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Tipos de leis penais para criminalizar a transmissão sexual

CAPÍTULO 3. LEI PENAL E SAÚDE PÚBLICA: PRÁTICAS DISCURSIVAS

4.2. Tipos de leis penais para criminalizar a transmissão sexual

também há posições no sentido de que as leis criminais gerais são suficientes para punir os casos de transmissão intencional e a existência de uma lei criminal específica configuraria discriminação dos portadores do HIV, podendo impactar negativamente o controle da epidemia. Não haveria razões suficientes para tratar a aids de forma diferente do que se faz com as demais doenças transmissíveis.

Pesquisa realizada por Bray (170) procedeu à caracterização de todos os processos judiciais identificados contra pessoas que vivem com o HIV nos Estados Unidos da América, até o ano 2001, buscando possíveis associações com a existência ou não de lei penal específica para criminalizar a transmissão do HIV. O autor encontrou que vinte e oito estados estadunidenses possuíam algum tipo de lei criminal para a exposição ao HIV, mas, mesmo nesses estados, havia ações judiciais impetradas com base na lei criminal geral, mais

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utilizada para casos de exposição não contemplados pelas leis específicas, como o ato de cuspir em alguém.

De acordo com esse estudo, os estados que possuem leis criminais específicas para a exposição ao HIV apresentaram número maior de processos judiciais contra portadores do vírus do que os estados que não possuem legislação específica com essa finalidade: a média de casos para os estados sem legislação específica foi de dois casos, enquanto entre os estados com legislação específica a média foi de 8,7 casos. Não houve diferença significativa entre a proporção de ações que tenham resultado em condenação entre essas duas categorias de estados, com ou sem legislação específica: nos primeiros, 56% das ações resultaram em algum tipo de pena, e nos segundos, 53%. Esses dados mostram que leis específicas podem gerar um ambiente propício para a criminalização relacionada ao HIV e agravar o quadro da criminalização em relação ao HIV.

Observam-se muitas especificidades em relação à prática da criminalização nos diferentes países, com leis mais restritivas ou mais abrangentes e com a adoção de diferentes critérios para embasar as decisões judiciais.

Em muitos países, apenas a transmissão do vírus é passível de punição, enquanto em outros a mera exposição de terceiros ao risco de contrair o vírus é punível. Há países que criminalizam apenas a transmissão intencional, enquanto em outros mesmo que não tenha havido intencionalidade (mens rea), mas apenas um comportamento imprudente ou negligente, a exposição ou a transmissão do vírus também é considerada prática sujeita à punição. Há países que punem apenas a transmissão sexual, enquanto outros têm punido também a transmissão vertical – da mãe para o feto – do vírus, ou outros meios inusitados, como mordidas, arranhões ou emissão intencional de saliva. O compartilhamento de agulhas ou seringas também é considerado prática criminosa em alguns países, apesar de ações judiciais que envolvem esse tipo de prática serem extremamente raras. Provavelmente pelo fato de o uso de drogas ser, frequentemente, ato ilegal. Em alguns países apenas o sexo inseguro é considerado prática criminosa, enquanto em outros, mesmo na

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vigência de uso do preservativo, se não houver a revelação do estado sorológico para o parceiro sexual, o portador do vírus é passível de punição.

Assim, é possível depreender diferentes critérios que envolvem a aplicação da lei penal e a adoção de medidas punitivas de pessoas que vivem com o HIV:

1. Transmissão versus exposição;

2. Informação do estado sorológico versus não informação; 3. Uso do preservativo versus não uso;

4. Intencionalidade versus comportamento imprudente ou negligente.

No debate sobre o papel da lei criminal na transmissão do HIV, tanto os defensores quanto os oponentes à instituição de tais leis ainda não conseguiram demonstrar de forma cabal que, de um lado, ela poderia ter um papel positivo no controle da epidemia, ou que, de outro, ela não teria qualquer efeito na adoção de comportamentos seguros. No entanto, a despeito de não haver ainda respostas para esse tipo de questionamento, o fato é que as leis penais e o seu uso para criminalizar a transmissão do HIV rapidamente se tornaram uma realidade em muitos países, ficando ainda por determinar a propriedade dessas iniciativas para a saúde pública.

De modo geral, a adoção e utilização da lei criminal é uma forma de a sociedade expressar a desaprovação coletiva em relação a determinadas condutas pessoais. Além da função normativa da lei penal, observada quando ela sublinha a natureza intolerável da negligência e do desrespeito pela vida do outro, há autores que reconhecem que a sua aplicação teria também, no plano individual (159), a finalidade de “retribuição”, isto é, dar uma resposta às vítimas de que está sendo feita justiça; e a finalidade de “incapacitação” do indivíduo para que não continue incidindo na mesma conduta, ou de reabilitação ou mudança de comportamento (161).

No caso específico das leis que criminalizam a transmissão do HIV, sua aplicação é defendida, no campo da saúde pública, com base nos seguintes argumentos (170,171,172,173,174):

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2) demonstram que socialmente aquele comportamento é considerado condenável e, portanto, induz as pessoas a adotarem comportamentos mais seguros;

3) estimulam mudança de comportamento, pelo medo da punição; e

4) promovem uma espécie de “quarentena” dos indivíduos soropositivos que, ao ser encarcerados, são levados ao afastamento do meio social.

Do ponto de vista da saúde pública, há argumentos baseados na epidemiologia da aids que corroboram a posição contrária à adoção de lei penal como um instrumento para a contenção da expansão da epidemia, como: 1) essas leis podem inibir a testagem voluntária e a revelação do diagnóstico (175,176);

2) a criminalização consome recursos e atenção dos programas de prevenção (177);

3) a criminalização falha em atuar nas causas subjacentes ao comportamento sexual de risco, o que faz com que não resulte em inibição desse tipo de comportamento (178); e

4) a prisão de pessoas com HIV não detém, por si só, a transmissão do vírus, pois há casos de transmissão por parte dessas pessoas dentro da prisão (179, 180). É sabido que o ambiente prisional aumenta a vulnerabilidade ao HIV/Aids, pelos comportamentos de risco e uso de drogas injetáveis.

Ainda em relação ao HIV, não há dados suficientes que possam dar sustentação à afirmação de que as condenações criminais, ou o medo de que possam ocorrer, sirvam de encorajamento para que pessoas que vivem com HIV revelem seu status sorológico para os seus parceiros sexuais, ou que mudem seus comportamentos sexuais de risco. Ao contrário, há estudos demonstrando que a lei penal não tem efeito sobre os comportamentos sexuais (181).

Por outro lado, também não há dados que corroborem as afirmações de que as condenações criminais podem promover um desincentivo à testagem sorológica para o HIV. No entanto, parece haver evidências de que esse tipo de lei e de condenação exacerba o estigma. Além disso, já estão bastante documentadas as implicações negativas que o estigma e a discriminação causam às estratégias de prevenção, pelo que se pode inferir que as leis

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criminais acarretariam repercussões negativas para os indivíduos e a saúde pública. No entanto, é preciso dispor de dados mais objetivos e diretos sobre esse possível impacto.

4.3. Leis penais no mundo

Os dados apresentados nesta sessão foram obtidos do site da Global Network of People Living with HIV (GNP+) (168) e mostram que leis específicas sobre a criminalização da transmissão do HIV continuam a ser editadas em todo o mundo, principalmente na África Subsaariana e em algumas regiões da Ásia. Há, nesses países, um forte movimento voltado para a adoção de leis específicas sobre HIV/Aids e, no bojo de projetos desse tipo, muitas vezes, aparecem dispositivos sobre a criminalização da transmissão do vírus. Na América Latina também não se tem dado ênfase a esse problema, apesar da existência de casos judiciais em alguns países, inclusive no Brasil.

Mais de 45 países já adotaram leis que especificamente criminalizam a transmissão ou a exposição ao HIV e muitos outros estão em processo de discussão para a aprovação de leis semelhantes. Alguns países estão, em situação oposta a essa, discutindo a revogação ou abrandamento de tais leis, como é o caso da Dinamarca.

África

A região mais afetada do mundo, que concentra o maior número de casos de aids – a África, em especial a região Subsaariana – só a partir de anos mais recentes passou a incorporar de forma mais ampla a testagem para o HIV e o tratamento da doentes. Nesses países, a discussão sobre a criminalização da transmissão do HIV ainda não chegou de forma intensa. Os processos de criminalização envolvem prioritariamente comportamentos considerados de risco, como o comportamento ou a orientação homossexual e o comércio sexual.

A proliferação de leis na África, desde 2005, faz dessa região a parte do mundo mais legislada em assuntos relacionados ao HIV. As novas leis seguem o padrão dos Estados Unidos de adotar legislação específica para criminalizar a transmissão ou exposição ao HIV.

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Essa tendência legiferante no continente africano é fruto de um projeto desenvolvido pelo USAID para a África Ocidental – o Action for West Africa Region (AWARE-HIV/AIDS) – e implementado pela organização não- governamental Family Health International (FHI), entre 2003 e 2008 (166). Esse projeto teve como objetivo propor um modelo de legislação para o HIV, mas com a ressalva de que os países tinham plena liberdade para promover adaptações ou modificações julgadas necessárias, de acordo com os seus contextos específicos. Um dos dispositivos constantes do modelo proposto trata justamente da criminalização da transmissão do HIV e muitos países reproduziram em suas leis esse dispositivo quase literalmente como ele está posto no modelo (166). Entre 2004 e 2010, vinte e cinco países africanos adotaram leis que criminalizam a transmissão ou a exposição ao HIV – 13 dos quais tiveram como modelo o AWARE – e seis países têm projetos nesse sentido.

Ásia

Numerosos países asiáticos criminalizam a transmissão intencional ou negligente do HIV: Brunei Darussalam, Burma, Índia, Malásia, Singapura, Sri Lanka, Vietnã, Camboja, China, Austrália e Nova Zelândia. Em alguns países, como a China, a obrigatoriedade de revelação do diagnóstico ao parceiro sexual é determinada por lei.

Caribe

A maioria dos países do Caribe não possui leis específicas sobre a criminalização da transmissão do HIV. No entanto, em Bermuda e Bahamas há previsão de crime específico relacionado ao HIV dentro da lei penal geral e em Cuba há lei sobre a criminalização da transmissão intencional de doença transmissível.

Europa

A Europa é o continente com o maior número de países com leis penais especificas que criminalizam a transmissão do HIV.

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Na Inglaterra, têm sido construídos diversos instrumentos para orientar a aplicação da lei penal aos casos de transmissão do HIV, boa parte deles, com a colaboração da comunidade HIV. Um deles, editado pelo Crown Prosecution Service (CPS) – espécie de Ministério Público inglês –, em 2008, é um guia para orientar a utilização da lei penal nos casos de transmissão do HIV (182, 183), que inclui a orientação de se usar a análise filogenética para orientar as decisões.

América do Norte

No Canadá, as leis sobre agressão sexual têm sido aplicadas nos casos de exposição e transmissão do HIV, com base no entendimento de que a não revelação do status sorológico antes da relação sexual enviesa e compromete o consentimento para a relação sexual. Outras leis criminais também têm sido aplicadas, como a relacionada à acusação de homicídio.

Nos Estados Unidos, existem leis específicas sobre a criminalização da transmissão do HIV em 29 estados. A proliferação dessas leis estaduais foi induzida por norma federal que exigia que os estados introduzissem leis para criminalizar a exposição do HIV como condição para que recebessem recursos federais.

América Latina

Na América Latina, diversos países editaram leis específicas ou fizeram alterações nas leis penais para incluir dispositivos sobre a criminalização da transmissão do HIV, como em: Belize, Bolívia, Colômbia, El Salvador, Costa Rica, Equador, Honduras, Panamá e Paraguai. Apesar disso, só são conhecidos casos judiciais envolvendo a transmissão do HIV no Brasil.