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No campo da saúde, também tem sido incorporada a linguagem dos direitos humanos. O direito à saúde enquanto direito humano está inscrito no

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artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (75), nos seguintes termos:

Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

A partir dessa definição, constata-se que a Declaração assume, conceitualmente, a saúde de forma ampliada, como qualidade de vida e bem- estar, e não apenas como condição referente à ausência de doença ou ao seu tratamento. Constata-se, ainda, a interdependência do direito à saúde com outros direitos fundamentais, em uma clara assunção de que a saúde é resultante de uma série de fatores de ordem individual e social.

O Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adotado pela Assembléia das Nações Unidas em 1966, é outro instrumento de proteção dos direitos humanos (99). Em seu artigo 12, o Pacto reafirma a universalidade e a integralidade do direito humano à saúde, ao reconhecer o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental. Acrescenta, ainda, que o pleno exercício desse direito requer ações concretas por parte dos Estados, que não se resumem ao provimento de recursos médico-assistenciais, mas incluem ações no sentido da melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente; do desenvolvimento são das crianças; e da prevenção [..] das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, além do seu tratamento, quando elas ocorrerem.

Assim, a partir das formulações dos principais documentos internacionais sobre os direitos humanos, pode-se constatar que o direito à saúde apresenta dupla conotação: de um lado, deve ser entendido como o direito de gozar do mais elevado nível de saúde física e mental, isto é, o direito à mais alta qualidade de vida possível; e, de outro lado, o direito ao acesso aos recursos sanitários, aos equipamentos de saúde e à assistência integral à saúde. Portanto, o direito à saúde abrange, mas não se restringe ao acesso aos recursos assistenciais curativos. Como bem assinala VanderPlaat:

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Health, which is a state of complete physical, mental and social well-being, and not merely the absence of disease and infirmity, is a fundamental human right and that the attainment of the highest possible level of health is a most important world-wide social goals whose realization requires the actions of many other social and economic sectors in addition to the health sector. (p. 21) (100)

Além do direito à saúde, enquanto direito humano propriamente dito, a saúde se relaciona com os direitos humanos em outra perspectiva: os direitos humanos constituem-se como salvaguardas para que as políticas públicas sejam desenvolvidas em respeito à justiça e à proteção do indivíduo e da comunidade. A bioética adota essa perspectiva quando toma os direitos humanos como elemento balizador das políticas públicas de saúde e das questões relativas à pesquisa biomédica e à biotecnologia, por exemplo, em face de eventuais conflitos éticos existentes. A perspectiva dos direitos humanos ajuda a encontrar a melhor solução para a coletividade e que não comprometa o objetivo primário de proteção das pessoas diretamente envolvidas.

De acordo com Mann (101) e Mann et al (102), a relação entre saúde pública e direitos humanos pode ser analisada sob três enfoques distintos. Um primeiro diz respeito a possíveis ameaças suscitadas por políticas, programas e práticas da saúde pública. Isso porque a saúde pública envolve sempre, direta ou indiretamente, o poder do Estado e, originalmente, os direitos humanos surgiram, justamente, para proteger os indivíduos de possíveis abusos cometidos pelo próprio Estado. Em diversos momentos, têm sido observados conflitos entre as preocupações da saúde pública e dos direitos humanos, como ocorreu no início da epidemia de aids, quando medidas coercitivas como a testagem compulsória e a quarentena foram implementadas.

A história da constituição da saúde pública é farta de exemplos significativos de medidas que caracterizaram violações de direitos, como os encontrados na área da saúde mental, do controle da hanseníase, da tuberculose e, mais recentemente, do combate ao HIV/Aids. Medidas como isolamento e internação compulsórios, vacinação e testagem obrigatórias, notificação de parceiros, busca ativa de casos, controle sanitário de domicílios,

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controle de comportamentos de risco carregam o potencial de lesar os direitos humanos, o que exige uma ponderação equilibrada sobre a real necessidade desse tipo de medida em prol da saúde pública. A incorporação da perspectiva dos direitos humanos no desenho das políticas de saúde tem sido considerada cada vez mais uma necessidade, no sentido de buscar prevenir eventuais violações (101,103).

É preciso, no entanto, diferenciar “violações de direitos” de “restrições de direitos”, pois há situações em que o Estado pode, ou mesmo deve, restringir direitos, como em certas emergências públicas. Nesses casos, a restrição não é considerada uma violação, uma vez que ela é justificável e realizada de forma legítima pelo Estado. Já a violação é caracterizada por ser uma restrição injustificável e ilegítima dos direitos humanos. (104)

Uma segunda relação entre direitos humanos e saúde pública diz respeito justamente aos impactos negativos que a violação dos direitos causa sobre a saúde, tanto para o indivíduo afetado quanto para a comunidade. As resistências observadas em diversos momentos, por parte das populações e dos indivíduos, em aderir a determinadas políticas públicas advêm em grande medida da desconfiança quanto à possibilidade de cometimento de abusos e violações dos direitos.

A terceira relação entre direitos humanos e saúde apontada por Mann e outros autores é diretamente associada às demais, pois corresponde exatamente à observação de que a promoção e proteção dos direitos humanos é fator de promoção e proteção da saúde pública. Segundo esses autores, isso decorre do fato de que o respeito aos direitos humanos cria um ambiente social capaz de responder favoravelmente aos determinantes sociais da saúde. A mesma visão é compartilhada por Annas (103), segundo quem os direitos humanos são um componente essencial das políticas de saúde:

“[...] contemporary public health officials mostly have concluded that taking human rights seriously is a necessary component of an effective public health strategy.” (p. 37) (103)

Mann assinala que, apesar da aceitação geral de que o bem da saúde pública é uma razão legítima para a limitação de direitos, tem-se procurado

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muito mais ressaltar o aspecto de complementariedade entre esses dois campos – da saúde pública e dos direitos humanos –, do que propriamente uma possível tensão ou conflito entre eles (101).

O desrespeito aos direitos humanos constitui, ele próprio, um fator de vulnerabilidade social e está associado diretamente ao aumento da vulnerabilidade para determinados agravos à saúde, como no caso do HIV/Aids, em que a estigmatização e a discriminação contra certos grupos dentro da sociedade têm papel de destaque na distribuição e nos níveis de prevalência da doença.

Outro aspecto relevante da relação entre saúde e direitos humanos diz respeito à determinação da saúde, conforme lembram Gruskin e Tarantola (105). A não efetivação dos direitos humanos, particularmente dos direitos sociais, ao exacerbar e perpetuar condições como pobreza, privação, marginalização e discriminação, favorece o adoecimento das populações, atuando como um determinante social do processo saúde-doença.

A dimensão dos direitos humanos é, pois, parte constitutiva das políticas de saúde e da própria bioética, especialmente em função da confluência de objetivos entre esses dois campos, que têm como ponto fulcral o respeito pela dignidade inerente à pessoa humana.