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CAPÍTULO IV: Espaços Sociais de Interação 4.1 Relações de Invisibilidade e Silenciamento.

4.2 O mundo do trabalho

Existe um campo específico para o surdo atuar/trabalhar? A educação precisa ser diferenciada? E quanto às práticas esportivas, são diferentes das práticas esportivas de ouvintes? Estas são algumas indagações que permeiam o universo entre surdos e ouvintes, pessoas que acessam o mundo por outra via de acesso, que não a convencional, ou seja, oralizar e ouvir. Sendo assim, neste capítulo tentaremos discorrer sobre três campos muito importantes na vida de pessoas surdas, tanto quanto na vida de qualquer outra pessoa, mas respeitando sua singularidade. A educação, o trabalho e o lazer.

Neste sentido, penso não ser possível falar sobre trabalho sem acessar os escritos de Marx (1988), ao discutir as relações de trabalho que o mundo contemporâneo construiu a partir da emancipação do modelo capitalista. Analisando tal discussão direcionada os surdos, percebemos que a sociedade ainda o vê a partir de uma visão positivista, funcionalista, bem distinta daquela proposta por Marx (1988). Esta poderia ser uma forma de análise para as relações de trabalho que os surdos têm construído na sociedade contemporânea.

O mundo do capital olha para as pessoas, segundo Marx (1988), apenas como produto a ser negociado. Sua força de trabalho tem um valor no mercado, que inclusive pode variar, como qualquer outro produto na relação entre oferta e demanda.

É sabido que há uma legislação de amparo às pessoas com deficiência no Brasil, no tocante ao trabalho. A Lei nº 8.213/91, também conhecida como lei de cotas, prevê um percentual de 5% das vagas em empresas com 100 ou mais funcionários, tanto quanto prevê vagas em concursos públicos para pessoas com deficiência. A Lei completa, este ano, 25 anos de promulgação, e órgãos do governo apontam um grande crescimento no acesso de pessoas com deficiência ao mercado de trabalho. Mas há que se questionar sobre as condições dessas pessoas no trabalho. Como são vistas socialmente? Que imagens são construídas socialmente pelos demais colegas de trabalho?

Gabriel, quando entrou na universidade como professor efetivo, teve muitas dificuldades em acessar os ambientes, as pessoas desconheciam completamente sua condição linguística, não havia intérpretes de Libras em nenhum ambiente da universidade, e ainda sabia de discursos no sentido de questionar sua competência técnica como docente. Algumas pessoas diziam: ―ele é surdo, como vai dar aula?‖. Rafael, mesmo depois de concluir o curso superior em pedagogia, pediu remanejamento de função na escola em que trabalhava, pois, até formar-se, trabalhava como servente na cozinha da escola. Ao concluir o curso superior, pediu que fosse remanejado. Assim o fizeram. Foi lotado na secretaria da mesma escola, e Rafael conta que depois de dois meses, pediu para voltar para a cozinha, porque era literalmente ignorado: ―as pessoas fingiam que eu não estava lá, nunca me davam nada para fazer, e todo dia eu insistia pedindo alguma coisa para fazer, aí me cansou e pedi para voltar para a cozinha, lá ninguém me despreza e minha comida é gostosa, todos elogiam‖.

Cleonice foi aprovada em janeiro de 2016 como professora efetiva da Unifap para o campus em Oiapoque. Desde esta época, foi recomendado que a administração providenciasse a contratação de intérpretes para o local, pois ela é surda e as pessoas não sabem Libras. Ela vai tomar posse nos próximos dias (julho de 2016) e já está preocupada, pois sabe da situação que a espera, ninguém sabe Libras, ela será a única surda da universidade naquele local e, até então, não houve nenhum movimento da administração no sentido de evitar os problemas que certamente se evidenciarão em poucos dias, quando Cleonice passar a frequentar o campus de Oiapoque como docente.

No jornal Bom dia Brasil desta semana, 06 de julho de 2016, uma noticia chamou a atenção do público. Um café em Tóquio, em que todos os funcionários são surdos, os fornecedores afirmam que já se adaptaram, levam papel e caneta e se comunicam sem problemas quando não entendem a língua de sinais. Prevendo que muitos clientes não saibam língua de sinais, o dono do café pôs numa parede um revestimento de papel, para que quem não saiba sinalizar escreva seu pedido, e assim são atendidos sem nenhum problema. O repórter, ao perguntar para o dono por meio de uma tela, parecida com um tablet, em que se escrevem mensagens (pois o dono também é surdo), o motivo pelo qual contratou somente funcionários surdos, ele respondeu: ―queremos mostrar a sociedade tudo o que uma pessoa surda pode fazer, mostrar o nosso valor, deixar bem claro o que podemos oferecer a sociedade. O Japão tem leis que obrigam as empresas a destinarem vagas a pessoas surdas, mas sempre são funções muito simples, as empresas não se

adaptam, o que desmotiva os surdos e acabam abandonando o trabalho‖. O repórter

brasileiro segue e a entrevista e encontra no café um grupo de surdos dos Estados Unidos, que souberam do lugar e foram visitar, eles viajam em grupo, já conheceram

vários países, um deles escreve para o repórter; ―deaf peaple can do anything‖ —

Figura 43: Bom dia Brasil e a noticia do café de surdos.

Fonte: arquivo de pesquisa. Ronaldo Manassés.

Assim como no Japão, o Brasil também tem leis para o acesso, não só de surdos, mas de qualquer pessoa com deficiência no mercado de trabalho, e tanto quanto num país tão desenvolvido como o Japão, as dificuldades são semelhantes. Nos relatos de Gabriel, Cleonice, Rafael e Dayse, é sempre uma constante a subalternidade que o surdo é obrigado a passar no seu local de trabalho.

Para refletir tais questões, é preciso dialogar com Foucault (1979), ao relacionar os mecanismos de poder na sociedade como busca de emancipação de alguns grupos sociais. Como é o caso de surdos. Estes, já há algum tempo, vêm debatendo, organizando-se politicamente, no sentido de buscar mais espaço social, mais reconhecimento como grupo socialmente existente, e até a desconstrução de vários estigmas produzidos pela sociedade ouvinte. A esta luta os surdos têm chamado de ―luta contra o ouvintismo‖, que, apoiado em Foucault (1979), eu chamaria de uso de mecanismos de poder dos ouvintes para subjulgar aqueles que não falam e escutam como os demais.

Josy hoje é professora do quadro efetivo da Unifap. Diferente de outros surdos nasceu ouvinte e aos nove (9) meses de vida contraiu sarampo, tendo febres muito intensas, ficou internada quase chegando a óbito, mas sobreviveu e somente um (1) ano depois de curada é que sua mãe descobriu que, devido ao sarampo, tinha ficado totalmente surda e assim como grande parte dos surdos brasileiros que nasce em famílias de ouvintes, teve muitas dificuldades, estudou sua infância numa escola de surdos em Belém que primava pelo oralismo, era proibida de usar Língua de Sinais, assim como em casa. Aprendeu e usava língua de sinais somente com outros surdos e em segredo de sua família e da escola, que inclusive obrigava a

família a trabalhar somente com a oralização em casa. Aprendeu Libras muito tarde, já na adolescência, assim como o português, e não compreendia quase nada do que falavam na escola. Diz que era um sonho antigo ser docente de uma universidade e hoje, sendo uma professora, lamenta muito a falta de mais intérpretes e, sobretudo, de mais interesse das pessoas em aprender Libras. Diz que um dos maiores desafios no dia a dia de trabalho é a falta de contato dos ouvintes:

―A maioria não faz questão de se comunicar conosco. Somos três (3) professores surdos e mesmo assim, as pessoas insistem em direcionar sua fala para os intérpretes, às vezes fingem que não nos veem, evitando o olhar. As coordenações não sabem Libras, e nos forçam a ficar dependente dos intérpretes. É preciso ter um equilíbrio, pois só temos cinco (5) intérpretes, não é possível vivermos grudados neles o tempo todo na Universidade. É preciso que as pessoas respeitem os surdos, precisam interagir mais conosco, não só aqui que é meu local de trabalho, uma universidade, mas em toda a sociedade. Por exemplo, eu preciso ir à biblioteca, quero ter autonomia em buscar e fazer minhas pesquisas, mas sou impedida porque lá ninguém sabe Libras e se o intérprete não tiver disponibilidade naquele momento, fico com meu trabalho comprometido, isso é muito ruim. Mas eu tenho fé que isto mudará no futuro, pois somos três (3) professores surdos, como eu disse, começamos a mudar a realidade com nossa presença aqui‖. (fala da profa. Josy, entrevista em 27.01.2016)

Lacillotti (2003) diz que o trabalho é a condição principal que define o homem como ser humano, é o que o caracteriza como tal. E quando esta condição é negada a um indivíduo, poderíamos então dizer que sua condição como ser humano está comprometida. Na vivência de Josy como docente universitária, ainda há o adendo de ser concursada e não correr o risco de perder o emprego pela falta de adaptação da universidade, no tocante à sua comunicação, mas, se pensarmos em outros surdos, aqueles que trabalham em empresas privadas, a grande maioria abandona o emprego por situações semelhantes às que Josy relatou em seu cotidiano da Unifap. Neste contexto, Carvalho e Castro (2013) apontam que o Governo Federal deixou de investir na educação das pessoas com deficiência. Os números são estarrecedores, pois não chega a 12% o quantitativo de escolas acessíveis no Brasil, e mais, destas escolas, 80 % estão no sul e sudeste do país, e menos de 0,1 % dos universitários têm algum tipo de deficiência. Logo, além de não conseguirem se manter no trabalho, surdos e pessoas com outras deficiências não têm sequer a qualificação, não têm acesso à formação adequada.

E ainda de acordo com Carvalho e Castro (2013) há que se comemorar, pois, em 2001, não passava de 100 mil o número de pessoas com deficiência contratadas em regime de CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), em 2013, este número saltou para 300 mil. E ao considerar o quantitativo de surdos que estão fora, não só do mercado de trabalho, mas até da educação, este número chega a ser irrisório.

Sendo assim, a situação que se apresenta para os surdos no mercado de trabalho ainda é, antes de qualquer coisa, um grande desafio, pois estas pessoas precisam não só mostrar competência técnica, como qualquer outro profissional, mas, sobretudo, mostrar uma competência que está diretamente ligada ao fato de não ouvirem e usarem outra língua diferente do português do Brasil, está ligada a discussão de ser capaz ou não como indivíduo, como ser humano. O mundo do trabalho ainda é um ambiente estigmatizante, excludente e sem muitas perspectivas para as pessoas surdas.