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Litígio criminal e a produção da verdade

CAPÍTULO 3. LEI PENAL E SAÚDE PÚBLICA: PRÁTICAS DISCURSIVAS

4.6. Litígio criminal e a produção da verdade

A produção da verdade por meio do litígio criminal representa, segundo Foucault (195), uma das grandes conquistas da democracia grega, quando o povo, por meio de uma série de lutas e de contestações políticas, se apoderou do direito de julgar, de testemunhar, de opor a verdade ao poder, do que resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária, jurídica, da verdade (p. 55) (195). E essa produção da verdade assenta-se sobre processos racionais de prova e de demonstração, constituídos pela Filosofia, pelos sistemas racionais e pelos sistemas científicos.

No caso da criminalização da transmissão do HIV essa produção da verdade é complexa, ao envolver diversos fatores de difícil aferição ou comprovação, como o dito e o não dito entre os parceiros sexuais sobre o seu status sorológico; o grau de conhecimento sobre o HIV, sobre os riscos envolvidos nas diferentes práticas sexuais e sobre as formas efetivas de proteção; o risco a que cada parceiro está disposto a consentir; as suposições ou assunções de cada pessoa envolvida que podem não condizer com a realidade etc. A comunicação sobre a sexualidade entre os parceiros em uma relação pode ser pobre e ela será ainda mais difícil quando envolver uma condição altamente estigmatizante como a condição de portador do HIV.

Cada vez mais a medicina/saúde pública aproxima-se do direito, especialmente do direito penal. A falha do controle médico em produzir os comportamentos sexuais seguros preconizados irá, ou poderá, desembocar em ações judiciais com o objetivo de promover a retribuição do indivíduo pela falta cometida – não ter feito “sexo seguro” nem ter revelado o seu diagnóstico – e dar um alerta de que a sociedade não tolerará esse tipo de conduta.

Essas disciplinas também se aproximam quando a justiça precisa lançar mão do conhecimento científico das ciências médicas e biológicas para, com objetividade e o máximo de precisão possível, desvendar a partir de quem a

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vítima foi infectada pelo HIV, se o quadro clínico do réu poderia colocar a vítima em risco, qual o grau de risco efetivo de cada prática sexual etc. Na produção da verdade, a justiça tem que se apoiar sobre o conhecimento médico, conforme assinalado por Foucault (196), ao analisar o exame psiquiátrico como prova:

[...] é um dos pressupostos mais imediatos e mais radicais de todo discurso judiciário, político, crítico, o de que existe uma pertinência essencial entre o enunciado da verdade e a prática da justiça. Ora, acontece que, no ponto em que vêm se encontrar a instituição destinada a administrar a justiça, de um lado, e as instituições qualificadas para enunciar a verdade, do outro, sendo mais breve, no ponto em que se encontram o tribunal e o cientista, onde se cruzam a instituição judiciária e o saber médico ou científico em geral, nesse ponto são formulados enunciados que possuem estatuto de discursos verdadeiros, que detêm efeitos judiciários consideráveis [...].(pp. 14-15) (196)

O estabelecimento do nexo de causalidade nos casos judiciais envolvendo a transmissão do HIV insere-se dentro dessa perspectiva de produção da verdade e é um dos pontos críticos relativos à aplicação da lei penal que tem recebido bastante atenção nos países desenvolvidos. A determinação precisa da relação de causalidade requer o emprego de métodos diagnósticos mais sofisticados, mas, ainda assim, não está totalmente resolvida. Na atualidade, nos processos judiciais, tem-se procurado lançar mão de evidências científicas que permitam identificar o tipo de vírus e que possam demonstrar o nexo de causalidade, o que conferiria mais rigor e objetividade às decisões judiciais. A análise filogenética do HIV é um dos testes utilizados com essa finalidade, uma vez que ele apresenta grande variabilidade genética, alta capacidade recombinante e de mutação, o que limita a utilização de outras técnicas de identificação viral (197,198,199).

A análise filogenética é uma técnica de biologia molecular que, mediante o sequenciamento genético do vírus e pela comparação das sequências virais provenientes dos sujeitos envolvidos, permite determinar se são pares virais com um nível de semelhança capaz de indicar uma ligação filogenética entre eles, isto é, que sinalize uma origem comum. Essa técnica tem sido utilizada

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com a finalidade de reconstituição da cadeia de transmissão, em estudos epidemiológicos e de apoio à medicina forense (199,200,201).

No entanto, esse teste tem sido considerado mais útil para descartar o nexo de causalidade do que propriamente para a sua confirmação (198). No âmbito da medicina forense, a análise filogenética do HIV deve ser vista apenas como uma das evidências quanto à fonte de infecção e não deve ser tomada como critério único e absoluto para se demonstrar que a infecção ocorreu de uma determinada pessoa para outra (182,183,198). A análise filogenética já foi utilizada como prova forense em processos criminais sobre a transmissão do HIV em países como Estados Unidos, Suécia, Austrália, Dinamarca, Bélgica, Alemanha e Escócia, tendo contribuído, de forma decisiva, para a condenação ou absolvição dos réus, ao proporcionar fortes evidências a favor ou contra as alegações de transmissão do HIV (198,201).

Pesquisas com casais soropositivos para HIV que comparam a informação prestada pelas pessoas sobre a provável fonte de infecção com a informação proveniente da análise filogenética mostram que, nem sempre, há uma correspondência entre a informação prestada e os resultados da filogenia molecular, o que evidencia que as decisões sobre os elos de transmissão não devem se pautar apenas na informação dos parceiros, pois esta pode não ser correta (199).

Estudo multicêntrico (202) envolvendo 1.763 casais sorodiscordantes – 954 casais da África, 531 da Ásia, 278 da América do Norte e da América do Sul, com a participação, inclusive, do Brasil –, com o objetivo de avaliar o melhor momento de se começar a terapia antirretroviral, mostrou que, após quase dois anos de seguimento, houve a transmissão do vírus em 39 casais, sendo que em 11 (28%) a transmissão não foi procedente do parceiro, mas de uma terceira pessoa. Esse resultado sinaliza para o problema de que, em uma situação de conflito judicial sobre a transmissão do HIV, caso não haja a utilização de métodos diagnósticos que permitam identificar e comparar os tipos de vírus de ambos os parceiros, pode-se incorrer em injustiça ao se atribuir sempre ao parceiro HIV positivo a responsabilidade pela transmissão do vírus.

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Learn e Mullins (200) chamaram a atenção para o surgimento de um novo campo de saber a que denominaram de estudos forenses em HIV, com o objetivo de subsidiar o sistema judicial com a produção de provas legais. No entanto, chamam a atenção para a necessidade de adoção de protocolos de boas práticas para garantir um padrão mínimo adequado para o trabalho com amostras forenses, além de garantir o respeito a certos pressupostos éticos.

Questões de ordem técnica e ética necessitam ser considerados ao lançar mão de técnicas como a análise filogenética para a elucidação de casos judiciais, inclusive tendo-se em conta os limites e os alcances de tais técnicas, que, como todo teste laboratorial, estão sujeitas a erros de vários tipos.

A criminalização da transmissão do HIV tem, pois, gerado uma nova demanda por métodos diagnósticos especializados, o que remete a novas problematizações, como o acesso a novas tecnologias médicas, a medicalização das práticas sociais e a criação da verdade no sistema judicial.

Mas a produção da verdade não se esgota na comprovação de que a transmissão do vírus de fato ocorreu de um determinado parceiro para outro. Há questões mais difíceis de serem determinadas com precisão e objetividade e que também se colocam como de indispensável comprovação para efeitos de criminalização. É o que ocorre com a caracterização da transmissão voluntária do HIV, isto é, a determinação de que o sujeito, conscientemente, pretendia alcançar aquele resultado.

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