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A relação entre bioética e direitos humanos é tema sujeito a controvérsias entre as diversas correntes bioéticas. A necessidade de proteção dos seres humanos, de imediato, evidencia uma confluência de objetivos entre a bioética e os direitos humanos, mas essa constatação está longe de significar a existência de um consenso sobre o significado da relação entre esses dois campos de conhecimento. Essa relação, contudo, foi reforçada quando da aprovação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), que reconhece a dignidade humana como um princípio a ser respeitado nas decisões daqueles para os quais a Declaração é dirigida, colocando-a junto aos direitos humanos:

Artigo 3 – Dignidade Humana e Direitos Humanos

a) A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser respeitados em sua totalidade.

b) Os interesses e o bem-estar do indivíduo devem ter prioridade sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade. (1)

Neste trabalho, abraçamos a tese de que os direitos humanos são uma referência importante e essencial para a bioética, por seu caráter universal e por protegerem bens fundamentais, como a igualdade e a dignidade, conforme explicitado por Hottois (1993),

Como os desenvolvimentos recentes das ciências e das técnicas da vida são a fonte ou o lugar de novas formas de poder, de controle e de liberdade, os Direitos Humanos são solicitados com o fim de ajudar a assegurar a regulação desses novos poderes, domínios e liberdades no respeito pela igualdade e pela dignidade. (apud Durand, 2003, p. 249) (73)

Essa afirmação de Hottois explicita a relação estreita entre bioética e direitos humanos, quando estes últimos são chamados a ajudar a regular os “novos poderes” decorrentes dos avanços biotecnológicos, que é, claramente,

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tema do campo de reflexão e atuação da bioética. Mas não se restringe aí a zona de confluência entre a bioética e os direitos humanos.

Ao estudar a interface entre bioética e direitos humanos, por meio da análise da literatura e de documentos normativos produzidos no campo da bioética, Oliveira (89) identificou os seguintes pontos de conexão entre esses dois campos: 1) adoção da ideia de dignidade humana como fundamentação ética; 2) mesma procedência histórica, situada nas atrocidades da Segunda Guerra Mundial, que evidenciaram a fragilidade da racionalidade humana e a força dos impulsos destrutivos (p. 15) (89); e 3) mesma finalidade, qual seja, a de fazer prescrições voltadas para o agir humano e para balizar determinadas práticas sociais, de forma a salvaguardar bens éticos básicos. (89)

A dignidade humana é uma ideia matriz, um fundamento, tanto para os direitos humanos quanto para a bioética. Foi para prover um marco ético e valorativo para a conduta humana e para a atuação do Estado, que preservasse a dignidade humana de qualquer abuso ou violação, que surgiram, quase simultaneamente, os direitos humanos – consubstanciados na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 – e a bioética, inicialmente inscrita como recomendações no Código de Nuremberg, especificamente voltado para a proteção dos sujeitos de pesquisa.

O princípio da dignidade humana, apesar de sujeito a críticas e resistências por seu conteúdo indefinido e questionamentos sobre o pretenso significado universal do conceito, conforme discutido na seção anterior, foi introduzido em todos os documentos normativos internacionais sobre bioética5 (89), em um claro reconhecimento do princípio como um elemento de base para todo o arcabouço construído pela bioética, e ele, indubitavelmente, também o é para os direitos humanos.

Além da dignidade, a bioética e os direitos humanos compartilham a defesa de outros bens ou valores éticos, entendidos como bens invioláveis, não sujeitos a uma valoração subjetiva ou instrumental, mas sim dotados de um

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Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina, do Conselho da Europa, e as três declarações da Unesco: Declaração Universal sobre Genoma Humano e Direitos Humanos, de 1998; Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, de 2003; e Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005.

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valor intrínseco, na acepção conferida por Dworkin6, como bem registra Oliveira (89). Esses são bens que, no processo histórico-cultural da sociedade, foram considerados inestimáveis e imprescindíveis para o ser humano. Os bens éticos que a bioética procura proteger, muitos deles também objeto de proteção dos direitos humanos, são bens não instrumentais e se revelam como propósitos essenciais da ação humana (p.105) (89). Inscrevem-se aí, por exemplo, algumas prerrogativas humanas básicas, como o direito à vida e à integridade física, além do respeito à igualdade (ou não discriminação), liberdade, segurança, saúde, justiça etc, o que torna absolutamente plausível, conforme assinalado por Andorno, a utilização do guarda-chuva dos direitos humanos para garantir a sua proteção (p. 153) (91).

Mas a bioética protege outros bens, ou valores, que não se inserem no rol dos direitos humanos positivados, como solidariedade e responsabilidade, entre outros, contemplados como bens éticos de acordo com o construto teórico de cada corrente bioética.

A interrelação entre bioética e direitos humanos é reconhecida por diversos autores bioeticistas, ainda que sob enfoques distintos. No estudo de Oliveira (89), são identificadas diferentes formas de inserção dos direitos humanos no campo teórico da bioética, das quais, a nosso ver, e para o propósito do presente trabalho, a mais significativa é pela sua integração ao próprio marco teórico da disciplina, conforme concebida pelas correntes latino- americanas da Bioética de Intervenção (92) e da Bioética dos Direitos Humanos (93).

Segundo Tealdi, o campo teórico da bioética é plural e admite diferentes reflexões ético-normativas, mas todas as acepções teóricas devem comungar do reconhecimento dos direitos humanos como uma moral universal a ser respeitada. Para o autor, a Bioética dos Direitos Humanos não se contrapõe a outras correntes bioéticas, mas afirma a prevalência dos direitos humanos enquanto o mínimo moral ou a fronteira demarcatória entre a moralidade e a imoralidade, que permite a construção crítica e reflexiva de toda bioética (93).

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Para Dworkin, “uma coisa é instrumentalmente importante se seu valor depender de sua utilidade, de sua capacidade de ajudar as pessoas a conseguir algo mais que desejam. [...] Uma coisa é subjetivamente valiosa somente para as pessoas que a desejam. [...] Uma coisa é intrinsecamente valiosa, ao contrário, se seu valor for independente daquilo que as pessoas apreciam, desejam ou necessitam [...]” (p. 99) (90)

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A Bioética de Intervenção – vertente desenvolvida por pesquisadores da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília –, em sua construção epistemológica, incorporou a dimensão social e o respeito aos direitos humanos à disciplina. Os direitos humanos, na perspectiva da Bioética de Intervenção, devem contemplar o conceito de cidadania expandida, cuja concretização requer a intervenção no sentido de garantir a todos os seres humanos: 1) os direitos de primeira geração (relacionados com o reconhecimento da condição de pessoa como requisito universal e exclusivo para a titularidade de direitos); 2) os direitos de segunda geração (que implicam o reconhecimento dos direitos econômicos e sociais, que se manifestam na dimensão material da existência); e 3) os direitos de terceira geração (principalmente aqueles relacionados com o ambiente e com a preservação dos recursos naturais) (92).

Tomando, portanto, os direitos humanos como um dos seus referenciais norteadores, a Bioética de Intervenção propugna pela integralidade e universalidade desses direitos, mediante a intervenção que garanta a efetividade dos direitos em todas as suas dimensões (92).

Já Beauchamp e Childress (94), que defendem uma abordagem bioética baseada em princípios, ao discutirem as teorias éticas que podem aportar elementos para a construção de uma ética biomédica, incorporaram a ética baseada em direitos – por eles denominada de “individualismo liberal” – a esse debate, buscando ressaltar os pontos relevantes dessa teoria para serem apropriados pela ética biomédica. Eles reconhecem que a linguagem dos direitos tem importância histórica e desempenha papel relevante na ética, proporcinando proteções vitais da vida, da liberdade, da expressão e da propriedade e protegendo contra a opressão, o tratamento desigual, a intolerância, a invasão da privacidade etc. (p. 88) (94).

Para esses autores, a teoria ética baseada em direitos – à qual eles tratam como individualismo liberal – está centrada na proteção do indivíduo e padece de algumas limitações. Beauchamp e Childress criticam a ênfase quase exclusiva conferida pelo individualismo liberal à dimensão individual dos direitos, aos interesses do indivíduo, considerando-a como uma visão limitada, já que exclui necessidades sociais, além de bens comuns e formas de proteção

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da vida, como a saúde pública, a pesquisa biomédica e a proteção dos animais. Concluem, assim, que os direitos – entendidos como direitos individuais – podem, algumas vezes, ser sobrepujados por interesses sociais mais importantes (p. 96) (94). Além desse aspecto – que eles consideram como negligência em relação aos bens comuns –, outra crítica que os autores fazem é quanto ao caráter antagônico observado entre alguns direitos, o que, segundo eles, determina que a teoria dos direitos seja uma estrutura parcial. Também, para eles, a compreensão da moralidade extrapola as construções baseadas unicamente em direitos, uma vez que os direitos não podem dar conta do significado moral dos motivos (95) (94). Dessa forma, eles defendem a ideia de que construções baseadas em direitos não devem ser tomadas como teorias morais completas, mas como regras mínimas para reger a conduta das comunidades e dos indivíduos nas suas relações.

Apesar das críticas que fazem, e ainda que adotem o referencial de uma teoria ética baseada em princípios, Beauchamp e Childress defendem a manutenção da linguagem dos direitos na teoria ética, justificando que ela contribui para proteger e legitimar os interesses dos cidadãos na esfera política e é fonte de proteção pessoal, de dignidade e autorrespeito.

Diversos outros autores advogam a importância da incorporação da linguagem dos direitos humanos pela bioética, como Andorno (95) e Knowles (96), especialmente por constituírem uma linguagem universal reconhecida e inscrita em documentos internacionais, o que lhe confere papel proeminente de proteção da pessoa humana e em questões de bioética em nível global.

O conteúdo dos direitos humanos pode ser classificado segundo gerações ou dimensões. Na primeira categoria, eles são classificados como direitos humanos de primeira geração até de terceira geração. Os de primeira geração (direitos civis e políticos) – considerados como direitos de liberdade –, tradicionalmente, têm se constituído como referenciais para a bioética. No entanto, cada vez com mais força – e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos corrobora essa tendência –, ganham relevância e são reconhecidos os direitos de segunda e de terceira gerações (direitos sociais e econômicos, direitos culturais, ambientais etc.), os quais respondem mais diretamente a uma concepção mais ampla da bioética e que se tem buscado

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destacar de forma enfática nos contextos dos países fora do eixo norte- americano e europeu.

A classificação dos direitos humanos segundo gerações – de primeira, segunda e terceira gerações, e, mais recentemente, também se admite uma quarta geração – exprime o desenvolvimento histórico dos direitos humanos, a sua paulatina expansão e positivação jurídico-constitucional, de acordo com o avanço das sociedades e com as mudanças conceituais decorrentes (97). Ainda que essa classificação possa favorecer uma visão fragmentada ou atomizada dos direitos humanos, eles devem ser compreendidos como um corpo único de proteção jurídica, que se pauta pela universalidade, integralidade e indivisibilidade dos direitos protegidos (98), mesmo que se reconheça a possibilidade de conflitos entre eles quando da sua concretização.

Os direitos humanos têm sido alvo de críticas, especialmente no que concerne à sua fraca concretização ou efetividade. Segundo Bobbio, o problema do nosso tempo não é mais a fundamentação dos direitos humanos, mas sim a sua efetivação (97). O déficit de concretização dos direitos apresentado por diversos países, em graus e tipos variados, especialmente no que toca à incorporação e garantia dos direitos sociais, é um problema a ser enfrentado, não só no plano jurídico, mas principalmente no plano social e ético, o que, ressalte-se, não deve ser tomado para invalidar a relevância dos direitos humanos. Ao contrário, as prescrições de direitos não atendidas devem ser mantidas como um objetivo a ser alcançado, uma imagem-objetivo norteadora das ações dos governos. Como observa Knowles (96), além do teor prescritivo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos contempla também aspirações, que são objetivos a serem alcançados pelas sociedades.

À crítica de que o discurso dos direitos humanos é meramente retórico, faz-se mister reconhecer que a força dos direitos humanos é sim, em grande medida, essencialmente, discursiva, e é justamente essa força moral e retórica da linguagem dos direitos humanos que se constitui, segundo Knowles (96), uma grande vantagem que deve ser aproveitada para a construção de uma bioética global7, que precisa dar respostas a problemas que, por sua natureza,

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Knowles considera que, com a globalização, as preocupações da bioética, como a assistência à saúde e a biotecnologia, são de natureza global, daí utilizar o termo “bioética global” (96).

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são globais. Segundo a autora, a linguagem dos direitos humanos adquiriu uma forte e ampla aceitação pública em nível internacional, o que é útil para a bioética, já que, em um mundo em que predomina a diversidade, ela necessita de um quadro referencial comum capaz de responder às exigências colocadas.

Também, o caráter universal que se pretende para os direitos humanos é alvo de críticas. Em contraposição à polêmica sobre o significado da universalidade dos direitos humanos, em face das grandes diferenças culturais entre os povos, o grau de adesão dos países aos instrumentos normativos internacionais sobre direitos humanos – ainda que apenas no plano jurídico, não se considerando como eles concretizam internamente essas normas – é apontado como um indicativo da legitimidade desses instrumentos e um reconhecimento do seu valor universal. No caso da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, os 191 países que integram a Organização das Nações Unidas deram o seu reconhecimento formal à Declaração, mediante sua aprovação por unanimidade, o que lhe confere força moral e legitimidade, mesmo que ela não seja juridicamente vinculante.

A receptividade dos direitos humanos pela bioética ocorre em uma dupla dimensão: 1) como objetivo a ser alcançado; e 2) como baliza ou referencial para a análise bioética das políticas de saúde conforme são propostas ou implementadas em dado momento. É na perspectiva da segunda dimensão que os direitos humanos serão abarcados no presente estudo, como parâmetro passível de ser utilizado pela bioética para aferir a justeza de uma dada política pública. Mas a análise que se faz aqui não se restringe apenas àquilo que pode ser aportado do campo dos direitos humanos, pois, partilhamos do entendimento de que os direitos humanos são o mínimo essencial ético a ser observado, mas não contemplam todo o conteúdo da bioética. A complexidade do fenômeno objeto do presente estudo exige o aporte do arcabouço dos direitos humanos e de outras categorias bioéticas não contempladas por eles.