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O estudo das ideias discutidas na seção anterior permitiu que aproximássemos Laplanche de Freud em relação ao caráter subversivo de suas proposições. Se a psicanálise foi inventada com base na premissa de que a sexualidade subverte a biologia, já que sua finalidade se desvincula da procriação, Laplanche segue esse mesmo percurso ao postular que a designação de gênero não é determinada pela biologia, mas por mensagens implantadas na criança pelo adulto cuidador. É essa insistência do autor na primazia da alteridade que, para nós, torna tão profícuo o diálogo entre a teoria laplanchiana e os movimentos sociais. Se as teóricas feministas não se debruçam nos pormenores entranhados nas relações sociais que nos definem, uma vez que esse não é necessariamente seu campo de estudo, essas proposições de Laplanche nos oferecem ferramentas para entender como as relações sociais são transmitidas e internalizadas psiquicamente por meio das mensagens do socius. Essa concepção aponta, portanto, a centralidade dos adultos que cercam a criança no processo de transmissão dos códigos sociais.

Se nosso ponto de vista encontra pontos convergentes entre as ideias laplanchianas e os movimentos feministas, o próprio Laplanche, na contramão de nossa proposição, aponta divergências entre suas concepções e as argumentações de autoras feministas. Ao se referir a Judith Butler e Nicole-Claude Mathieu, ele afirma que as autoras restauram uma certa noção biológica quando utilizam a noção de sexo, ainda

que seja para, posteriormente, subvertê-la pelo gênero. Vejamos como essa perspectiva é dissonante do caminho que estamos propondo.

Ao analisar as frases de Beauvoir e Freud, Laplanche os coloca sob a “querela do retroativo”, comparando as perspectivas desses autores com a concepção de Butler e

Mathieu acerca da desnaturalização do sexo pelo gênero. Se, por um lado, concordamos com a crítica à “ação adiada”, que além de se basear num determinismo tardio do passado pelo presente também pressupõe o ipsocentrismo, não acreditamos que ela se aplica a Butler e Mathieu, conforme Laplanche afirmou. Se elas defendem que existe uma ação do gênero sobre o sexo, isso não significa que essa noção de sexo seja biológica, tal como denuncia Laplanche. E nossa argumentação para defender esse ponto de vista se sustenta na própria discussão que ele faz acerca da anatomia. Vimos que ele afirma que a anatomia não é biologia, fisiologia e tampouco determinismo hormonal, já que ela é algo perceptual e ilusório, inserido no campo da contingência. Assim, fica impossível sustentar que as autoras restauram uma noção biológica simplesmente por conservarem a noção de sexo. Isso significa que Laplanche acredita que a noção de sexo restaurada por essas autoras está no campo da biologia quando, na verdade, sob nosso ponto de vista, a concepção das autoras segue a mesma linha do raciocínio que o próprio autor faz acerca da anatomia, ou seja, o sexo, para elas, também é uma apropriação cultural de um dado da biologia.

A subversão da concepção de anatomia proposta por Laplanche reside na possibilidade de incluí-la na ordem da contingência. Isso significa que a biologia, em si, não tem uma significação apriorísitica, já que é a maneira como nós a tomamos que determinará a significação que ela adquirirá. Se, à primeira vista, a conclusão de Laplanche acerca da inacessibilidade dos órgãos genitais femininos pela adoção da posição ereta pode parecer um desvio biologizante, o fato de o autor enfocar a mudança de comportamento do seres humanos frente a esse desenvolvimento físico, tomando-a como contingência, demonstra que não é à biologia que o autor faz referência. Se a manutenção do sexo enquanto conceito fosse suficiente para biologizar a teoria construída por essas autoras, a utilização da anatomia feita por Laplanche também o seria. Sob o nosso ponto de vista, as ideias das autoras feministas não podem ser tratadas como mantenedoras de uma concepção biologicista, já que, ao contrário de divergirem do pensamento de Laplanche, elas parecem exatamente ir ao encontro dele.

Para finalizar, gostaríamos de apontar que a ponderação feita por Laplanche em relação à adoção da postura ereta e a consequente compreensão da biologia a partir da

ordem contingencial desencadeiam algumas implicações. Se a apropriação da diferença sexual deve ser entendida pela ótica da cultura, isso significa que ela tem a função de um signo ou significante. Essa função indica, portanto, que a vinculação estabelecida entre fálico/castrado e feminino/masculino, que é “quase biológica”, precisaser questionada. Partindo do pressuposto de que tais relações não são naturais, novamente colocamos em xeque a relação comumente estabelecida entre castrado/fálico, feminino/masculino e passividade/atividade. O próximo capítulo destrinchará um pouco mais essas questões.

4 IDENTIFICAÇÃO COM A MÃE: REINSTAURAÇÃO DA ALTERIDADE

Neste capítulo, a relação entre fálico/castrado e presença/ausência proposta por

Laplanche no texto “Gênero, sexo e o sexual” será explorada. Ao discorrer sobre a

mudança no comportamento dos seres humanos com a adoção da postura ereta, o autor aponta como ela foi responsável pela exclusão do órgão genital feminino do campo visual. Essa mudança fez com que o par de opostos fálico/castrado fosse eleito para simbolizar a diferença entre os sexos na espécie humana, levando a um questionamento feito pelo pensamento laplanchiano: o par de opostos fálico/castrado não seria apenas um desdobramento de um outro par, o da presença/ausência, que se encontra no cerne de nossa civilização?

Acreditando que esse questionamento é de extrema importância, e concordando com a concepção de que é um binômio que se encontra no cerne de nossa civilização, gostaríamos de aprofundar essa discussão propondo que a associação comumente feita entre presença/fálico/masculinidade e ausência/castrado/feminilidade tem um caráter contingencial, conforme vimos desenvolvendo ao longo de nossa argumentação. Para isso, enfocaremos a relação entre feminilidade e passividade sob uma outra perspectiva. Assim, um longo caminho será iniciado pelo estudo da aquisição da identidade de gênero embasado nas ideias de Robert Stoller, com o objetivo de fundamentar a discussão que é proposta por Paulo César Ribeiro (2000) sobre a importância dos processos identificatórios na atribuição de feminilidade aos conteúdos de passividade. Essas ferramentas teóricas possibilitarão uma discussão acerca da ênfase dada pelo autor brasileiro aos processos identificatórios, que será utilizada como contraponto em relação ao caráter problemático da circunscrição da passividade pelo orifício vaginal, conforme já foi discutido no capítulo II.

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