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O surdo e a relação com a família.

CAPITULO V: Amor e Amores: interações afetivas na comunidade Surda.

5.1 O surdo e a relação com a família.

Ainda há outras questões, como a familiar, a serem analisadas, para que se possa voltar à questão de afeto e construção de relações amorosas para e entre os surdos. Em meus mais de doze anos convivendo com surdos, primeiro como amigo, depois como profissional que atua na área, na educação de surdos, tive oportunidade de conhecer e ver de perto muitas famílias de pessoas surdas. Nesta pesquisa trabalho com onze (11) surdos e em dez (10) famílias destes, os ouvintes não sabem e nunca estudaram Libras para se comunicarem com seus filhos e filhas surdas. Este é o primeiro ponto a ser considerado: a comunicação dentro de casa. Durante todo este trabalho, foi uma constante, na fala dos surdos: ―minha família não sabe língua de sinais‖.

A grande exceção destas trajetórias é a de Gabriel, pois, tem em sua família um suporte muito forte de interação, comunicação e que foi responsável por sua autonomia hoje. Diferente de outros surdos, filhos de pais ouvintes, Gabriel usa Libras em casa naturalmente, com sua mãe, pai e irmãos. Demonstrando que é

possível a socialização mesmo quando a língua entre as pessoas é diferente, mesmo quando as demais famílias pensam não ser possível.

Sendo assim, iniciarei as reflexões tecendo análises sobre o processo interacional de pessoas surdas em suas famílias. E para tal, é necessário entender como surdos desenvolvem sua linguagem e, por conseguinte, uma língua que será, como para qualquer individuo, a base de sustentação, para seu desenvolvimento cognitivo, social, afetivo, educacional e individual.

Retomarei então alguns trechos das entrevistas com os interlocutores surdos, trazendo somente momentos em que falam de suas vivências em casa, com seus pais, familiares como um todo. Para então a partir daí tecer análises, sob a ótica da interação destes.

Figura 54: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

―Nasci surda, minha infância foi muito difícil porque ninguém em casa sabia Libras. Vivia trancada em casa, sem entender o mundo à minha volta. Queria saber o que as pessoas falavam, riam, mas ninguém me ensinava nada. Aprendi a apontar e criar gestos. Até os 12 anos de idade, quando sai de casa e conheci outros surdos, eles até riam de mim, diziam que eu parecia uma criancinha porque perguntava tudo à minha volta — o sinal disso, sinal daquilo. O tempo todo estava chamando alguém do grupo e pedindo pra me ensinar os sinais. E foi nesta época que fui à escola e lá era horrível porque eu não entendia absolutamente nada do que as pessoas diziam. Não tinha intérpretes, a professora falava, falava e eu era igual máquina de xerox, só copiava e fingia que entendia‖.

Figura 55: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Em casa, hoje, meus pais me respeitam, eu ajudo eles na comunicação comigo, mas ainda não aprenderam Libras e eu não me incomodo, me acostumei. Na hora do almoço, por exemplo, eles falam, falam, riem. Às vezes eu perguntava do que estavam rindo? Me diziam: ―depois te explico‖. Hoje não pergunto mais, sento, como, eles estão lá falando, termino, vou para meu quarto e volto a falar com meus amigos pela internet,

facebook etc. Gosto dos meus amigos, tô acostumado com

minha família. Nas férias, eles viajam. Eu não gosto de ir, prefiro ficar aqui com meus amigos. (trecho da entrevista com Bianor, realizada em 05 de novembro de 2014).

Figura 56: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Cleonice nasceu surda, filha de pais ouvintes, uma das interlocutoras desta pesquisa. Mesmo sendo professora na Unifap diz que seus pais ainda não a enxergam como adulta e independente.

―Minha mãe e meu pai brigaram muito comigo, não queriam que eu fizesse o concurso para Oiapoque. Meu pai até disse que iria se mudar pra lá, caso eu passasse no concurso, durante a prova sempre me diziam pra eu desistir. Você é

surda minha filha como vai ser? Mamãe perguntava. Eu não liguei, quero crescer, preciso andar só. Em casa só eu uso Libras, sempre foi assim, antes de conhecer outros surdos eu tentava entender o que diziam em casa porque ninguém usa Libras, foi um tempo muito difícil. Ai aprendi a ler lábios e escrever em português, mas quando era criança foi o mais difícil, não me comunicava com ninguém em casa‖.

Figura 57: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

―Minha infância foi de muito sofrimento porque não sabia Libras, nem português. Me comunicava por gestos, apontando as coisas, inventando gestos para as coisas, para me comunicar. Tive muitas dificuldades para estudar. Só consegui entrar na escola aos 10 anos de idade porque nunca tinha vaga quando minha mãe dizia que era surda. E ao entrar na escola foi muito difícil, os professores me passavam sem eu saber nada. Nunca tive contato com intérpretes durante toda a educação básica, e sempre estudei em escolas de ouvintes. Aprendi Libras em contato com outros surdos que me ajudavam a resolver as atividades, porque os professores não sabiam como me ajudar. Terminei o ensino médio com muita dificuldade, aos 24 anos de idade‖.

Figura 58: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Nasci ouvinte, mas com um mês e meio mais ou menos, adoeci, tive meningite e depois disso perdi a audição. Quando minha família descobriu que eu estava surdo, foi muito difícil, Ninguém em casa sabia Libras, não sabiam como lidar com um bebê surdo. Fui crescendo e aprendendo só gestos. As pessoas me apontavam e eu criava um gesto para as coisas, as pessoas de casa, enfim. Foi um período muito difícil porque eu não entendia nada a minha volta, todos só falavam, falavam (oralizavam).

Figura 59: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Josy, hoje é professora do quadro efetivo da Unifap, diferente de outros surdos, nasceu ouvinte e aos nove (9) meses de vida, contraiu sarampo, tendo febres muito intensas. Ficou internada quase chegando a óbito. Mas sobreviveu e somente um (1) ano depois de curada é que sua mãe descobriu que, devido ao sarampo, tinha ficado totalmente surda. Aprendeu e usava língua de sinais somente

com outros surdos e em segredo, de sua família e da escola. Esta, inclusive, obrigava a família a trabalhar só oralização em casa. Aprendeu Libras muito tarde, já na adolescência, assim como o português, não compreendia quase nada do que falavam na escola.

Figura 60: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Nasci em Macapá tenho quatro (4) irmãos surdos, minha mãe tomou um susto quando o médico disse que eu era surda, só fui para escola aos 6 anos, estudei na escola de surdos em Belém. Só oralismo tempo todo. E foi muito difícil eu não entedia nada, me pediam para falar A, B, C, mas não entendia o que diziam. Depois de um tempo voltei para Macapá porque não podia mais morar na escola. Fiquei 3 anos sem estudar. Voltei só com 9 anos, minha mãe procurou muito até que achou vaga na escola Zolito Nunes. Mesma coisa da outra escola, só oralismo. Mas como era difícil, minha mãe procurou outra escola, fui para o Sebastiana Lenir, mesma coisa só oralismo e ainda estudava numa sala separada, e me chamavam só mudinha, muda, eu odiava. Eu parei de estudar. Mesmo com vários irmãos surdos, os outros da família não falavam em libras com a gente, e até hoje somente alguns sobrinhos sabem, a família é grande e a maioria não sabe Libras.

Figura 61: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Nasci ouvinte, normal, mas ainda criança, não lembro bem qual idade, eu tive catapora. Foi muito forte, muita febre, quase morro. Depois que sarou, perdi parte da audição, não escuto quase nada. Minha infância foi muito difícil porque ninguém falava comigo. Via todo conversando a minha volta e eu só olhando com cara de besta, sem entender. Minha mãe vivia preocupada porque meu desenvolvimento era muito lento. Eu apenas fazia gestos soltos, apontando as coisas, às vezes pegava pela mão e levava até o que eu queria. E foi assim até eu crescer e aprender Libras, e isso depois de muito tempo porque eu não gostava de Libras, achava que era brincadeira, não me considerava surdo, queria viver como os outros.

Figura 62: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Eu nasci ouvindo, normal, mas ainda pequeno adoeci, tive sarampo e depois descobriram que eu fiquei só com 20% da audição, não ouvia quase nada, igual meu irmão Rafael. Foi muito difícil porque ninguém falava Libras, a comunicação era muito ruim. Quando fui pra escola, até a 4ª série eu só olhava e não entendia nada, copiava, copiava, mas não aprendia nada, porque ninguém falava comigo. Não tinha intérprete em sala, os professores e colegas não sabiam Libras. Quando passei para 5ª série é que teve intérprete ai me ajudou porque eu

conseguia entender o que se passava em sala. E neste período fui aprendendo a ler lábios, porque como já falava quando fiquei surdo, isso me ajudou.

Figura 63: cartoon

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Até meus três (3) anos de idade, ninguém sabia que eu era surdo, minha avó um dia desconfiou, ai falou pra minha mãe. Ela muito preocupada resolveu me levar a um médico, e depois do exame confirmaram que eu era surdo. Deste dia até completar treze (13) anos, não falava com ninguém em casa, não sabia Libras, e em casa ninguém sabia se comunicar. Sabia coisas básicas, gestos, apontava o que queria e assim conseguia me comunicar, mas nada, além disso. Foi um tempo muito difícil porque não sabia nada, não falava com ninguém, só fui aprender alguma coisa quando fui para a escola aos treze (13) anos. Ai aprendi Libras e leitura labial, para então me comunicar em casa, porque eles não sabem libras, então faço leitura labial do que dizem.

Após essa volta aos relatos familiares de cada interlocutor surdo, passemos às reflexões. Pois, independente ser surdo ou não, as famílias, como qualquer outra instituição social, têm conflitos, acertos, erros, intrigas, amores, perdas, enfim elementos sociais que constituem um grupo social como este. Entretanto, todos estes elementos estão e são ligados por um fio tecedor. A linguagem, a comunicação. Nos processos diários de interação, sejam eles de amor ou ódio, há uma comunicação entre os pares, entre as pessoas envolvidas.

Ao que parece, para o surdo, há uma imposição, mesmo que em alguns casos velados, de ter que imitar os não surdos. Há uma tensão contra hegemônica, deste grupo de pessoas, que tenta se colocar num mundo que em muitos momentos, não o reconhece como partícipe. O surdo passa a ser considerado,

então, um estrangeiro em sua casa. A hegemonia das famílias de não surdos, trazidas na maioria das trajetórias dos interlocutores desta pesquisa, nos leva a refletir sobre a concepção que a sociedade constrói para pessoas que não apresentam um padrão normativo ou, segundo Goffman (1988), a expectativa que um grupo social faz ao receber um indivíduo.

Neste caso, desde a descoberta da surdez, a família começa a construir o estigma para o surdo. Não compreende que é um ser pleno, com inteligência e total possibilidade de se desenvolver, desde que lhe sejam dadas as oportunidades, as ferramentas adequadas para tal. Em sua grande maioria, as famílias constroem uma visão da surdez, evidentemente como as demais pessoas da sociedade. Têm a visão de que surdez é uma deficiência, uma perda sensorial, que fará toda a diferença na vida da pessoa surda, e consequentemente para estas famílias, ser surdo é ser deficiente.

Strobel (2013) relata que para famílias de surdos, o nascimento de uma criança surda é motivo de festa, de alegria, pois não representa (como para famílias de ouvintes) um problema social. Para estas, o problema está no social, e não na criança surda. Entretanto, quando estes pais levam a criança surda ao médico, sempre são encorajados, e orientados a não usar língua de sinais, pois esta representa um perigo, e a criança estará fadada ao atraso linguístico, e consequentemente, cognitivo e social.

Sá (2012) traz em sua obra a fala de uma pessoa surda ao ser interpelada a dizer o que é ser surdo, ela diz não estar contaminada com o mundo dos ouvintes, e acessa o mundo por meio das experiências visuais. Implica dizer que para os surdos, estes não são deficientes, sobretudo surdos que nasceram assim. É comum, e aqui em meio aos interlocutores desta pesquisa não foi diferente perceber os surdos constantemente dizerem: ―não me sinto deficiente‖, ―como posso sentir falta de algo que nunca tive?‖, ―esta é uma experiência que não faz parte do meu mundo como surdo‖.

O que está marcadamente claro nos relatos dos surdos desta pesquisa é a falta desta comunicação. A ausência de uma interação efetiva entre estes e seus parentes, pais, irmãos e familiares como um todo. O isolamento comunicacional que todos aqui passaram, sobretudo, na infância foi uma marca em suas trajetórias. E esta, sem dúvida, é uma chave analítica para pensar o surdo como um ser em pleno desenvolvimento cognitivo, afetivo e social na mais tenra idade, sem o apoio

necessário para construir os valores, as conveniências, nos termos de Certeau (2013).

Logo uma questão se apresenta: como aprender as regras sociais sem um processo comunicativo efetivo? Como os surdos aprendem a comer, se vestir, andar sem arrastar os pés, a separar questões sociais, das familiares, a se relacionar afetivamente com outros indivíduos quando chegam à puberdade e surgem as diversas indagações da idade? Tentarei elucidar, refletir sobre estas questões a partir então dos relatos dos surdos, na busca por um pensar sobre as questões afetivas para este grupo tão singular.

Entretanto, antes de partir para a análise da aquisição da linguagem como elo entre os sujeitos de uma família, uma questão me chamou atenção. Depois de minha ida ao campo já encerrada, sem mais nenhuma intenção de pesquisa. Saí para tomar um café da tarde com uma de minhas interlocutoras surdas, e esta me confidenciou muitas histórias de sua vida, como mulher, esposa, filha, e, sobretudo, a marca estigmatizante de ser surda.