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Parte 1 – Os condicionantes da violência na prática pedagógica do professor

4.2 A banalidade da violência

A banalização de ações de incivilidades, discriminações, formas implícitas de violência e demais atos corriqueiros negativos entre alunos, são apontadas por Abramovay e

Rua (2002) como uma das causas da violência escolar. Foi observado que a banalização de ações de violência possui relação inversamente proporcional com a percepção do fenômeno, pois, quanto maior a percepção da violência no ambiente escolar, menor é sua banalização, e quanto maior a banalização da violência, menor se torna a sua percepção. A banalização da violência na escola pelos professores colabora para a perpetuação de ações violentas no convívio e nas práticas sociais estabelecidas nas aulas e, de acordo com Abramovay e Rua (2002), também nega o direito dos alunos à proteção, e os professores perdem momentos oportunos para educar contra a cultura violenta.

Conforme Abramovay e Castro (2006), a grande quantidade de informações sobre a violência veiculadas pelas mídias e a convivência cotidiana em ambientes violentos, colaboram com a diminuição da sensibilidade sobre o fenômeno e contribuem para a indiferença. A indiferença perante a violência encontra-se na naturalização (normalização) de comportamentos violentos em meio às relações interpessoais e práticas sociais. A pouca sensibilidade (ocasionada pela constante presença à manifestação de violência) faz com que o comportamento violento deixe de ser compreendido como tal, ou quando o é, não causa espanto e indignação. Junto a indiferença, a violência é hierarquizada, no que se refere à gravidade de suas ações, ao atribuir valores de mais ou menos violento.

A indiferença diante à violência foi verificada no depoimento de ambos os professores ao serem questionados sobre a influência da violência na qualidade e no desenvolvimento da prática pedagógica. Conforme o professor Antônio:

“O único prejuízo que ela causa é o atraso nas aulas, porque quando acontece alguma situação de violência, eu tenho que parar a aula e conversar com os alunos, explicar para eles, e às vezes para a turma toda [...] Às vezes eu deixo de passar algum conteúdo, ensinar algum jogo porque não deu tempo de ensinar.”

Para o professor Bernardo, a violência influencia a qualidade e o desenvolvimento das práticas pedagógicas:

“[...] porque pode trazer uma desmotivação tanto para o professor quanto para o aluno. Para o professor, desmotivação no sentido de planejar, preparar a aula, buscar outros elementos para agregar à aula, enquanto que para os alunos, eles se recusam a participar.”

Nos relatos, ambos os professores atribuem à violência o sentido de prejuízo nas aulas. O professor Antônio demonstrou-se menos sensível a violência, por relatar que o único prejuízo atribuído aos comportamentos violentos é o atraso em relação à fluidez de sua prática pedagógica, sem demonstrar preocupação com os efeitos que tais comportamentos podem acarretar sobre os alunos. Em contrapartida, o professor Bernardo demonstrou-se mais sensível à violência, por perceber que seus efeitos atingem todos os envolvidos no processo educativo, afetando a motivação e o planejamento de trabalho do professor e diminuindo a autoestima e a participação dos alunos nas atividades (como no caso descrito do bullying).

A hierarquização da violência foi evidenciada em trechos dos depoimentos dos professores. Conforme o professor Antônio, a violência ocorre “diariamente” em suas aulas, porém:

“[...] não são casos de violência extrema como brigas, aquele negócio do aluno querer brigar na hora de sair da escola. Isso aí não acontece. Mas o tipo de discussão verbal e agressão verbal, sim. Então, essa violência leve, que eu considero violência leve, como um tapa, um empurrão, um xingamento, isso aí é diário, é cotidiano.”

E, segundo o professor Bernardo:

“[...] violência de briga, pancada, soco, chute, isso não acontece. O que acontece com mais frequência, é aquele desrespeito verbal que eu considero como bullying, como apelidos e falas do tipo “ah você é ruim, eu não vou jogar com você”, enfim, esse tipo de coisa, mas agressão física não, nada que caracterize uma violência, algo mais grave como uma agressão física, nada disso. É a questão do próprio bullying, como apelidos, piadinhas e brincadeira pejorativa, é o que acontece mais.”

Os professores atribuem o sentido de violência grave para violência física, na forma de agressão (socos e chutes) e briga. Violência verbal (xingamentos), incivilidades, violência psicológica, bullying e violência física (nos atos de tapas e empurrões), são consideradas violências leves e normais no cotidiano das relações interpessoais dos alunos. O Professor Antônio também considera normal na profissão docente, a resolução de conflitos por meio de discussões com os alunos.

Cabe aqui uma ressalva sobre o sentido empregado nos termos “discussão e conversa” tanto pelos professores pesquisados quanto pelo pesquisador. Enquanto o termo “conversa” é empregado como sinônimo de diálogo, o termo “discussão” refere-se a um

debate regido por incivilidades (palavras grosseiras e falta de respeito).

O sentido (leve e grave) atribuído ao ato violento pelo professor pode ter relação com o tipo de violência manifestado pelos alunos, na medida em que a ausência ou a intervenção pedagógica pode possibilitar ou inibir o comportamento violento. Neste sentido, o predomínio da violência verbal e psicológica nas aulas de Educação Física se deve a pouca ou nenhuma atenção dispensada a tais comportamentos pelo professor, da mesma forma que a violência física pode ter sido menos frequente em decorrência da presença constante de intervenções pedagógicas. No entanto, com a banalização da “violência leve”, corre-se o risco da perpetuação deste tipo de comportamento no cotidiano escolar, instaurando-se um ambiente de insegurança, medo e desconfiança nas práticas e nas relações sociais.

Como consequência da banalização da violência, a indiferença e a hierarquia influenciam a percepção do professor sobre a qualidade das experiências vivenciadas pelos alunos. Segundo o professor Antônio:

“[...] desde que não seja um caso de violência extrema, não atrapalha e não causa uma experiência negativa no aluno, porque faz parte do desenvolvimento da criança, da faixa etária e do contexto escolar esses conflitos e discussões. Algumas coisas assim são normais, e não causa nenhuma experiência negativa, porém atrasam minhas aulas.”

Para o professor Antônio, a violência verbal (considerada violência leve na forma de discussões) não acarreta experiências negativas para os alunos, porque é compreendida como normal e desprovida de sentido violento nas relações estabelecidas no cotidiano das aulas. Igualmente, verificou-se por meio da observação, que a violência verbal (sob a forma de xingamentos, incivilidades e falta de respeito) foi utilizada de modo natural entre os alunos na resolução dos conflitos que surgiram durante a prática de jogos e esportes. Como exemplo, em um jogo de futebol, o aluno nervoso, porque sua equipe sofreu gol, proferiu xingamentos em direção ao goleiro e aos outros alunos da equipe, que discutiam entre si para definir de quem foi à culpa pelo gol sofrido. Para resolução do problema, os alunos decidiram trocar o goleiro. De modo semelhante, Sposito (1998, p. 62) diz que a banalização da violência “estrutura formas diversas de sociabilidade que retiram o caráter eventual ou episódico de determinadas práticas de destruição ou de uso da força”. No entanto, quando estes comportamentos ultrapassam as barreiras da “normalidade” estabelecidas pelo universo cultural e simbólico das relações sociais entre alunos, tornam-se inaceitáveis na medida em que pressentem o perigo à segurança física e psicológica, sob a iminência da

violência física. Nestes casos, os xingamentos proferidos pelos alunos, são entendidos pelas vítimas como violentos por conter a intenção de causar mal, e muitas vezes terminam em violência física. A violência, então, só é percebida pelos professores ao se tornar grave, explícita na forma de socos, chutes e brigas.

Conforme o postulado de Cunha (2012), o professor como sujeito histórico apropria-se das experiências de seu cotidiano para desenvolver o saber e o conhecimento que rege seu comportamento e sua prática pedagógica. Embora os “critérios” de hierarquia da violência sejam comuns aos professores, o professor Antônio apresentou um nível maior de indiferença à violência em relação ao professor Bernardo. A maior tolerância e a menor sensibilidade do professor Antônio ao comportamento violento dos alunos pode estar relacionado ao seu cotidiano escolar, na medida em que foi diagnosticada a maior frequência de manifestações de violência (incluindo a maior ocorrência de violência grave) em relação ao cotidiano escolar do professor Bernardo. Esta perspectiva corrobora Abramovay e Castro (2006) ao relatarem que a maior exposição à violência contribui para sua banalização.

Assim, o cotidiano escolar, além de influenciar a percepção e a banalização da violência, também pode influenciar os modos de agir do professor e, consequentemente, sua intervenção pedagógica. Em conversa informal durante as observações, o professor Antônio qualificou seus alunos como “terríveis” e relatou que adota:

“Uma postura de “bravo”, distribuindo broncas e punições em qualquer situação, porque se não for assim os alunos sobem no meu pescoço.”

Diante deste relato, compreende-se que a postura rígida e agressiva adotada junto aos alunos deve-se ao seu relacionamento cotidiano com eles. Isto significa que, possivelmente, sua postura não é a mesma em outros contextos escolares e pode variar conforme a turma de alunos.