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IMITAÇÃO E O MODELO DE AÇÃO

S ETE V EZES S ENHOR S CHMITT

Todas as cenas aqui descritas e analisadas propõem um conceito de encenação, um discurso autoral do ponto de vista da direção em relação ao texto dramático, mesmo que essa direção não seja encabeçada por um dos integrantes do grupo. As sete cenas apresentadas tendo o Terceiro Inquérito como modelo de ação exploraram possibilidades de ressigniicação do texto diante de distintas sugestões de encenação. Assim, surgiram propostas diferentes à igura do Sr. Schmitt e aos dois palhaços, que foram inseridos em contextos especíicos, cada qual potencializando determinados aspectos do texto.

Nas cenas acima analisadas, os atores não tinham a obrigação de decorar suas falas, portanto muitos as izeram com texto na mão, o que resultou em um tipo de interpretação que ampliava, de maneira não intencional, o potencial do jogo na atuação e destacava a relação crítica do ator com seu papel.

Muitas cenas trouxeram propostas de intervenções sonoras distintas, sobretudo para enfatizar momentos importantes, principalmente quando aconteciam as amputações. Além disso, os grupos compreenderam a relevância em construir um universo visual (igurinos e adereços) que revelasse suas intenções a respeito do texto, buscando o estabelecimento de uma comunicação clara sobre seu ponto de vista para o público.

Nesse sentido, cabe destacar o fato de que o exercício realizado por todos os grupos constitui um aprendizado do próprio ato de encenar. Não só quando os integrantes discutem entre si quais ideias pretendem comunicar para uma audiência, elaborando formas e estratégias para construir uma cena que formalize essas intenções, mas também quando todos os integrantes do processo podem estabelecer comparações a partir das formas díspares que emergiram em cada grupo tendo como base o mesmo fragmento de texto. Em ambos os casos, consolida-se um aprendizado prático que só a experiência de “colocar em cena” pode oferecer.

Por isso, o protocolo da jogadora Luíza Souto, na sua abrangência relexiva, demonstra o quanto a proposta da ação sobre o modelo é capaz de produzir um processo que amplia o universo de referências, conforme defendia o próprio Brecht em seus textos em defesa dos livros-modelo. Ela airma:

A primeira sequência de apresentações deixou perplexos todos nós. A criatividade no uso de diferentes linguagens e símbolos nos propiciou cada vez mais questionamentos sobre vários dos elementos da peça. A subjetividade nos possibilitou ir além da mera reprodução daquilo que o texto sugere, então descobrimos, ali, que os textos da peça didática

funcionam como modelos para experimentos que investigam, através da imitação e da improvisação, as relações entre os homens, servindo como um modelo de ação. Foi a prova de que podemos investigar, selecionar um ou outro aspecto, salientar, sugerir, explorar relações contraditórias, trabalhar com a tragédia e a comédia, aproximar ou afastar as relações do nosso cotidiano, tudo isso com o mesmo texto de uma peça. O enredo está ali. Os recursos e a forma como vamos utilizar depende de nós. Tivemos várias ideias diferentes nas cenas de cada grupo, como, por exemplo, a utilização de vodus, bonecos manipulados (inclusive uma marionete humana) e teatro de sombras simbolizando o Sr. Schmitt e a perda dos seus “membros”; aproximações com momentos que estamos vivendo, como as eleições; e abstrações que provocavam a quebra da lógica, um verdadeiro estranhamento, e que sugeria milhares de representações ao mesmo tempo. O interessante desse tipo de peça é que não há só uma forma de mostrar, não há só um im. Ela é polivalente, repleta de simbolismos e sentidos. O gestus apareceu tanto de forma direta, na gestualidade da cena, como por meio de signos, presentes no texto (falado e/ou materializado em cartazes e projeções), no igurino, no cenário, na música...

Depois fomos polindo a cena, com outras apresentações, após ouvirmos as críticas e conselhos dos demais. E, a cada nova experiência, apareciam novos aspectos que traziam melhorias tanto na sua estética quanto nas relações entre os personagens.

Na apresentação inal, agora com uma plateia, tínhamos um dilema: os espectadores se cansariam de ver a mesma cena repetida por sete vezes? Mas após o término e com a discussão sobre os efeitos das apresentações percebemos que a cena não era a mesma. O texto permanecia igual, mas as cenas haviam se tornado tão distintas em relação ao espaço, aos recursos e às linguagens utilizadas, que alguns espectadores só se deram conta de que o texto era o mesmo após a terceira cena.

Acredito que trabalhar com esses fragmentos da vivência e experiência individual e ao mesmo tempo coletiva é capaz de fornecer às pessoas uma oportunidade de se reencontrarem consigo mesmas, de refletirem e questionarem o que lhes é imposto como normal. E que não somente nós, atores, como também os que “assistiram”, tiveram alguma transformação no modo de enxergar a peça didática e as relações entre os seres humanos.

Vale ressaltar que durante todo esse trabalho com a peça didática, nós, alunos, tivemos vivências e jogos que foram essenciais para iniciar esse processo que nos levou ao ato artístico coletivo proposto por Brecht, uma vez que eles contêm gestos, expressões e relações que servem de modelo de ação. Termos como esses, aqui destacados, bem como o estranhamento e o gestus, utilizados por este autor, foram mais bem compreendidos após

as práticas, nas quais obtivemos elementos e questionamentos vindos da nossa própria experiência. Conforme vivenciávamos, compreendíamos o que eles signiicavam. Assim, aquilo que parecia ser um bicho-de- sete-cabeças nas primeiras aulas, transformou-se em sete belas cenas, despertando o nosso interesse e a nossa relexão.

O estabelecimento de uma práxis que constrói comparações, que aprofunda e interroga os sentidos de cada signo proposto e que escava as possibilidades cênicas presentes no texto é parte essencial da formação de futuros professores de teatro, sempre solicitados a construir exercícios cênicos junto a seus grupos de alunos.

Ao encarar um texto como modelo de ação, explicitando a diiculdade de manter o discurso do autor, quando na verdade o discurso da cena pretende enfatizar outros aspectos, abre-se espaço para uma pedagogia do teatro que inca raízes na cena contemporânea e nas formas mais instigantes do fazer teatral atual. Brecht, de certa forma, já antevia a diluição do discurso do autor no discurso do grupo que compõe a cena.

Ao propor que os textos de suas peças didáticas sofressem constantes reescrituras pelos grupos de atuantes, ele ofereceu a elas a possibilidade de serem atuais, porque imperfeitas e abertas à constituição de uma solidez urdida no trabalho coletivo, realizado na atualidade do processo, e não em reverência ao modelo. Por isso, as palavras “modelo” e “ação” seguem juntas na prática com a peça didática de Brecht.

BADENBADEN