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Esquema 3: A ação didática

5 OS GÊNEROS NO CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA DA

5.1 A BASE CURRICULAR COMUM

A Base Curricular Comum para as Redes Públicas de ensino do Estado de Pernambuco (BCC-PE) resultou de uma necessidade de colocar as políticas públicas de educação e avaliação do estado de Pernambuco em sintonia com os dispositivos educacionais legais e as orientações curriculares nacionais. Portanto, trata-se, como o próprio nome já diz, de uma base, ou seja, de um documento de referência a partir do qual as redes públicas de ensino do estado de Pernambuco, considerando as especificidades locais, devem elaborar suas próprias propostas

curriculares. No que concerne ao ensino de Língua Portuguesa, a BCC-PE tem como objetivo reorientar o fazer pedagógico nas redes públicas do estado a partir de um currículo único, construído por competências e habilidades. Assim, pretendemos, neste subtópico, discutir acerca da relação ensino e currículo no estado de Pernambuco com base nos estudos de Lima (2010) e Nóbrega e Suassuna (2014).

O processo de elaboração da BCC-PE ocorreu entre os anos de 2004 e 2008 e contou com a participação de diferentes segmentos sociais, direta ou indiretamente envolvidos com o sistema educacional local, a saber: representantes da União de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), Secretaria Estadual de Educação (SEE), Conselho Estadual de Educação (CEE), Associação Municipal de Pernambuco (AMUPE) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), além de professores das redes públicas de ensino de Pernambuco e consultores de Instituições de Ensino Superior (IES). A sistemática de trabalho para elaboração do documento contemplou a realização de várias reuniões e seminários, com a participação efetiva de todos os segmentos implicados no processo (LIMA, 2010).

Em relação ao aspecto pedagógico, a BCC-PE foi elaborada com o objetivo de reorientar as práticas de ensino nas redes públicas do estado de Pernambuco a partir de um currículo único, construído por competências e habilidades. Ademais, havia a necessidade de alinhar as políticas públicas de avaliação educacional do estado de Pernambuco com os documentos curriculares e avaliações em larga escala nos âmbitos estadual e nacional. Assim:

A BCC está atrelada à política de avaliação institucional das redes públicas de Pernambuco, conhecida como SAEPE (Sistema de Avaliação Educacional do Estado de Pernambuco), que inclui os municípios, num esforço conjunto de melhoria da qualidade da educação. Foi exatamente a realização dessa política de avaliação que gerou a necessidade de uma base comum que pudesse orientar a elaboração dos testes com um mínimo de uniformidade e confiabilidade, uma vez que a diversidade de currículos do estado e dos municípios se constituía num elemento dificultador (NÓBREGA e SUASSUNA, 2014, p.927).

Uma pesquisa realizada por Lima (2010), que teve como um dos objetivos investigar as orientações sobre o ensino de gêneros na BCC-PE, mapeou alguns

princípios sobre o ensino de língua subjacentes ao referido documento, em especial, no que se refere à concepção de língua, texto e gênero.

No que concerne à noção de língua, a pesquisadora constatou que a BCC- PE assume uma perspectiva sociointeracionista e discursiva da linguagem, uma vez que os princípios defendidos pelo documento “se aproximam da compreensão bakhtiniana de língua como interação verbal” (LIMA, 2010, p.177). Isso implica uma visão de língua como elemento vinculado à esfera social e, por essa razão, só pode ser analisada em contextos de ações socialmente orientadas entre dois ou mais indivíduos. Tal perspectiva pressupõe um ensino de língua materna pautado nos usos sociais das formas linguísticas em que os interlocutores assumem um papel importante, uma vez que é através da interação com o outro em um dado contexto enunciativo e ideológico que o indivíduo se constitui historicamente como sujeito do dizer e do fazer.

Sobre o trabalho com textos na sala de aula, a autora observou que, para a BCC-PE, “o texto surge como resposta a uma situação específica de interlocução” (LIMA, 2010, p.119). Nesse sentido, a compreensão desse documento acerca do trabalho com textos orais e escritos na escola é a de que professores e alunos precisam levar em consideração as condições de produção que, por sua vez, definirão o gênero a ser produzido, bem como a definição do suporte em que o texto será veiculado. O mesmo vale para a leitura, uma vez que os textos não podem ser compreendidos fora do contexto social, histórico e cultural em que foram produzidos.

Já em relação à categoria gênero, um mapeamento realizado pela pesquisadora acerca das ocorrências da palavra “gênero” na BCC-PE identificou dezesseis ocorrências do termo ao longo do documento, sendo que “em dez situações, essa palavra vem associada aos termos ‘variedade’, ‘diferente’ ou ‘diversidade’ distribuídos nas seções ‘princípios orientadores’ e ‘competências e saberes’” (p.131). Isso evidenciou, a priori, a importância que o documento atribui à necessidade de a aula de língua portuguesa contemplar uma gama variada de textos pertencentes a diferentes esferas sociais de circulação. Ao analisar melhor essas ocorrências, a pesquisadora verificou ainda que “o documento indica uma compreensão de que os textos se materializam nos gêneros, [...]” (p.123). Assim, ao defender o estudo da língua a partir da diversidade de textos que circulam socialmente, não se espera que o aluno seja capaz apenas de reconhecer aspectos temáticos, composicionais e de estilo do gênero, mas, sobretudo, desenvolva a

capacidade de mobilizar esses saberes para selecionar, dentre os modelos de referência disponíveis nas diferentes esferas da atividade humana, aquele gênero que melhor atenda à situação de interlocução imediata. Nesse sentido, o gênero é concebido na BCC-PE como uma forma relativamente estável de enunciado, ou seja, um artefato simbólico maleável e sócio-historicamente construído que visa responder a condições e finalidades específicas em um contexto de interlocução particular.

Quanto aos princípios didáticos defendidos pela BCC-PE para o ensino de gêneros, a pesquisadora encontrou, em sua análise, três grandes categorias: diversidade de gênero, texto como unidade de ensino e trabalho com textos orais e escritos. Ao todo, são sugeridos no documento cinquenta e cinco gêneros para o trabalho na sala de aula, os quais pertencem a diferentes esferas de circulação social (jornalística, a científica, a literária, etc.) e contemplam as diferentes capacidades de linguagem, tais como relatar (notícia, reportagem, relatório,...), narrar (fábula, conto, ...), argumentar (debate, editorial,....), etc.

O texto, concebido como unidade de ensino, é apontado como ferramenta didática fundamental para o desenvolvimento de competências linguístico- discursivas nos eixos da leitura, escrita e oralidade. Para tal, a BCC-PE destina trinta e oito competências ao trabalho com o texto oral ou escrito. Todavia, Lima (2010) alerta para o fato de que, embora a perspectiva de se ensinar língua a partir de uma diversidade textual esteja presente nos fundamentos teórico-metodológicos da BCC- PE, parece não haver no documento uma preocupação com um trabalho sistemático em torno do texto:

É possível conceber, como parece estar subjacente à proposta, um ensino por imersão, ou seja, um ensino cuja ênfase seja a de promover muitas atividades de ler e produzir, com pouca atenção às situações de análise de textos, quanto à forma composicional, estilo ou mesmo sobre os contextos de produção (LIMA, 2010, p.143).

No que concerne aos eixos organizadores do ensino de língua, a pesquisadora identificou que das dezenove competências propostas ao eixo da escrita, apenas duas são destinadas ao trabalho com gêneros. Essas competências contemplam a dimensão composicional do gênero, atentando, sobretudo, para os modos de organização e disposição gráfica do gênero. Com isso, espera-se que, ao produzir um texto, o aluno saiba fazer uso adequado dos recursos gráficos e das

sequências textuais prototípicas dos gêneros em conformidade com a situação de interlocução.

Em relação ao eixo da leitura, são propostas quarenta e três competências. Destas, apenas uma destina-se especificamente ao trabalho com gênero: a de reconhecer as suas características composicionais. Nesse caso, a ideia subjacente é de fazer com que o aluno desenvolva a compreensão de que os gêneros são artefatos simbólicos relativamente estáveis, cuja forma de apresentação depende, e muito, das convenções culturais e sociais locais.

Já em relação ao eixo da oralidade, duas, das dezoito competências propostas para esse eixo, enfocam o trabalho com o gênero. As competências enfatizam a capacidade de diferenciar gêneros orais, formais e informais, em diferentes esferas de circulação social, o que exige uma compreensão, por parte do aluno, de que tais gêneros se diferem tanto no aspecto linguístico e composicional, quanto em função do seu propósito comunicativo. Existe ainda a preocupação com o fato de o aluno saber adequar-se às condições de produção e recepção de gêneros orais em um dado contexto interlocutivo.

No que se refere ao eixo da análise linguística, a pesquisadora constatou que das vinte e cinco competências propostas para esse eixo, apenas quatro relacionam-se exclusivamente ao trabalho com o texto. Não foram encontradas ocorrências que evidenciassem a relação dessas competências com o estudo do gênero (LIMA, 2010).

Em síntese, observamos que o estudo realizado por Lima (op.cit.) evidenciou que apenas cinco competências da BCC-PE são direcionadas ao trabalho com gênero, sendo a grande maioria (quarenta e nove) destinada a explorar apenas a dimensão do texto (relações de sentido, progressão, intertexto, etc.). Ainda de acordo com a pesquisadora, esse dado sugere “um afastamento do princípio de que os textos se materializam em determinados gêneros, defendido pela proposta” (LIMA, 2010, p.178). Quanto ao ensino do gênero, de modo geral, o estudo revelou que, embora a BCC-PE defenda um trabalho a partir da diversidade de textos, as orientações nela contidas não discutem, de forma mais sistemática, as dimensões exploráveis do gênero, nem tampouco as capacidades de linguagem a ele relacionadas. Ademais, não fica claro para o leitor em que medida as competências propostas se relacionam com os pressupostos teóricos sobre gênero defendidos pelo documento.

Já Nóbrega e Suassuna (2014), na tentativa de compreender o processo de apropriação dos professores em relação às prescrições oficiais para o ensino, realizaram uma pesquisa com alguns professores da rede estadual de ensino de Pernambuco acerca das concepções e da seleção dos conteúdos a serem ensinados nas aulas de Língua Portuguesa, considerando o currículo proposto. Os pesquisadores, apoiados numa teoria curricular crítica57, constataram que, no geral, os professores compreendem o currículo apenas como uma prescrição, ou seja, uma lista de conteúdos ou orientações que o professor deve seguir. Essa concepção aproxima-se, segundo os pesquisadores, de uma abordagem mais tradicional de currículo, segundo a qual o conhecimento é estático, linear e previamente organizado para atingir objetivos escolares preestabelecidos, sem qualquer relação com o contexto social e cultural (SILVA, 2005).

O estudo também evidenciou que, embora os docentes reconheçam a BCC- PE como um documento de referência para as práticas pedagógicas, o que efetivamente é materializado na sala de aula são os conteúdos normatizados58 pela Secretaria Estadual de Educação, os quais, segundo relato dos próprios professores, “divergem das orientações da BCC, uma vez que impõem uma lista pré- definida de conteúdos estanques, enquanto a BCC prioriza competências e habilidades” (NÓBREGA e SUASSUNA, 2014, p.945). Um dado positivo desse estudo são os dizeres dos professores acerca da seleção do que efetivamente é ensinado na sala de aula. Os relatos docentes evidenciam uma desejável fase de transição de uma concepção de língua mais tradicional para uma concepção mais interacionista. Por outro lado, a constante preocupação dos professores em cumprirem, à risca, os conteúdos, habilidades e competências estabelecidos pelo currículo revela, segundo os autores, a natureza altamente prescritiva e inflexível do currículo, o que não contribuiria para o desenvolvimento da autonomia docente.

Os resultados encontrados por Nóbrega e Suassuna (2014) nos levam, sem dúvida, a refletir sobre a natureza do currículo e das concepções dos professores acerca do que, de fato, deve ou não ser ensinado nas aulas de língua materna, o que, inevitavelmente, passaria por uma discussão mais profunda sobre a formação inicial e continuada de professores. Na perspectiva por nós aqui defendida, o

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De acordo com essa teoria, o currículo deve ser visto com fruto de lutas, tensões. Desse modo, o conhecimento é visto como um produto sociocultural resultante desses embates que envolvem relações ideológicas e de poder (SILVA, 2005).

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Os conteúdos são estabelecidos pelas Orientações Teórico-Metodológicas (OTM) para as escolas de ensino fundamental e médio regulares. Para as Escolas de Referência em Ensino Médio, existe a Proposta Curricular para o Ensino Médio Integral. Discutiremos um pouco mais sobre as OTM mais adiante.

currículo escolar deve ser visto como um artefato sociocultural resultante de um debate coletivo mais amplo. Em outros termos, as competências e habilidades nele contidas devem ser fruto de um “consenso” de subjetividades e teorias acerca da noção de conhecimento, sujeito, sociedade, língua e cultura. Sob esse viés, concordamos, em parte, com o estudo de Nóbrega e Suassuna (2014), uma vez que, a nosso ver, o único dispositivo que a escola tem para assegurar aprendizagens mínimas é o currículo, o que não significa necessariamente que os professores devam tomá-lo como uma “camisa de força”. E definitivamente não o fazem, como veremos mais adiante na análise do agir didático das professoras. Assim, diferentemente de Nóbrega e Suassuna (2014), entendemos que a questão da autonomia docente não está relacionada apenas ao fato de os professores não terem que seguir uma prescrição de ensino. Ou seja, a autonomia está também na singularidade de cada sujeito, na capacidade que cada indivíduo tem de agir de forma diferente, conforme suas próprias convicções, saberes etc. Sob esse prisma, embora haja prescrições para o seu trabalho, a autonomia docente se faz presente nas experiências singulares de cada professor em sala de aula.

Feitas as considerações acerca dos pressupostos teórico-metodológicos da BCC-PE para o ensino de gêneros, tentaremos, no tópico seguinte, ampliar a nossa compreensão acerca das prefigurações oficiais sobre ensino de gênero na Rede Estadual de Ensino de Pernambuco. Para tal, iremos apresentar os princípios teórico-metodológicos que regem outro documento de referência para as práticas de ensino na Rede Estadual de Ensino de Pernambuco: os Parâmetros Curriculares Estaduais (PCE).