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Secção II – Contratos incompletos Soberania e contrapartidas na mesa das negociações

1. Bases negociadas

A instalação de uma base, bem como a sua continuação no tempo, são fenómenos dialéticos que frequentemente – apesar das restantes possibilidades para instalação e permanência de bases já referidas - implicam negociações muito complexas entre o país inquilino e o país hospedeiro, conforme referem Cooley e Spruyt299 para o caso da Guerra Fria, incluindo o caso específico da

Base das Lajes. Esses momentos dialéticos parecem evidentes no tempo histórico relativamente longo de existência da Base das Lajes e no tempo muito curto da Base de Santa Maria, sendo menos evidentes, como veremos, no caso, também de tempo muito curto, da Base Naval de Ponta Delgada, associada à I Guerra Mundial300.

1.1.

A dureza dos processos negociais

Desde muito cedo na Guerra Fria, os EUA foram adquirindo os seus sistemas de bases através de negociações com a Inglaterra e a França. A partir dos anos sessenta do século XX, os EUA (o mesmo aconteceu em relação à União Soviética) foram aprofundando a sua estrutura global de bases no âmbito de alianças com uma vasta clientela de aliados ideológicos, o que, no entanto, não deixou de implicar acordos de proteção e segurança e programas de assistência, nalguns casos económica, mas sobretudo assumindo a forma de transferência de armamentos301. Aliás, o

modelo adotado pelos EUA para montar o seu sistema de bases após a II Guerra Mundial e no

299 Cooley, A.&Spruyt, H. (2009).Op. cit.

300 Cf. Telo, A. J. (1993). Op. cit.

301 Cf. Harkavy, R. E. (1989). Op. cit.; Harkavy, R. E. (2007). Op. cit.; Krepinevich, A.&Work, R. O. (2007). Op. cit.; Pettyjohn, S. L. (2012).Op. cit.

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decorrer da Guerra Fria é uma anomalia – ou uma novidade ou uma mudança de paradigma… - na História, uma vez que até aí os grandes poderes normalmente adquiriam bases pela força, sem acordos nem contrapartidas, inaugurando os EUA uma estratégia baseada em alianças, acordos de segurança e transferências económicas e de armamento302.

A partir do fim da II Guerra Mundial, os EUA construíram uma rede de bases à escala global303,

sendo muito delas garantidas através de contratos de arrendamento304. As negociações e

renegociações com os países hospedeiros são muitas vezes difíceis, não se excluindo destas dificuldades os países que integram a NATO, como é o caso de Portugal305. Periodicamente, os

países hospedeiros, mesmo tratando-se de aliados próximos dos EUA, exigem compensações económicas e militares cada vez mais elevadas em troca da manutenção de bases militares norte-americanas nos seus territórios. Para Colley e Spruyt306, são os contratos incompletos,

entretanto celebrados, que contêm nos seus termos potencial para a eclosão dos processos negociais e das reivindicações que lhes são inerentes. Os autores entendem que a sua teoria sobre contratos incompletos e formas mistas de soberania oferece ferramentas concetuais com virtualidades suficientes para compreender estes fenómenos307.

302 Cf. Monteleone, C. (2009). Impact and Perspectives of American Bases in Italy. In Rodrigues,

L.&Glebov, S. (Eds.). Op. cit., pp. 127-145.

303 Cf. Harkavy, R. E. (1989). Op. cit.; Baker, A. P. (2004). Op. cit.

304 Cf. Krepinevich, A.&Work, R. O. (2007).Op. cit.; Cooley, A.&Spruyt, H. (2009).Op. cit.; Pettyjohn, S. L.

(2012).Op. cit.

305 Cf. Deusen, K. J. (1990). Op. cit.; Cooley, A.&Spruyt, H. (2009).Op. cit. 306 Cooley, A.&Spruyt, H. (2009). Op. cit.

307 Para melhor compreender os contratos incompletos, Colley e Spruyt (Cooley, A.&Spruyt, H. (2009). Op. cit.) propõem, relativamente a um bem, a existência de dois tipos de direitos relacionados com a

propriedade, sendo um os “control rights”/direitos de controlo e outro os “use rights”/direitos de uso, sendo que os primeiros representam o poder de tomar decisões sobre como utilizar um determinado bem, como venda, aluguer, transferência ou destruição e os segundos têm a ver com receber benefícios ou suportar custos relacionados com o uso de um bem. “In a incomplete contract, the control rights of

an asset are particulary important as they govern the residual rights of control of the asset: that is de right to use the asset in any manner beyond what is specified in the initial contract” (pp. 27 e 28). Quer

isto dizer que a detenção dos direitos de controlo é importante para ganhar poder negocial em tudo o que esteja para além do que foi negociado na matriz inicial do contrato. Os autores exemplificam a importância dos direitos de controlo com as bases militares no estrangeiro. Os estados interessados em bases nessas circunstâncias preferem um ambiente de hierarquia de soberania, para que possam utilizar os bens em causa de acordo com os seus interesses. No entanto, em muitos casos são assinados contratos com países hospedeiros que são detentores da soberania sobre o espaço das bases, sendo que esses contratos especificam a finalidade das bases, o nível da cedência de soberania e os pagamentos, se for caso disso, que são devidos pelo uso do bem. “Because host countries retain the rights of residual control, they can delimited the activities or ‘use rights’ to the base to what is specified in the actual basing rights contract and, if needed be, drive a harder bargain during a renegotiation of an initial accord” (p. 30). Ao contrário, contratos completos são aqueles que descrevem e especificam uma matriz completa de responsabilidades e obrigações das partes contratantes, tal como antecipam quaisquer contingências futuras. Os contratos incompletos resultam das imperfeições e dos custos de transação gerados pelo ambiente dos contratos e protegem os atores de especificarem condições fechadas. Estes contratos incompletos ocorrem por razões processuais e estratégicas. Ao nível processual os contratos são, geralmente, incompletos quando as partes são incapazes de antecipar a

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Utilizando os direitos de controlo, os países hospedeiros conseguem rendas substanciais e restringem tanto os direitos de soberania que possam ter sido cedidos num primeiro momento, como limitam progressivamente o espectro das atividades militares permitidas nas bases. De acordo com Colley e Spruyt308, enquanto o bem em causa tem um lugar específico (importante)

na rede global de bases, os acordos iniciais, geralmente mais favoráveis para os EUA, são renegociados e tendem para o equilíbrio entre as partes. Os EUA vão cedendo nas negociações até um limite que é definido pelo preço das alternativas309.

Nos períodos de renegociação de acordos, muitos países exigem contrapartidas em escalada aos níveis financeiro, de assistência militar e de concessões políticas. Colley e Spruyt310 referem que

países, como Portugal, que mantêm laços muito estreitos com os EUA, encontram mesmo assim espaço nas renegociações para acenar com a expulsão dos norte-americanos do seu território como estratégia negocial. Por outro lado, embora muitos dos contratos iniciais, assinados nos anos cinquenta do século XX, tenham favorecido os EUA, mesmo no que diz respeito à divisão de aspetos da soberania, o poder relativo dos EUA não foi suficiente para manter esses contratos, tendo os EUA perdido prerrogativas ao longo dos processos negociais. Essa situação resulta, segundo os autores, do poder dos direitos de controlo mantidos pelos países hospedeiros em relação às bases. Acresce o facto de os países hospedeiros aprenderem uns com os outros: “…much like firms assessing market signals from competitors, host states learned to use US

matriz das contingências que possam ocorrer no futuro e quando é impossível negociar acordos em condições ótimas, ou seja, quando o ambiente contratual está marcado por assimetrias de informação. De acordo com Colley e Spruyt, pode ainda acontecer que as partes não tenham interesse em

estabelecer um acordo que seja escrutinável no futuro por terceiras partes, particularmente pelos sistemas judiciais. “… states, even if they prefer a complet contract, may not be able to anticipate all de

possible transactions costs, exogenous events, and future bargaining positions that might arise throughout the course of an extended exchange” (p. 9). Em qualquer caso, os contratos incompletos

especificam os termos iniciais, tal como nos contratos completos, mas várias contingências futuras são negligenciadas. Quanto às razões estratégicas, elas podem estar presentes, sobretudo, em negociações sobre assuntos em relação aos quais as partes – ou uma das partes – têm a noção que podem obter vantagens em negociações futuras.

308 Cooley, A.&Spruyt, H. (2009).Op. cit.

309 Colley e Spruyt (Cooley, A.&Spruyt, H. (2009). Op. cit.) entendem que as dinâmicas negociais não são

explicáveis nem pelas teorias realistas nem pelas teorias construtivistas que geralmente são tidas em conta nos estudos de segurança. Defendem que a teoria dos contratos incompletos é mais capaz de contribuir para explicar tais dinâmicas. No âmbito das teorias que se baseiam no poder, como o realismo, o sistema de bases dos EUA é visto como o resultado de fatores sistémicos ou de pressões, destacando-se a rivalidade bipolar para o caso da Guerra Fria. Além de resultarem do próprio sistema, muitas bases resultariam, nesta ótica, da assimetria de poder entre os EUA e os países hospedeiros. Por outro lado, as teorias construtivistas, por se basearem em normativos sociais e na identidade como elo de ligação entre os estados e na formação de comunidades de segurança, sem no entanto negarem a importância do poder, tenderiam a ver os contratos sobre bases como resultando de elos sociais e de pertença a uma mesma comunidade de segurança. Porém, para Colley e Spruyt“…a number of issues

central to the basing relationship cannot be explained by either of these approaches” (p. 103). 310 Cooley, A.&Spruyt, H. (2009). Op. cit.

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basing agreements with other states as baselines for securing more favorable terms in their own negotiations”311.

Os momentos de renegociação, no caso das bases norte-americanas, segundo Colley e Spruyt312,

geralmente não coincidem com alterações geopolíticas significativas, desenvolvimentos nos sistemas internacionais ou mesmo a evolução nas normas do relacionamento internacional. Assim, persistiram acordos para além da Guerra Fria e outros não se mantiveram. Reconhecendo embora que a sua teoria dos contratos incompletos pode não ser capaz de explicar todas as variações que na realidade são observáveis, os autores acreditam que ela é capaz de lançar alguma luz sobre o que consideram ser “…a set of puzzling tends within US basing agreements”313.

1.2.

A natureza dos contratos

Para os países hospedeiros de bases norte-americanos, seria politicamente insustentável estabelecer acordos de matriz colonial com os EUA, sendo sobretudo por essa razão que, de acordo com Colley e Spruyt314, os EUA estão envolvidos em múltiplos acordos bilaterais

baseados na partilha de soberania. Estando os direitos de uso previstos num acordo geralmente incompleto e sendo que esse acordo está sujeito a renegociação periódica, os países hospedeiros utilizam geralmente os seus direitos de controlo para conseguir mais contrapartidas e restringir os direitos de uso, sendo que o preço aumenta no caso de bases de importância maior na rede global de bases ou nas sub-redes regionais.

Os contratos celebrados pelos EUA com outros países para a utilização de bases militares variam entre tratados bilaterais, acordos entre governos, protocolos entre instituições militares e troca diplomática de notas, sendo que nalguns casos a capa para estes entendimentos é um Acordo de Cooperação e Segurança. De acordo com Colley e Spruyt315, o tempo de vida destes

acordos é variável, podendo ir de validade indefinida (Japão) a 99 anos (Filipinas), enquanto outros têm um prazo de duração de poucos anos. Embora os EUA, segundo os autores, prefiram acordos de longo prazo, para reduzir a incerteza, geralmente os países hospedeiros preferem acordos de tempo curto, visionando alterações e ganhos em renegociações. Os chamados acordos dos Açores sempre foram de tempo curto316.

311 Cooley, A.&Spruyt, H. (2009). Op. cit., p. 104. 312 Idem, ibidem.

313 Idem, ibidem., p. 105. 314 Idem, ibidem. 315 Idem, ibidem.

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