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CAPÍTULO 1: UM INTÉRPRETE E DOIS MUNDOS

1.2 A História Cultural dos Surdos

Para iniciar tal discussão é preciso antes, fazer uma justificativa preliminar para que o leitor possa compreender, a priori, como se relaciona a questão do surdo como ator social, e o mundo contemporâneo. Assim historicamente a pessoa com surdez foi negada pela sociedade. Dados históricos, como em Mazzotta (1996), dão conta de que estas pessoas eram sacrificadas ou abandonadas até morrer por seus parentes ou líderes das comunidades que nasciam.

Durante a Idade Antiga, os surdos não podia sequer sair às ruas, quando isto ocorria eram impedidos de relacionar-se com os demais transeuntes, a Igreja, por exemplo, os tinha como sub-humanos, logo ficavam do lado de fora dos cultos religiosos, porque não tinham linguagem oral, logo não tinham discernimento suficiente para acompanhar os ritos, algum tempo depois, já na Idade média, o surdo passou a ter direito à vida, mas ainda assim vivendo em guetos ou abrigos para não se misturar à sociedade porque esta acreditava que ele não tinha alma, assim não podia ser humano e partilhar das mesmas coisas que os demais (PEREIRA, 2008).

E finalmente hoje a sociedade do século XXI sabe da existência do surdo, porém não compreende sua língua, suas experiências culturais e sua constituição identitária e um dos fatores para isso é o modo peculiar de comunicação que este usa para acessar o mundo à sua volta.

No que tange à Educação dos Surdos, não foi diferente. Tiveram sua educação negada e, até meados do século XV, ainda nenhum direito lhes era assegurado. É somente no século XVI que se encontram os primeiros registros de educadores fazendo algum trabalho com surdos. Trabalhos esses que envolviam o ensino e a aprendizagem de uma língua comum. O monge Beneditino Pedro de Leon (1620-1584) trabalhou com quatro surdos e os ensinou a falar latim, grego e italiano e ainda desenvolveu uma metodologia que envolvia a datilologia, escrita e oralizada e também fundou uma escola de professores surdos (GOLDFELD, 2002).

Nesse sentido o que se percebe é um grande abismo entre a sociedade e a pessoa com surdez, primeiro porque esta não foi constituída para abrigar pessoas que não ouvem e não oralizam como os demais ou com qualquer outro tipo de deficiência. Segundo porque ao que parece, a sociedade ouvinte espera que o surdo

se integre ao cotidiano social, como se a responsabilidade por incluir-se fosse totalmente dele.

É comum ouvir de famílias de ouvintes que têm algum filho surdo expressões como:

meu filho é bilíngue, ele foi oralizado fizemos implante coclear então só agora que ele descobriu esse mundo de sinais, mas ele nem precisava porque ―fala muito bem‖. Ou de surdos, filhos de pais ouvintes dizerem: meus pais viajaram de férias com meu irmão não fui porque sempre é a mesma coisa eles conversando e quando pergunto por que estão rindo dizem que depois me explicam e nunca me dão atenção aí melhor não ir (fala de um dos interlocutores da pesquisa).

Na verdade em relação ao contexto educacional citado anteriormente surge a falácia da inclusão, com promessas de escola para todos, educação de qualidade e pública. Mas sabe-se que não há espaço para todos. Que equipamentos e estruturas são necessários para uma universidade para todos? A verdade é que o discurso da inclusão tem se tornado um discurso vazio, à medida, que não contempla nem mesmo aqueles que propõe incluir.

A este respeito Leite (2007) diz que não há espaço para todos, é preciso equipamentos e estruturas para atingir uma universidade para todos, por exemplo, e que neste sentido o discurso da inclusão é estigmatizado e se torna vazio. Pois nem para os que se propõe incluir consegue realizar de fato o processo de inclusão. E aqui entram no rol pessoas com deficiência e sem deficiência e que são excluídos da mesma maneira.

No Amapá os surdos não tiveram uma história diferente de outras comunidades surdas ao redor do mundo. Os relatos que se tem são de que os primeiros registros de surdos em escola se deram em meados de 1971, na Escola Estadual José de Anchieta e que à época atendia alunos com deficiência intelectual, cegos e com deficiência física. E não se tinha nenhuma política de atendimento institucionalizada para estes alunos, pelo então Território Federal do Amapá, hoje Estado do Amapá.

Os surdos foram matriculados na escola sem nenhuma preocupação desta com a língua de sinais ou presença de intérpretes, uma vez que a esta época não se tinha o reconhecimento por força de Lei (Lei nº 10.436/2002) da Libras como língua.

Entretanto, a partir deste ponto me proponho a relatar e trazer à tona outra abordagem sobre a história dos surdos, tentando-me ―despir‖ das amarras de ser

ouvinte e em certa medida ―colonizador‖ dos surdos. Trarei um cotejo da história cultural dos mesmos, que para muitos ainda é desconhecida, uma vez que é contada pelo próprio sujeito da história.

Perlin e Strobel (2014: 21) afirmam que entre os surdos a história cultural é aquela que contada pelo ouvinte, e que elas chamam de colonizador, contando sempre a mesma história, descontextualizada, cheia de sofrimentos e exclusão por falta da audição as pessoas surdas, relatam sempre a incapacidade destas pessoas e a forma de exclusão que passaram no passado, desconsiderando totalmente as produções, as alegorias culturais dos surdos no tempo.

Sendo assim, esta é outra visão, outra maneira de relatar a história dos surdos no mundo. E tenho a preocupação de aqui trazê-la para que este trabalho não incorra no mesmo equívoco já mencionado por autores surdos, como as mencionadas na citação acima, em outros momentos.

Por isso, a história cultural dos surdos tem uma diferença marcante. Também relatam a luta por espaço na sociedade, por direitos à escolarização, à saúde, enfim. Qual a grande diferença? Está exatamente em não esquecer os atores surdos. Em não relatar sua história pelo viés da deficiência e incapacidade como os ouvintes fazem comumente. Em não colocá-los em situação de inferioridade. Pois ao dizer que ―aceita‖ o surdo, o ouvinte parte do princípio de que está numa situação de superioridade. Sendo assim o surdo passa a ser ―considerado‖, ―respeitado‖, ou seja, desde que este viva entre seus iguais poderá viver naturalmente em sociedade. “Não quero só dizer oi para as pessoas aqui nos corredores da universidade, diga pra eles que gostaria de ter uma conversa de verdade‖ (fala de um dos surdos interlocutores da pesquisa).

O exemplo dado acima vai ao encontro das colocações de Silva (2014) quando trata do multiculturalismo e diz que comumente este se apoia num vago e benevolente apelo à tolerância, e que este é um grande problema, na medida em que, ao apoia-se desta maneira, a concepção de multiculturalismo e, por conseguinte, diversidade de pessoas, se baseia numa falsa aceitação, no caso dos ouvintes, um pensar benevolente e tolerante ao surdos, ou seja, de olhar para este numa perspectiva de superioridade, essencializando a questão da surdez a fatos sociais e por assim fazer a questões liberais da vida cotidiana.

Neste sentido, os surdos ao alçarem mão da história cultural, conceito elencado por Strobel e Perlin (2014), querem na verdade, mostrar que são autores e

atores de sua história, de sua trajetória. Já que esta sendo contada pelo próprio surdo denota também um viés de luta, de embate, de poder entre surdos e ouvintes. A historiografia dos surdos ao ser constantemente mencionada por ouvintes denota claramente sua relação de poder e de construção de saber que tem sido estabelecida entre estes grupos sociais. Foucault (1979) a este respeito, faz uma brilhante discussão, ao afirmar que o poder produz saber, e que, aliás, não é possível se ter uma relação de poder sem estar imbricada numa correlação de saber.

Neste contexto, a partir da história cultural, o que se quer é falar dos surdos não mais como pessoas fisiologicamente incapazes e por isso lutam por seu espaço social e sim a partir de seu próprio discurso ouvi-los em suas peculiaridades, discordâncias, e experiências com o mundo. É entender que a produção do saber fazer tem que vir do surdo e não mais dos ouvintes querendo resolver as problemáticas do surdo.

Do contrário incorreremos no mesmo equívoco do Congresso de Milão ocorrido em 1888 em que professores ouvintes decidiram que a melhor forma de se ensinar e educar surdos eram por meio da filosofia oralista. Mesmo tendo na plateia professores surdos estes foram impedidos de votar para decidir qual seria a melhor ou ideal maneira de se trabalhar nas escolas com surdos.

De acordo com Goldfeld, (2002) há três grandes possibilidades, filosofias educacionais para se ensinar os surdos. A primeira delas é a filosofia oralista, em que se busca fazer com que a pessoa surda emita fonemas como as pessoas ouvintes, e nesta filosofia o mais importante é a oralidade. A segunda é a filosofia chamada de comunicação total, nesta toda e qualquer possibilidade de comunicação para ensinar os surdos é tida como válida. E a terceira e última é a filosofia do bilinguismo, muito evocada pelos surdos do Amapá, como proposta educacional mais adequada para ensiná-los.