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Secção I – Um caso disfuncional e peculiar

3. Teoria portuguesa para o caso português

3.3. A disfunção nacional em ação

3.3.1. O papel decisivo do não dito

De acordo com Telo228, “O papel da disfunção raramente é entendido de maneira global e os

seus mecanismos raramente são conscientes e correspondem a estratégias elaboradas e assumidas, sendo, possivelmente, por causa disso que são tão eficazes”229. Entre os políticos,

nem todos entendem a disfunção, mesmo aqueles que atuam no cenário internacional. Os que a compreendem estão impedidos de o expressar publicamente, sob pena de uma forte reação popular e da oposição política, isto porque “Nenhum político responsável pode dizer

221 Telo, A. J. (1997). Op. cit., p. 656. Ao longo dos tempos, emigrantes, empresários e escravos são os

agentes da disfunção económica; mais de 200 milhões de pessoas que comunicam na língua portuguesa são agentes da disfunção cultural. Telo anota que “como regra (…), os governos só se movimentam quando os processos já se encontram muito avançados por mecanismos e vias que nada têm a ver com eles” (p. 656). 222 Idem, ibidem. 223 Idem, ibidem., p. 656. 224 Idem, ibidem., p. 657. 225 Idem, ibidem. 226 Idem, ibidem., p. 657.

227 Idem, ibidem., p. 657. Segundo Telo, “…quando se analisam fenómenos deste tipo, é preferível

considerar uma área comum de interação, onde o ‘interno’ e o ‘externo’ estão tão intimamente relacionados que não faz sentido, nem ajuda à compreensão da realidade, falar neles como realidades independentes” (p. 657).

228 Idem, ibidem. 229 Idem, ibidem., p. 657.

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publicamente que a razão última das suas ações é garantir a continuidade de um apoio externo ou a canalização para o país de fluxos do exterior essenciais para manter os equilíbrios delicados do sistema”230. Está assim criado “…um abismo entre a realidade de uma estratégia de

fundo e o discurso oficial elaborado para consumo da opinião pública e para a propaganda, entre a aparência e a realidade”231.

Ao nível interno, a disfunção tem uma ação essencial “…no estabelecimento de regras de funcionamento da sociedade portuguesa, da originalidade dos seus processos de evolução e transição entre modelos económicos e estruturas políticas”232. Canalizar recursos do exterior e

apoios para levar a cabo estratégias internas é uma das funções essenciais que Telo atribui à disfunção. Umas vezes tais recursos ficam expressos em tratados ou acordos, mas no geral os mecanismos utilizados são de carácter informal ou pelo menos não são consagrados legalmente. Para Telo,

Significa isto que, normalmente, os regimes caem e mudam sob efeito de pressões que lhe vêm do exterior e se consolidam e procuram ultrapassar as crises através da obtenção de apoios e recursos externos a diversos níveis, aos quais correspondem contrapartidas mais ou menos claras233.

Em qualquer caso, o segredo fundamental do funcionamento eficaz da disfunção como suporte às políticas internas é ligado por Telo234 à capacidade de dissimular o que está a ocorrer235.

230 Telo, A. J. (1997). Op. cit., p. 657.

231 Idem, ibidem., p. 658. De entre os exemplos aduzidos por Telo, escolhemos um: “…quando se passou

a dar garantias formais a Inglaterra sobre os Açores a partir de 1898, estas tiveram de ser mantidas secretas, a ponto de mesmo a maior parte dos historiadores posteriores não falar nelas nem as

relacionar com o Tratado de Windsor, assinado menos de um ano depois e que garantiu a continuidade do império” (p. 658).

232 Idem, ibidem., 659.

233 Idem, ibidem., p. 659. São vários os exemplos aduzidos por Telo, desde o contributo inglês para

repelir as invasões francesas até às ajudas externas que permitem a vitória liberal na guerra civil 1828- 1834; desde o beneplácito aliado que permite a manutenção do regime no segundo pós-guerra, até à mais recente forma como a recuperação económica do país dependeu de ajudas, créditos e remessas externas depois de 1976, entre outros. De acordo com Telo, “Em todos estes casos (…), estratégias e políticas essenciais para o país, conscientes ou não, só puderam ser concretizadas através de uma injeção em larga escala de apoios imateriais e recursos concretos do sistema internacional, em termos políticos, técnicos, financeiros, militares e humanos. Obviamente, se isto acontece é por algum motivo, seja a existência de interesse externo nessas políticas, a capacidade de oferecer contrapartidas

significativas ou a possibilidade de mobilizar uma rede de apoios informais que se edificou ao longo dos séculos” (p. 660).

234 Idem, ibidem.

235 São exemplos a política de Salazar em 1928, que visava o retorno ao país dos capitais emigrados nas

últimas quatro décadas, o que garantiu solidez financeira e suporte político ao Estado Novo, sendo que essa política não é entendida no sistema interno, e, fundamentalmente, a capacidade nacional de manter uma balança comercial sistematicamente negativa desde a retirada da corte para o Brasil, em 1807, acossada pelos exércitos de Napoleão, e até à atualidade (exceto em três anos na II Guerra Mundial). O significado desta situação é, para Telo (Telo, A. J. (1997), Op. cit.), óbvio: “…nos últimos dois séculos Portugal viveu sistematicamente acima do valor dos produtos que produziu. Para tal precisou de

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Internamente, é necessário distribuir o capital imaterial e financeiro que provém do exterior. “Quem consegue aceder a ele de forma privilegiada afirma-se e vinga perante os restantes e é isso que cria a anormal importância interna do externo, bem como o facto de ser muito difícil e pouco útil separar essas duas realidades rigidamente”236. Telo anota que esta relação se torna

ainda mais importante dado o peso que as relações económicas com o exterior têm na sociedade portuguesa e que é superior ao normal nas sociedades desenvolvidas.

A distribuição interna dos recursos captados no exterior é um instrumento fundamental para a criação e manutenção de elites. Telo237 considera que, sendo que a distribuição ocorre no âmbito

de regras criadas pelo poder político ou mesmo por este de forma direta, então “…o controle do nível político é fundamental para a formação das elites económicas e sociais”238. Sendo assim, a

criação de novas elites é peculiar em Portugal. Ao contrário de emergirem no sistema político a partir de alterações sustentadas das realidades social e económica, normalmente

…um grupo minoritário toma conta do poder político e, a partir dele, define novas regras de distribuição dos recursos canalizados para o país ou produzidos internamente, o que lhe permite crescer e assegurar a força futura em termos económicos e sociais239.

Geralmente, o poder político é apropriado, de forma rápida, com a atuação dos militares. Numa segunda fase, ocorre, de forma mais lenta, a formação das elites sociais e económicas a partir do poder político. Normalmente, ocorre uma fusão com as antigas elites, “…pelo menos com a parte que se adapta a tempo, muda de hábitos, presta vassalagem oral e de circunstância aos novos valores políticos e às figuras de governação e se adapta às circunstâncias emergentes”240.

O que importa para garantir o sucesso na sociedade portuguesa “…é o relacionamento com o poder político e não a eficácia direta numa determinada função…”241, o que significa que “…os

mecanismos que promovem a eficácia numa determinada função estão, em regra, pervertidos

canalizar de maneira contínua recursos financeiros (ouro e divisas) do exterior que lhe permitiram equilibrar uma prática permanente de comprar substancialmente mais do que aquilo que vende” (p. 661).

236 Telo, A. J. (1997). Op. cit., p. 661. 237 Idem, ibidem.

238 Idem, ibidem., p. 662. 239 Idem, ibidem., p. 662.

240 Telo, A. J. (1997). Op. cit., p. 662. O autor analisa os casos da nova elite liberal (pós-guerra 1828-

1834); da elite de serviços públicos e das benesses para criar as máquinas eleitorais no pós-5 de Outubro; da criação dos grandes grupos económicos através das boas relações com o poder depois de 1926, e os processos de nacionalizações, seguidos de privatizações que criaram a elite pós-25 de Abril de 1974, referindo também as políticas de emprego e sociais que criaram uma classe média capaz de suportar o sistema. De acordo com Telo, nos casos referidos “…pode ser detetado um peso anormal do poder político para moldar em poucos anos as realidades económicas e sociais. É no nível político que as mudanças de fundo ocorrem em primeiro lugar de forma brusca e é a partir dele que se organizam posteriormente as alterações da ordem social e económica que consolidam ou criam as novas elites” (p. 663).

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ou, pelo menos, não funcionam com a intensidade e peso que seria de esperar”242. Estamos

perante uma situação em que se regista um peso anormal do político que “…tende a perverter o bom funcionamento dos critérios que asseguram a eficácia das instituições…”243. Entre outras,

esta realidade tem como consequência que “…o ritmo da inovação no país é normalmente mais lento do que noutras sociedades com regras diferentes”244. Daqui resulta a necessidade de

importar a inovação “…seja em termos técnicos, organizativos, culturais ou políticos (todos eles estão, aliás, ligados)”245. Telo considera ser esta uma das principais vias para a mudança na

sociedade portuguesa induzidas pelo sistema internacional e conclui que

As grandes mudanças em Portugal não se fazem de forma gradual e lenta, de baixo para cima, mas sim de forma brusca, de cima para baixo, através do nível político e dos militares, em larga medida, porque a perversão nacional das regras do jogo social favorece a perversão das instituições e não a sua mudança gradual e contínua246.

Telo247 constata que quando se regista maior abertura, são mais rápidos a inovação interna e o

ritmo da mudança gradual e progressiva. Mas nos períodos de formação de um regime ou quando ele se fecha em relação ao exterior e se regista um peso significativo do Estado, então ocorre o contrário. A inovação passa a ser mais lenta e conflitual, sobretudo porque os valores corporativos e coletivos tornam-se mais pesados.