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CAPÍTULO 3. LEI PENAL E SAÚDE PÚBLICA: PRÁTICAS DISCURSIVAS

4.1. Panorama mundial da criminalização

O tema da criminalização da transmissão do HIV tem recebido atenção de forma bastante desigual entre os diferentes países. Nos países mais ricos, especialmente Estados Unidos, Canadá, países da Europa Ocidental, Austrália e Nova Zelândia, o debate sobre a criminalização da transmissão do HIV, com ênfase na transmissão sexual, está bastante difundido e já há um acúmulo teórico importante. É nesses países onde se encontra o maior número de casos de processos judiciais contra pessoas vivendo com HIV que transmitiram o vírus para outras pessoas ou que as expuseram ao risco de infecção, e a tendência observada em relação a esses processos é de crescimento. Já nos países periféricos, em que pese a existência de processos judiciais cujo objeto é a transmissão do HIV e apesar de, mais recentemente, haver uma tendência de se adotarem leis específicas sobre essa matéria, a discussão ainda é incipiente e não tem sido alvo de atenção por parte dos gestores públicos e do próprio movimento social ligado à aids.

Os dados que apresentamos a seguir são, todos eles, dados secundários e foram obtidos de artigos científicos e de sites de organizações

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que tratam do tema, como o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) e o Global Network of People Living with HIV/AIDS (GNP+) Global Criminalisation Scan.

O Global Network of People Living with HIV, desde 2005, tem realizado o monitoramento da ocorrência de ações judiciais em cerca de 200 países, a partir de bases de dados e de sites da internet, além de contatos com profissionais do judiciário, profissionais de saúde, de sistemas judiciários oficiais, organizações atuantes na área de HIV/Aids e pessoas que vivem com HIV.

Por meio desse sistema (168), foram identificadas 600 ações judiciais para criminalizar a transmissão do HIV em mais de cinquenta países. As regiões que mais registraram a ocorrência desse tipo de ação foram a América do Norte e a Europa Ocidental. Os Estados Unidos foram o país com o maior número absoluto de ações judiciais, mais de 300 ações envolvendo a transmissão do HIV, vindo a seguir o Canadá (63 ações), a Suécia (38 ações), a Áustria (30 ações) e a Suíça (30 ações). França, Noruega, Países Baixos, Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Austrália e Itália apresentaram entre 10 e 15 ações cada. Com exceção dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, todos os demais países com maior número de casos estão localizados na Europa. (168)

Em termos epidemiológicos, considerando-se o número de casos judiciais em relação ao número total de pessoas que vivem com HIV, o quadro da criminalização apresenta ligeira modificação no que tange à posição dos países no ranking da criminalização. O Gráfico 1, abaixo, mostra a posição dos países segundo a prevalência da criminalização – número de casos judiciais em relação ao total de pessoas HIV positivo. A Suécia é o país com a maior prevalência de criminalização (6,12 casos/1.000 pessoas com HIV), enquanto os Estados Unidos, que apresentam o maior número absoluto de casos, passam a ocupar a 17ª posição (0,25 casos/1.000 pessoas com HIV). (168)

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Gráfico 1. Número de casos judiciais em 1.000 pessoas vivendo com HIV em diferentes países. 2010.

Fonte: GNP+

É de se observar que os países mais ricos, por isso mesmo, onde se espera que haja mais recursos aplicados em saúde e ações de prevenção e controle da aids mais organizadas e efetivas, portanto, com uma situação mais favorável em relação à epidemia, são justamente os que apresentam as maiores prevalências de casos de criminalização do HIV. Para verificar possível associação entre criminalização e prevalência de HIV, elaboramos um gráfico (Gráfico 2) com os dados de prevalência da criminalização e dados de prevalência do HIV (Gráfico 2) para os mesmos países constantes do Gráfico 1. Para facilitar a visualização os dados foram plotados como curvas. Os dados sobre a criminalização são os mesmos apresentados no Gráfico 1, enquanto os dados sobre prevalência de HIV foram obtidos do último relatório do Unaids, publicado em 2012 (8). As taxas de prevalência do HIV e de criminalização que deram origem às curvas constam da Tabela 1, no Apêndice 1.

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Gráfico 2. Prevalência de casos judiciais* (transmissão do HIV) e prevalência de HIV** em diferentes países. 2012.

Fonte: *GNP+ / **Unaids.

Observando-se os dados do Gráfico 2, verifica-se que as duas curvas são inversamente proporcionais: os países com maiores prevalências de criminalização apresentam as menores taxas de prevalência de HIV, enquanto os países com maiores taxas de criminalização apresentam menores prevalências de HIV. No entanto, não se pode inferir daí que haja uma associação causal entre a prevalência do HIV e da criminalização, ou seja, que a criminalização seja responsável pelas menores prevalências de HIV. Não há elementos que permitam fazer tal inferência causal. Essa associação pode ocorrer em função de algum outro fator que esteja incidindo tanto sobre a criminalização quanto sobre as prevalências de HIV.

Deve-se observar que esses dois blocos de países não são homogêneos internamente. O Canadá, por exemplo, que apresenta prevalência próxima à da Suécia (respectivamente, 0,3 e 0,2 casos de HIV/100mil), possui uma taxa de criminalização da transmissão do HIV seis vezes menor (no Canadá a taxa de criminalização é de 0,8, enquanto na Suécia ela é 6,1).

Fatores que podem estar associados à maior criminalização da transmissão do HIV foram pesquisados por Weait (169). O autor observou três

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aspectos importantes que parecem estar associados positivamente ao uso de leis criminais para punir a transmissão do HIV e que podem explicar as mais altas taxas de criminalização nos países desenvolvidos: 1) confiança no sistema judicial; 2) confiança interpessoal; e 3) desenvolvimento social (índice de desenvolvimento humano).

Os países com as mais altas prevalências de criminalização do HIV foram os que apresentaram maiores proporções de pessoas que confiam no sistema judicial, o que indica que a crença na eficácia da Justiça é um fator que estimula as pessoas a lançarem mão de ações judiciais relativas à transmissão do HIV. O mesmo foi observado para os países em que há um alto grau de confiança entre as pessoas. O autor levanta a seguinte hipótese para esses achados: o uso de leis criminais é mais provável de ocorrer em países em que há recursos disponíveis para esse tipo de ação, onde ela é considerada uma resposta razoável da sociedade para a quebra de confiança entre as pessoas e onde há uma crença elevada na capacidade do sistema judicial de prover uma resposta efetiva.

4.2. Tipos de leis penais para criminalizar a transmissão sexual do HIV