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2.3. Vulnerabilidade

2.3.1. Vulnerabilidade e aids

O desenvolvimento do conceito de vulnerabilidade no campo da saúde e, em particular, no campo da prevenção ao HIV/Aids, é recente e surge como alternativa à abordagem do risco individual, que se mostrou ao longo do tempo insuficiente para responder de forma efetiva às questões colocadas para o controle da epidemia. Se o conceito de risco é importante ferramenta no campo da epidemiologia, ele não alcança toda a complexidade da realidade social, e, no caso da aids, proporcionou resultados contraditórios. De um lado, a adoção da noção de “grupos de risco” como orientadora das ações de prevenção propiciou o direcionamento de ações para esses grupos, favorecendo a diminuição da incidência da doença entre eles. No entanto, provocou o aumento de atitudes discriminatórias e de estigmatização das pessoas identificadas como pertencentes a esses grupos, contribuindo para o seu isolamento social e dificultando mesmo as ações de prevenção.

A categoria “grupos de risco” foi, então, substituída pela categoria “comportamentos de risco”, tendo-se deslocado o enfoque dos grupos específicos para os comportamentos e práticas adotados, mas ainda mantendo-se uma orientação teórica calcada na dimensão individual do risco. Ainda que essa noção baseada em comportamentos de risco tenha contribuído para minimizar o peso que recaía sobre os principais grupos afetados pela doença, ao enfatizar que qualquer pessoa pode estar suscetível à infecção pelo HIV, a depender dos comportamentos adotados, ela mantém a ideia de culpabilização do indivíduo enquanto único responsável pelo seu adoecer.

A maneira encontrada de contornar e de suprir, no plano teórico e prático, a insuficiência do conceito de risco foi trazer para o debate o conceito de vulnerabilidade. Uma das primeiras propostas nesse sentido foi formulada pelo epidemiologista Jonathan Mann, na década de 1990, quando propôs que a vulnerabilidade ao HIV/Aids fosse analisada a partir de três eixos interdependentes: individual, programático (ou institucional) e social (132).

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Na dimensão individual, há o aspecto biológico, que determina uma vulnerabilidade universal ao HIV, isto é, no plano biológico todas as pessoas são vulneráveis à infecção. No entanto, ainda em relação ao indivíduo, não basta a suscetibilidade biológica, é preciso que ocorram certas ações e certos comportamentos para que a transmissão aconteça. Mas o comportamento individual é determinado socialmente, a partir da posição que o indivíduo ocupa dentro da estrutura social e de acordo com diversos fatores sociais, como educação, trabalho, gênero, etnia, geração etc. Esse conjunto – biologia, comportamentos e fatores sociais individuais – condiciona a vulnerabilidade do indivíduo.

A vulnerabilidade programática diz respeito ao acesso que o indivíduo tem aos bens e serviços de saúde e à capacidade da estrutura ou do sistema de saúde de responder adequadamente às demandas de saúde. É um espaço que, segundo Mann, é perpassado por disputas pelos recursos – sempre escassos – e que depende da capacidade dos atores envolvidos de exercerem o controle social sobre a aplicação e a destinação desses recursos (132).

A vulnerabilidade em sua dimensão social expressa, em linhas gerais, as condições estruturais em que é produzida a exclusão social – econômica, de gênero, étnica, racial ou relacionada à orientação sexual (132). O conceito de exclusão antecede ao de vulnerabilidade e remonta aos estudos sobre a reestruturação produtiva e crise do estado de bem-estar social, e traz para o debate um conjunto de questões como falta de emprego, de salários, de moradia, de um nível mínimo de consumo; e ausência ou dificuldades no acesso a crédito, à terra, à educação, à cidadania, a bens e serviços públicos básicos. Além disso, um conjunto de questões relacionadas à identidade cultural, de gênero e de raça também são elementos utilizados nas diversas caracterizações da exclusão social. De acordo com Sudbrack (133),

Bastos & Szwarcwald utilizam os conceitos “bens materiais” e “bem simbólicos” de Pierre Bourdieu (1982) para tematizar a vulnerabilidade ao HIV. Ou seja, toda situação de saúde que se caracterize por desigualdades coletivas e que possam resultar em possibilidades diferenciadas quanto ao acesso aos bens e serviços, tanto materiais (alimentação, habitação, tratamento médico, etc.), quanto simbólicos (informação e poder de autodeterminação), geram situações de forte vulnerabilidade.

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Isto é, a vulnerabilidade se refere aos diferentes graus de fragilidade dos indivíduos e grupos frente à infecção por HIV/Aids, segundo a particularidade vivida e de acordo com o conjunto integrado de aspectos sociais, programáticos e individuais que os coloca em menor ou maior risco frente ao problema. (s/n) (133)

A noção de vulnerabilidade compõe uma síntese conceitual e prática das dimensões sociais, político-institucionais e comportamentais que geram diferentes suscetibilidades para indivíduos, grupos populacionais e até mesmo nações em relação à infecção pelo HIV e às suas consequências indesejáveis.

Segundo Ayres et al (134), no contexto brasileiro de combate à aids, tem-se buscado trabalhar de forma integrada os diversos aspectos implicados na exposição à infecção e ao adoecimento, evitando-se a fragmentação dos determinantes dos contextos de vulnerabilidade e a sua dicotomização em determinantes individuais e coletivos. Busca-se tratar as dimensões individual, social e programática da vulnerabilidade de forma indissociável e mutuamente referidas. Para esses autores, o foco das análises e das ações deve assentar, prioritariamente, sobre as relações sociais que estão na base das situações de vulnerabilidade, e menos sobre as identidades pessoais ou sociais. As três dimensões constitutivas das situações de vulnerabilidade são sempre vistas sob o aspecto relacional que as informa:

a) o individual já sempre como intersubjetividade, isto é, como identidade pessoal permanentemente construída nas interações eu-outro;

b) o social já sempre como contextos de interação, isto é, como os espaços de experiência concreta da intersubjetividade, atravessados por normatividades e poderes sociais baseados na organização política, estrutura econômica, tradições culturais, crenças religiosas, relações de gênero, relações raciais, relações geracionais etc;

c) o programático já sempre como formas institucionalizadas de interação, isto é, como conjunto de políticas, serviços e ações organizadas e disponibilizadas em conformidade com os processos políticos dos diversos contextos sociais, segundo os padrões de cidadania operantes. (p. 13) (134) [grifos no original]

A utilização do conceito de vulnerabilidade promoveu, pois, mudanças nas práticas tradicionais de prevenção. Mais que atuar sobre indivíduos

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expostos, busca-se trabalhar com populações suscetíveis, mediante processos educativos pautados em suas experiências concretas e em seu contexto social, de forma a instrumentalizá-las no sentido do seu empoderamento, tendo como fonte de inspiração a proposta de Paulo Freire de educação como prática de liberdade (135).

Essa nova concepção promoveu inovações nos modelos de intervenção, que passaram a privilegiar a mobilização social, a intervenção baseada na educação de pares, a intervenção comunitária, o ativismo e os direitos humanos, como aspectos imprescindíveis para o controle da epidemia. De acordo com Paiva, é preciso politizar os espaços psico-educativos e propor a noção de “emancipação psicossocial” como uma das referências para aprofundar a operacionalização da noção de vulnerabilidade. (p.58) (135)

O conceito de vulnerabilidade é uma das categorias analíticas a serem utilizadas na abordagem do problema da criminalização das pessoas que vivem com HIV/Aids, pois permite a apreensão e contextualização das dimensões individual, programática e social que envolvem a questão da criminalização e traz à cena a necessidade de se aprofundar os conceitos de estigma, responsabilidade individual e coletiva, direitos humanos, e de relacioná-los às desigualdades de acesso à prevenção, à assistência e ao tratamento. Entendemos ser necessária uma abordagem estrutural para a compreensão do problema, que envolve questões como a desigualdade de poder nas relações de gênero, o estigma e a discriminação sexual, a discriminação étnica, e, principalmente, o estigma relacionado ao viver com HIV e aids.

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CAPÍTULO 3. LEI PENAL E SAÚDE PÚBLICA: PRÁTICAS DISCURSIVAS