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CAPÍTULO II: DESAFIOS METODOLÓGICOS 2.1 Construindo as trajetórias de surdos

2.3 Bianor, os laços de família.

Figura 23: cartoon

Fonte: acervo de pesquisa Ronaldo Manassés.

Como a maioria dos surdos, interlocutores desta pesquisa, Bianor nasceu com surdez profunda, vítima de uma rubéola adquirida por sua mãe durante a gravidez. Filho de pais ouvintes. Sua mãe, ao saber de sua surdez ficou muito preocupada em como seria sua vida. Levou-o para a escola, mas como não tinha intérpretes e os professores não sabiam Libras, passava o tempo todo brincando. Em casa, antes de aprender Libras, conversavam por gestos o tempo todo, sua família nuca aprendeu a língua. E mesmo depois de adulto, falam com ele escrevendo em papel o que querem. Diz que foi bem difícil sua infância porque não se comunicava com a família: ―Eram só gestos, mas eu me acostumei, então deixei de lado‖.

Goffman (2012) fala que o sujeito estigmatizado tende a internalizar o estigma imposto socialmente e acaba por reforçar isto em suas interações sociais. Bianor, ao dizer que se acostumou ao processo de interação com sua família, na verdade, internalizou o estigma da surdez imposto em casa. O fato de seus pais e irmãs não saberem Libras, implica dizer que ele teve que criar os mecanismos próprios de comunicação para se expressar.

Assim como muitos surdos, o grande desafio do desenvolvimento já começa em família, pois, em sua maioria, nascem em famílias de ouvintes e estes não demonstram interesse em aprender a língua de sinais, tampouco ensinar seus filhos surdos, para que estes possam se desenvolver equitativamente com o

desenvolvimento dos outros filhos que não são surdos. O surdo vive como um ―estranho‖ em sua casa. O abismo linguístico que o separa de seus irmãos, pais e demais familiares tem sido um verdadeiro divisor de águas em sua vida. Os surdos comumente tornam-se o ―problema‖ para suas famílias.

Goldfeld (2002) ao falar da aquisição da linguagem de crianças surdas, diz que, por nascer em sua maioria em famílias de ouvintes, esta aquisição é sempre tardia, não porque o surdo tenha perda cognitiva, mas porque lhe faltam os incentivos adequados para que adquira e desenvolva a linguagem.

Além da questão da linguagem, é importante analisar a interação deste sujeito que, por usar outra língua, por usar fortemente as experiências visuais, fica muito comprometida. O considerado ―problema da família‖ é visto, de acordo com Elias (2000), como o 13outsider, ou seja, o indesejado. Alguém que tenta entrar numa comunidade socialmente estabelecida, com regras consolidadas, inclusive, ironicamente, este grupo que o vê como tal, é sua família.

Quando fui para escola tinha 8 anos, ficava só olhando e copiando porque não tinha intérpretes, nem professor surdo. As pessoas falavam, falavam e eu não entendia nada. Fui passando assim até chegar ao ensino médio, quando me deparei com um intérprete, foi muito difícil porque eu nunca tinha visto isso sabe? O intérprete teve dificuldade em me fazer entender que ele estava ali para me ajudar. Fui aos poucos entendendo, ele me falou do Cas, eu fui até lá e tive muito contato com outros surdos, aprendi mais rápido a Libras, me ajudou e então entendi de verdade o que o intérprete fazia na sala comigo. Em casa, hoje meus pais me respeitam, eu ajudo eles na comunicação comigo, mas ainda não aprenderam Libras e eu não me incomodo me acostumei. Na hora do almoço, por exemplo, eles falam, falam, riem, às vezes. Eu perguntava do que estavam rindo? Diziam-me: ―depois te explico‖, hoje não pergunto mais. Sento como e eles estão lá falando. Termino, vou para meu quarto e volto a falar com meus amigos pela internet, facebook etc. Gosto dos meus

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Mediante um exame mais detido é frequente poder-se descobrir que também nesses outros casos, tal como em Winston Parva, um grupo tem um índice de coesão mais nítido que o outro e essa integração diferencial contribui substancialmente para seu excedente de poder; sua maior coesão permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado e de outro tipo, o que vem reforçar sua coesão, e excluir dessas posições os membros dos outros grupos - o que constitui, essencialmente, o que se pretende dizer ao Falar de uma figuração estabelecidos-outsiders. Entretanto, embora possa variar muito a natureza das fontes de poder em que se fundamentam a superioridade social e o sentimento de superioridade humana do grupo estabelecido em relação a um grupo de fora, a própria figuração estabelecidos- outsiders mostra, em muitos contextos diferentes, características comuns e constantes. Foi possível descobrí-Ias no âmbito restrito de Winston Parva e, uma vez descobertas, elas se destacaram com mais clareza em outros contextos. Assim, ficou patente que o conceito de uma relação entre estabelecidos e outsiders veio preencher, em nosso aparato conceitual, uma lacuna que nos impedia de perceber a unidade estrutural comum e as variações desse tipo de relação, bem como de explicá- las ELIAS(2000).

amigos. Estou acostumado com minha família. Nas férias, eles viajam e eu não gosto de ir, prefiro ficar aqui com meus amigos. (trecho da entrevista com Bianor, realizada em 05 de novembro de 2014)

Antes de analisar o trecho da entrevista com Bianor, é importante explicar como as fiz. Por ser surdo, evidentemente tive que fazê-las em Língua de Sinais para que me aproximasse ainda mais, no sentido de dar mais fluidez as falas. Pois é comum os surdos se queixarem, ao ter que conversar com alguém por meio de intérpretes. Não se sentem à vontade e, dependendo do assunto abordado a performance será evidente. Por isso não só as entrevistas com Bianor, mas de todos os meus interlocutores foram feitas em Libras por mim, sem auxílio de intérpretes. A única adequação feita foi a textual, pois a construção frasal em Libras é diferente da construção em português. Logo, para um melhor entendimento dos leitores, fiz o que chamamos de tradução de Libras para Português.

Fica evidente na fala de Bianor o estigma da surdez que sofre em casa. Em diversos trechos, ele relata como sua família age em momentos comuns, de interação. Em outras famílias, os momentos de encontro são os do almoço e do jantar, em que dividem os problemas familiares, as conversas, as piadas, as histórias do cotidiano. É quando se fortalecem os laços familiares. Mesmo nas famílias contemporâneas, em que as conversas cada vez mais são virtuais, que presenciais, tudo que se fala na casa, o outro pode ouvir no outro cômodo e de lá interagir, mas quando não se tem uma língua comum em casa, este abismo torna-se cada vez mais evidente, o abismo que tem separado surdos de ouvintes. E que atualmente faz com que uns evitem os outros, ou seja, grupos de surdos evitam contanto com ouvintes e vice-versa, numa luta por espaço de poder desenfreada.

Amaral (2013) diz que evitar o contato direto com determinados grupos sociais é uma prática muito antiga e que assim o fazem por uma questão de pertencimento, ou seja, surdos evitam ouvintes para se afirmarem como tal, tanto quanto os ouvintes fazem. O que para este autor evidencia outra questão, o surgimento de guetos. É comum ouvirmos nas escolas regulares, nas quais existam alunos surdos matriculados, o relato de professores e funcionários, dizendo que os surdos só vivem nos seus grupos, não se relacionam com os demais alunos, não abrem espaço, dizem os professores. Amaral (2013) pontua que as cidades

atualmente são desenhadas por fronteiras, invisíveis, mas extremamente sólidas, e que criam os guetos como forma de controle da diferença.

Bianor formou-se em designer pela Universidade do Estado do Amapá (UEAP), um dos poucos surdos que buscou um curso diferente dos que comumente formam — As licenciaturas. Tem sido, uma das questões que os surdos têm lutado, pois está se cristalizando a ideia de que surdos só podem estudar no Curso Letras Libras. Curso criado a partir da legislação de Libras, e que tem por objetivo, difundir a Língua de Sinais, dando prioridade na formação de surdos como professores de Libras, o que é um grande equívoco, pois estas pessoas precisam ter acesso a todos os cursos de formação superior, para que eles façam suas escolhas e não fiquem bitolados ao que a universidade oferta como formação.

Figura 24: arquivo pessoal formatura

Fonte: acervo de pesquisa Ronaldo Manassés.

Bianor disse que, mesmo hoje, nas festas de família, grandes reuniões (pois sua família é grande), todos agem do mesmo jeito, à exceção de um primo que sabe Libras e se comunica bem com ele, todos os outros parentes, tios, tias, avô, avó, primos, só usam gestos para se comunicar, ou escrevem mensagens no celular e nem sempre o primo que sabe Libras pode ir as festas ou reuniões de família e ele diz: ― já estou acostumado, sempre falam, falam, riem, enquanto isso eu como e converso pelo celular com meus amigos, não me importo com eles a minha volta‖.

E vendo a página pessoal de Bianor, em uma rede social, é comum as demonstrações de carinho e afeto de seus familiares, entretanto chega a ser

imperceptível para quem não conhece saber que ele é o único surdo em meio a tantos ouvintes, que articulam, oralizam, riem, contam piadas, causos, e tudo mais que ocorre em reuniões de família comumente.

Figura 25: almoço em família, Bianor ao fundo. Figura 26: natal em família

Fonte: acervo de pesquisa Ronaldo Manassés Fonte: acervo de pesquisa Ronaldo Manassés

Em datas festivas como Natal e Réveillon, Bianor afirma: ―é tudo igual pra mim, pois todo mundo vem me abraça, só faz uma cara de feliz, não diz nada, ai depois pego meu prato, vou comer e depois volto pra internet‖.

Ao ver situações como esta da família de Bianor, vários autores me vêm à mente, entretanto, Goffman (2012) é o que mais se coaduna à discussão.

Ao falar das interações face a face e em se tratando de uma família de ouvintes e apenas um surdo, as performances são uma constante. Ao dizer que está acostumado, Bianor demonstra o caráter não só performático, em aceitar a situação de exclusão comunicacional, mas, acima de tudo, um caráter estigmatizado, de alguém que não comunga da mesma língua de seus familiares, mas que precisa manter uma fachada, frente aos seus familiares e estes frente a Bianor.

Goffman (2012) diz que a pessoa que tem sua fachada ameaçada ou cometeu uma gafe frente aos demais, tende a desculpar-se, ou os demais, ao perceberem que a pessoa não terá condições de fazê-lo, tendem a ―salvá-la‖. Assim, um aperto de mão na sociedade educada, que não devesse ser dado, torna-se um

aperto de mão que não pode ser recusado. Na foto de recordação de natal da família de Bianor, todos parecem felizes e satisfeitos com a comemoração, entretanto, ele diz: ―é sempre a mesma coisa, tudo igual, eles vêm me abraçam sorrindo sem dizer nada, eu pego meu prato como e volto pra internet‖.