentos e perguntei ao professor de tecido que estava na sala: Marlon, estou querendo fazer uma coreograia mais ou menos assim (executando os movimentos), alguma ideia? Ele respondeu: “Mas isso já está ótimo!” A Mirella, que já havia participado de alguns encontros e ensaios, construiu comigo a coreograia, que foi acrescentada às marcações antes desenvolvidas e, enim... Ficou pronta a cena.

Sobre esta cena, a professora e pesquisadora Vera Lucia Bertoni dos Santos, que realizou apreciação do espetáculo no Festival Estudantil de Teatro, em Belo Horizonte, em outubro de 2012, fez o seguinte comentário:

A segunda cena que me chama atenção é a cena do “Funk da Mercadoria”. Que a mim surpreendeu positivamente, logo de início, pela precisão do gesto das atrizes, depois pelo conteúdo que ela relete, a contundência, mas principalmente pela quebra, pela recusa do que se espera do funk. O funk não se apresenta como um recurso facilitador, como elemento de ligação imediata com o espectador, de apreensão direta; ao contrário, nega a si mesmo.

Essa apreciação pode ser complementada pela menção feita pelo professor Mencarelli, que estabelece relações entre esse inquérito e o anterior:

Ainda na sequência das primeiras cenas internas fundem-se novamente elementos que agora evocam uma forma de teatro performativo, em um arco que vai dos tradicionais recursos do distanciamento/ estranhamento, como o texto coral, o número musical até a estranha composição de jogos humano-animais que pretendem evocar a pergunta “O Homem ajuda o Homem?”.

Essa resposta formal à incrível atualidade da peça de Brecht no Brasil atual traz um sopro de espírito rock que evoca uma linha reversa até os cabarés dos anos 20 em que Brecht também se formou. As evocações no corpo do texto a casos como o dos Nardoni, assim como a musicalidade funkeira, trazem mais vivas ainda as discussões sobre a conduta de corporação que foi impregnando nossos cotidianos e apontam com o dedo rijo a dor da violência em atacado e varejo. Bom ver Brecht a serviço de politizar os olhares levando- os também em direção à cisão de onde emerge a violência banalizada. A profundidade da crítica vívida de Brecht nesta peça faz um corte ainda mais vertical do social ao indivíduo, cobrando a atitude do Homem diante da pergunta: aquele de nós que morre abandona o que?

Nesses dois comentários, a ação sobre o modelo, a atualização do discurso da peça através de proposições que ressaltem elementos contemporâneos, mas ainda fazendo valer a pertinência das discussões que Brecht propôs em ins da década de 20, constituem a própria linguagem do espetáculo, nas suas intenções poéticas.

Vale ressaltar que cada um dos Inquéritos acontece em espaço diferente, o que obriga o público a se movimentar para assisti-los. Ou seja, mesmo sentando em uma cadeira diante de cada cena, ele não permanecerá acomodado até a hora em que uma forma deinitiva é proposta, o que só vai acontecer na sétima cena do espetáculo.