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Povo Surdo, um conceito a ser apropriado.

CAPÍTULO 1: UM INTÉRPRETE E DOIS MUNDOS

1.5 Povo Surdo, um conceito a ser apropriado.

Para trabalhar este conceito na tese, uso inicialmente o conceito clássico, ou para os surdos, o conceito criado pelos ouvintes para o termo surdo. Se acessarmos qualquer dicionário de língua portuguesa ou autores ouvintes, encontraremos o mesmo significado para a palavra surdo. O de que faz referência a pessoa que tem perda auditiva em escala leve, moderada ou profunda. Ou seja, não consegue ouvir como as demais pessoas. Embasados na questão biológica, fisiológica e, consequentemente, da incapacidade, da deficiência.

Para além desta questão, biológica, fisiológica é importante também refletir-se sobre o conceito de comunidade, uma vez que é comum ouvir no meio educacional e/ou social a expressão ―comunidade surda‖, já mencionada anteriormente. Para tal análise, uso como reflexão as conceituações de Buber (2012). Justificando, o uso do autor para esta análise se dá justamente por usar um conceito mais amplo para comunidade e não, como ele diz o de muitos sociólogos em que afirmam que é uma forma de vida ligada tão somente pelo instinto natural em contraste com a sociedade, que seria regulada por convenções externas (BUBER, 2012).

Para Buber (2012), há sim comunidades que se definem por laços de sangue e seguidoras de tradições imemoriais, mas são, como afirma, um dos tipos de comunidade e não o único conceito a ser considerado. Na verdade, a sociedade deve considerar a possibilidade então de uma nova comunidade. Aquela baseada na livre escolha de seus participes e intrínseca à vida e não amarradas aos laços de consanguinidade.

Para este autor, toda nova comunidade representa, para as antigas, estranhamento e, não somente isto, mas também a necessidade de avaliar para qual finalidade este novo surgiu. Para quê esta nova comunidade está vindo. Estas são questões comuns em comunidades antigas e marcadas pelo comodismo (BUBER, 2012).

Diferente de outros autores da sociologia, Buber (2012) não romantiza as comunidades antigas, como a família, as tribais, enfim. Ao contrário, diz que estas não findam o conceito de comunidade por serem pré-sociais. E para além dessas conceituações, o autor então denomina uma nova comunidade, a de pós-sociais, estas com um conceito muito mais amplo e abrangente que as tribais, e que

estariam impregnadas em seus sujeitos, independente das barreiras geográficas, consanguíneas ou de proximidade.

Implica dizer que um indivíduo pertence a uma mesma comunidade, mesmo que este nunca tenha visto o outro. Mesmo que eu não o conheça, este novo, mesmo distante, poderá ter muito mais semelhanças comigo, do que alguém que convive no mesmo espaço territorial.

É interessante a construção conceitual de Buber (2012) para comunidade, pois se desprende de velhas concepções, e assim, contempla outras possibilidades, como é o caso da comunidade surda brasileira. Neste, sentido pode-se dizer que sou desta comunidade porque sou usuário de Libras, porque tenho estreito contato com surdos do Amapá, do Ceará, do Pará e com outras pessoas ouvintes que também atuam nesta área, seja como professores de Libras, seja como intérpretes, ou ainda familiares de surdos ou do poder público engajados pela luta de direitos dos surdos.

Segundo Goffman (2012) as interações sociais são determinantes neste processo, pois surdos e ouvintes, a partir do uso comum da Libras, diminuem o abismo social que, historicamente, tem separado e até dicotomizado estes grupos sociais, surdos e ouvintes aqui passam a se aproximar e usar, segundo Goffman (2012) as diversas possibilidades de interação face a face.

Seguindo a discussão, então aqui se pode refletir sobre a comunidade surda amapaense, brasileira. Que comunidade então é esta? Que laços as constituem? A partir da reflexão de Buber (2012), pode-se caracterizar a comunidade surda da seguinte maneira: é formada basilarmente por surdos, usuários da Libras, ou não usuários, mas também por seus amigos, parentes, intérpretes de Libras, professores, enfim, por tantos quantos sejam que se utilizam da Libras para interagir, se comunicar com indivíduos surdos e de uma mesma região. Logo, então ela se compõe de indivíduos surdos e de ouvintes.

Não há o chamado purismo, por alguns que acreditavam que a comunidade surda deva ser formada somente de surdos usuários de Libras. Esta é uma forma de aproximação e interação, a língua, mas não é e nem pode ser tida como a única.

Neste contexto, da comunidade surda, a dicotomia historicamente formada, Surdos X Ouvintes tende a se dissipar, e na verdade, deve dissipar-se para que o processo de inclusão social das pessoas surdas se efetive. Tudo leva a crer que esta disputa por espaço social deve deixar de existir.

Para Strobel (2012) já mencionado anteriormente, a comunidade surda brasileira segue os moldes da chamada nova comunidade, descrita por Buber (2012), uma vez que se caracteriza pela presença de surdos e ouvintes usuários da Libras e que juntos interagem e lutam por uma política de bilinguismo, biculturalismo e inclusão social dos surdos.

Seguidamente então, tentarei discorrer acerca do conceito recentemente empregado na comunidade surda brasileira — povo surdo. Para tal construção, usarei como fonte o trabalho de Strobel (2012). A referida autora concebe como povo surdo, pessoas surdas fluentes em Libras e que por conta desta se aproximam e comungam de objetivos e modo de interagir com o mundo, ou seja, por meio da experiência visual. Nesta construção independe a região, o ponto que os situa geograficamente, pois, a partir da Libras, tendem a se aproximar e comungar de ações, conceitos, modos de pensar e agir comuns entre eles.

Mas como a antropologia entende o que seja povo? É importante fazer uma discussão sobre esta visão antropológica, para que então volte aos escritos de Strobel (2012), sobre o que esta tem requerido como uma possibilidade de sujeitos que se distinguem dos demais brasileiros.

Boff (1991) diz que tentou fazer uma construção teórica, para conferir um conteúdo analítico à palavra povo, a fim de lhe atribuir conceituações que pudessem ser usadas por aqueles que, de alguma forma, se sentem excluídos no meio social. Poderia então relacionar ao que Strobel afirma em suas construções ao afirmar que há um ―povo surdo‖? Notadamente, sabe-se que é uma parcela da sociedade que historicamente vive excluída, entretanto, não somente este fator pode ser determinante para que se reconheça, nos surdos, um povo, como são os indígenas por exemplo.

De acordo com Strobel (2012), povo surdo pode ser qualquer surdo, independente do lugar de moradia, seja índio, mulher, homem, branco, negro, mesmo implantados (implantes cocleares), surdos com orientação sexual diferente, ou seja, homossexuais, bissexuais, definem o conceito de Strobel (2012).

Esta conceituação vai de encontro ao que diz Boff (1986), pois, para este, povo é um grupo social que tem valores, crenças, língua e, sobretudo, lugar territorialmente demarcado, fixado. Existe ainda um segundo conceito para povo, que significa um grupo de pessoas com direitos e interesses em comuns, convalidados pelo Estado. Ou ainda uma terceira possibilidade conceitual, a de que

povo seria aquele evocado pela política, que está diretamente relacionado aquela parcela pobre da população.

O que fica evidente então nas afirmações da autora surda, Strobel (2012) é o reconhecimento de um novo conceito para povo, a partir do reconhecimento de valores, de costumes, de ideais, de uma língua, de uma cultura, contrariando a antropologia, transformando o conceito de um povo é constituído em um lugar único, em que estas pessoas viveriam, como o caso dos indígenas brasileiros, por exemplo. Seriam reconhecidos como povo surdo, sobretudo, pelo fator linguístico- cultural, ou seja, seriam pessoas que constroem sua experiência com o mundo, a partir de experiências visuais, e não auditivas como os demais brasileiros.

Evidentemente esta é uma discussão que não se encerra aqui, nem tampouco com as pesquisas dos autores surdos. É preciso ainda mais estudos antropológicos para que se possa então reconhecer e convalidar esta nova possibilidade de conceituação para povo, e ainda mais, um povo surdo.

Participando do grupo de trabalho Etnografias da deficiência, que se constitui como um novo grupo nas Reuniões Brasileiras de Antropologia e Congresso Brasileiro de Antropologia (ABA), em duas versões, 2015 e 2016, pude apresentar dois artigos refletindo sobre as possibilidades de interação do surdo na sociedade e, como este tem acessado espaços sociais em Macapá. Pude perceber o quanto ainda necessitamos de mais aprofundamento nas pesquisas.

O que tenho visto nos movimentos sociais surdos é uma luta por reconhecimento linguístico, mas como bem já trouxe esta discussão anteriormente, como todo grupo minoritário, os surdos também iniciam sua luta política por reconhecimento a partir da cultura. Ocorre que antes de serem surdos, são brasileiros, com características linguísticas distintas dos demais e é neste fator, o linguístico, que precisam se fortalecer em suas lutas para então buscarem o reconhecimento, que inclui também o educacional, como bem destacam desde o Plano Nacional de Educação (PNE), de 2010. Quando lhes foi negado o direito a escolas bilíngues, esta luta por reconhecimento se acentuou. Mas sobre este ponto retomarei em outro capítulo com mais profundidade.

Entretanto, o que se percebe nas afirmações da autora surda é que há uma distinção entre povo surdo e comunidade surda. O primeiro independe de lugar ou de ser usuário ou não de língua de sinais e ainda não cabem ouvintes, ou não surdos, já o segundo, incluem-se surdos, não surdos e usuários de Língua de Sinais,

desde que estejam em um mesmo ponto geográfico, uma região específica, ou seja, a comunidade surda do Amapá, do Pará, do Ceará.

A partir da discussão de povo surdo, outra questão se coloca em evidência, a da identidade e identificação, e para refletir sobre tal questão baseei-me em alguns escritos de Bauman (2012) e Silva (2000). Não tenho aqui a pretensão de definir ou construir um conceito sobre identidade, mas sim de fomentar uma discussão antropológica sobre o que alguns autores da educação chamam de identidade surda e que tem há muito me inquietado como pesquisador. Afinal, existe uma identidade surda? Se existe, como estes a constroem no mundo social? Que mecanismos usam para identificarem-se como surdos? Existem algumas correntes que reforçam piamente a ideia de que existe uma identidade surda e que, esta define o ser surdo como sendo diferente do não surdo, do ouvinte.

Neste contexto, posso inclusive alçar mão de Silva (2000), ao dizer que a identidade está intimamente ligada à diferença e que esta, na verdade, se baseia na negativa de algo, para construir uma imagem. O autor afirma que o brasileiro só se apresenta como tal, a partir da negação de que não é italiano, norte-americano ou chinês. O negro, assim se define porque afirma não ser branco, o índio, assim se afirma porque diz não ser negro. Neste sentido, o surdo assim se define porque nega ser ouvinte.

A construção de uma identidade ou identidades se baseia na negação do contrário, do contraditório. Eu preciso então de uma dicotimização, de uma polarização. Surdos X Ouvintes, Negros X Brancos, Indios X Não índios.

Para Bauman (2012) a construção de identidades surge na discussão de comunidade, pois só se fala de sua identidade a partir do questionamento de comunidade, ou seja, quando um indivíduo é questionado a qual comunidade, grupo social pertence, sobretudo, quando vem de uma comunidade de ideias, aquelas nas quais os sujeitos são ligados por laços de interesse e não de consanguinidade.

Além disso, a identidade, assim como o pertencimento, não é fixa, estável, cristalizada. Ao contrário, é bem negociável, até certo ponto revogável, pois está ligada às decisões, às escolhas e caminhos que o indivíduo toma em sua trajetória de vida. E o mais interessante, diz Bauman (2012), é que as pessoas esperam que as outras se autodefinam, ou seja, digam quem de fato são e a que grupo pertencem.

Se assim acontece, os ouvintes esperam que os surdos se definam de alguma forma. Mas se pensarmos que a identidade, como bem disse Bauman, está ligada à comunidade que o indivíduo pertence, como os surdos então se definiriam? O que tenho percebido nestes mais de 10 anos de trabalho, convivendo com surdos é que a grande maioria não sente a necessidade de definir sua identidade a partir da diferença de ideias, mas, sobretudo, a partir do marcador linguístico. E se assim este grupo fizer, estará reduzindo a discussão de identidade, pois como bem já dissemos não se pode definir a identidade somente a partir de aproximações linguísticas, é preciso mais que isto.

Entretanto há alguns marcadores que os surdos usam para definir sua identidade, como surdo, quais sejam: as experiências visuais, organizadas, sobretudo, pela língua de sinais, e por isso muito confundida como o único fator determinante para a construção de sua identidade.

Durante as entrevistas, todos os interlocutores surdos mencionaram sua vida difícil, com sua família, a escola, o trabalho e demais áreas sociais, sempre relacionando esta dificuldade ao fator linguístico e não a questões ideológicas, por exemplo. Não se definiram como surdos e partícipes de uma comunidade, ou como já trabalhei aqui, como povo surdo.

Neste sentido, compartilho das concepções de Bauman (2012), ao dizer que a identidade é a descoberta de uma série de problemáticas e não uma campanha única, ou seja, não há uma única possibilidade. É dizer então que o ser surdo tem sim peculiaridades linguísticas, mas também é pai, é filho, é filha, é aluno, é professora, é amante, como qualquer outro indivíduo, evidentemente com características próprias, como usar de forma exacerbada o campo visual, ser mais direto e não usar eufemismos. Por se apoiar numa linguística espacial, a partir de sua língua, acaba transpondo estas características para suas interações sociais com outros indivíduos.

Sendo assim, usando as concepções de Bauman (2012), seria ingênuo afirmar que há uma ―identidade surda‖, é preciso mais reflexões sobre a questão, uma vez que os surdos, assim como os ouvintes, estão e são expostos a vários tipos de comunidades. Portanto, em dado momento da vida, na qual o indivíduo é questionado sobre sua identidade, este descobre que sua identidade é, na verdade, um emaranhado de possibilidades a inventar e não algo pronto e acabado, ou ainda,

que não é uma construção que se inicia a partir de uma folha em branco, é sim uma verdade que está inconclusa.

Poderia então dizer que o ser surdo não pode definir uma única identidade estaticamente, ou biologicamente, pois ela está em constante construção. A condição de não ouvir é um dos fatores para a construção de uma identificação com outros surdos, a partir da questão linguística e visual, e não de uma identidade. Há aqui uma questão de busca por identificação com outros surdos.

É comum surdos, filhos de pais ouvintes, sem ter contato com outros surdos, crerem que são os únicos no mundo a não ouvirem e oralizarem como sua família, tanto quanto o inverso. É comum crianças surdas, filhas de pais surdos, acreditarem que todas as outras pessoas são surdas, até que tenham contato com o diferente.

Assim, é difícil afirmar que exista uma identidade surda, pois a identidade de um sujeito não pode ser definida por sua língua, no caso dos surdos, a língua de sinais, que é definida por suas experiências sociais, suas interações, e suas trajetórias de vida (SANTANA & BERGAMO, 2005).

É preciso então o reconhecimento de uma política linguística para o surdo, e não o reconhecimento de uma identidade. Entendendo esta como uma construção constante, torna-se um equívoco requerer identidade ou identidades surdas, a identificação com outros surdos lhes dão força política e solidez em seu processo cultural. Entretanto, requerer outra identidade a partir do uso de uma língua é um tanto reducionista para se pensar em construção de identidades e não se está negando a língua de sinais, mas dizendo que ela é um dos fatores que colaboram para que surdo se identifique com outros surdos e não que a partir dela se construa uma identidade surda.

CAPÍTULO II: DESAFIOS METODOLÓGICOS