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Esquema 3: A ação didática

4 OS GÊNEROS E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

4.1 BAKHTIN E OS ESTUDOS SOBRE GÊNEROS

A noção de gênero em Bakhtin tem ocupado um lugar de destaque na pauta dos estudos linguísticos contemporâneos. Entretanto, para compreender melhor a perspectiva bakhtiniana acerca dos gêneros do discurso, precisamos remontar à Antiguidade Clássica, de forma mais específica, à categorização empreendida por Aristóteles sobre a natureza retórica do discurso, a qual está estreitamente ligada à história da teoria dos gêneros literários.

No livro Arte Retórica e Arte Poética (1959), Aristóteles nos apresenta três elementos básicos constitutivos do funcionamento discursivo: o falante (aquele que fala), o conteúdo ou assunto (aquilo sobre o que se fala) e o ouvinte (aquele a quem se fala). É também nesta obra que podemos encontrar o primeiro agrupamento de gêneros do discurso, o qual considera três macro categorias, a saber: o discurso

deliberativo, o discurso judiciário e o discurso demonstrativo (epidítico). O primeiro

volta-se ao processo de convencimento, de persuasão, com vistas à tomada de decisão sobre fatos que ainda estão por vir. Já o discurso judiciário tem a função de julgar, avaliar, posicionar-se em relação a fatos passados e, por fim, o demonstrativo compreende a apreciação ou valoração de fatos recentes.

Essa distinção confere traços específicos a cada gênero, cuja composição irá depender do público ao qual se destina. Este, por sua vez, poderá ser juiz, ao se posicionar a respeito de fatos já ocorridos; membro da assembleia, ao deliberar acerca de ações futuras; ou mero espectador, quando apenas se pronuncia sobre ações presentes (ARISTÓTELES,1959).

É também Aristóteles quem depois esboça uma teoria sobre a origem dos gêneros literários. Partindo da ideia de Platão de que todos os textos literários são uma narrativa ou mímese de acontecimentos, esse filósofo vem propor a divisão clássica entre epopéia, tragédia e comédia. Essas narrativas, contudo, tinham uma preocupação meramente estética e fomentavam a criação de um “mundo extraordinário”. Nesse sentido, caracterizavam-se muito mais por seu acabamento formal e pouco correspondiam ao contexto social e real do homem grego. A

demasiada preocupação com a composição provocou o esvaziamento do conteúdo social dos gêneros literários, redirecionando o foco de análise para a questão estética e formal dos gêneros. Essa visão aristotélica ganhou fôlego e foi amplamente difundida na Idade Média (MARCUSCHI, 2008), permanecendo praticamente intocável até meados do século XX, quando o filósofo russo Mikhail Bakhtin inaugura um novo paradigma de estudo dos gêneros, incorporando elementos do mundo ordinário e do cotidiano aos gêneros literários.

Na coletânea póstuma de escritos bakhtinianos, intitulada Estética da Criação

Verbal (1979), são recuperados os manuscritos de Bakhtin produzidos na década de

1920, que já revelavam a preocupação do autor em aproximar a prosa literária do mundo real. Para dar conta desse projeto, Bakhtin escolheu o romance como objeto de análise não pelo fato de ele ser ele o gênero de maior prestígio na cultura letrada, mas pela própria natureza inacabada desse gênero. Foi no romance que Bakhtin encontrou espaço para desvelar o entrecruzamento de múltiplas vozes vivas, por muito tempo ocultadas, aproximando, por conseguinte, a obra literária do conteúdo social e ideológico de um determinado contexto histórico e cultural por meio da linguagem.

Tomando como contraponto inicial a concepção saussuriana de língua enquanto sistema abstrato de signos, Bakhtin lança assim um novo olhar sobre o estudo da língua, ao sugerir uma perspectiva analítica que tenha como ponto de partida o contexto de realização linguística em suas dimensões culturais, sociais e ideológicas. Ou seja, para este autor, a língua deve ser concebida como prática social, ou seja, uma forma de ação historicamente situada e, portanto, de caráter ideológico e dinâmico.

Sob esse viés, o estudo da língua precisa ser pautado em contextos de ações socialmente orientadas entre dois ou mais indivíduos, ou seja, nos usos sociais das formas linguísticas em que os interlocutores assumem um papel importante, uma vez que é através da interação com o outro, em um dado contexto enunciativo e ideológico, que o indivíduo se constitui historicamente como sujeito do dizer e do fazer. Assim, é na atividade humana que a língua efetivamente se realiza por meio de estruturas comunicativas que, por sua vez, se configurarão em formas padrões relativamente estáveis de um enunciado, as quais são denominadas de gêneros (BAKHTIN, 2003).

As diferentes esferas da vida social comportam uma infinita gama de gêneros, cujas “formas são mais maleáveis, mais plásticas, e mais livres do que as formas da língua” (BAKHTIN, 2003, p.302). Esses gêneros são produzidos e/ou reelaborados a fim de atender a determinados propósitos comunicativos, tornando impossível a elaboração de uma tipologia ou a realização de um levantamento quantitativo de suas ocorrências. Sendo assim, considerando os modos de organização e de realização dos gêneros na vida social, Bakhtin vai propor um novo agrupamento dos gêneros em primários e secundários.

Os gêneros primários, segundo ele, contemplariam aqueles oriundos de situações mais corriqueiras da vida cotidiana, enquanto que os secundários equivalem aos que se realizam em situações de comunicação mais complexas ou formais e que requerem uma linguagem mais elaborada. Ainda de acordo com Bakhtin, o processo de formação dos gêneros secundários passa pela incorporação e consequente reelaboração dos gêneros primários, os quais perdem sua interface direta com o mundo social, passando a atender a propósitos comunicativos mais complexos.

É importante destacar aqui que, segundo Bakhtin, a produção dessas formas relativamente estáveis de enunciado é regulada por condições histórico-culturais e ideológicas que dão forma ao gênero em uma determinada situação de interlocução, seja em relação à sua construção composicional, ao seu conteúdo temático ou ao seu estilo de linguagem (BAKHTIN, 2003). A composição do gênero refere-se à sua organização interna do enunciado, à sua estrutura e ao seu acabamento formal. Já o conteúdo temático pode contemplar assuntos variados, a depender de algumas variáveis, tais como a esfera discursiva em que o gênero se realiza, os interlocutores envolvidos e os objetivos comunicativos pretendidos. Por fim, o estilo refere-se aos processos de seleção lexical e de estruturas gramaticais implicados na constituição do gênero.

Bakhtin (2003) alerta para o fato de que a observância da questão do estilo requer cautela, uma vez que, em dada esfera de circulação, alguns gêneros podem ser mais reveladores das marcas do estilo individual do que outros. É o caso, por exemplo, dos gêneros literários, em que a subjetividade é um elemento típico desse lugar discursivo. Já nos gêneros vinculados à comunicação cotidiana, o estilo é mais marcado por condições específicas de cada contexto de produção. Assim:

uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis (BAKHTIN, 2003, p.266).

Em síntese, a noção de gênero discursivo proposta por Bakhtin é, de fato, um divisor de águas nos estudos sobre gêneros, uma vez que foi ele o primeiro a conceber o gênero como um artefato sócio-histórico e cultural da atividade humana. Tomando como base os postulados bakhtinianos, outras teorias sobre gênero foram se constituindo ao longo dos anos, com enfoques teórico-metodológicos bastante distintos. Considerando os objetivos propostos para este estudo, focalizaremos apenas a relação entre gêneros e ensino na Escola de Genebra, por ancorar-se nos pressupostos teórico-metodológicos do ISD e pela reconhecida influência no contexto de ensino brasileiro.