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André (1996) acredita que a renúncia da posição feminina dos meninos é teorizada apenas nos termos do medo da castração porque está relacionada a esta passividade generalizada. Ao incidir apenas sobre a preservação do pênis, esse medo considera somente o caráter narcísico da renúncia envolvida no complexo de Édipo, negligenciando a existência da passividade e da força libidinal presentes no desejo de ser penetrado. Para ele, a feminilidade “castrada” tem primazia sobre a “orificial”, porque a “angústia de castração aparece como a maneira de qualificar e, com isso, tornar mais manejável e mais dominável uma angústia em suspenso, quantum livre de

uma libido subtraída do alvo feminino.” (ANDRÉ, 1996, p. 82). Isso esclarece as razões

pelas quais o caráter disruptivo da feminilidade e a dificuldade de manejo que ele apresenta são rechaçados em nome da lógica da castração.

11 Cf. o desenvolvimento da concepção lacaniana de que “a mulher não existe” em Lacan, J. (1982) Seminário XX: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar Ed. (Trabalho original publicado em 1975).

Embora o caráter defensivo contra a feminilidade seja evidente, alguns trechos da obra freudiana deixam sua existência transparecer. Se, por um lado, a teoria freudiana negligencia a vagina em detrimento do pênis, André aponta um dos poucos trechos da obra freudiana em que a concepção falocêntrica não faz a feminilidade desaparecer. Ele pode ser encontrado no caso do Homem dos Lobos, quando Freud admite o desejo do paciente de ocupar o lugar da mulher na cena primária. Ao reconhecer essa investida homossexual, ele chega a afirmar que o paciente ocupa a posição feminina na cena. Essa afirmação marca um dos raros momentos em que Freud reconhece os vestígios de um desejo de penetração nos meninos. Outro momento em que o caráter penetrável da vagina foi reconhecido por Freud pode ser encontrado na afirmação de que os meninos denominam a vagina como “popô da frente”, indicando a relação entre o orifício anal e o vaginal. Isso demonstra que, embora a feminilidade fosse teorizada em termos de castração, o caráter penetrável dos “buracos” do corpo era, de alguma maneira, reconhecido por Freud.

Apesar de não ter discorrido longamente sobre o desejo de penetração nos meninos, André ressalta as pistas que devem ser seguidas pelos leitores na exploração

dos caminhos que foram apenas indicados pela obra freudiana. Se o “popô” pode se

referir tanto ao buraco da frente como ao de trás, a possibilidade da penetração nos

meninos também deve ser considerada. A utilização da expressão “popô da frente”

indica, portanto, como a vagina está relacionada aos outros orifícios do corpo, demonstrando que a obtenção de prazer relaciona-se com a fantasia de passividade tanto nas meninas como nos meninos.

Vimos como a constatação freudiana de que os pais de suas pacientes neuróticas em sua maioria não poderiam ser pedófilos levou ao abandono da teoria da sedução como fonte das neuroses. Tal abandono, entretanto, além de ter descartado a irrealidade da fantasia de suas neuróticas, também desconsiderou a importância do papel do adulto como sedutor (Laplanche, 1988). Se Freud descartou a fantasia de sedução das histéricas por sua irrealidade, Laplanche ressalta que tal fantasia não deve ser jogada fora, mas deve ser analisada sob a ótica da violência que a relação com um adulto sedutor representa para um psiquismo totalmente passivo. Baseando-se nessas ideias laplanchianas, Jacques André nos conta que o próprio Freud (1905/2006) reconheceu, nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o caráter sedutor dos cuidados destinados à criança no início do desenvolvimento psíquico. Mas, embora o texto de 1905 reconheça que a estimulação sexual provocada pelo adulto nos primeiros cuidados

não representa pedofilia, o abandono da teoria da sedução acabou desconsiderando a importância do outro sedutor na origem das neuroses. André atribui esse abandono ao recalcamento do potencial excitatório do pai, uma vez que Freud parece ter tido dificuldades em reconhecer não somente a sedução sofrida por parte de seu pai, Jacob, como também a sedução exercida sobre sua filha por ele, que certamente ficou evidenciada após ela ter se deitado em seu divã. Ao ressaltar essa dificuldade de Freud, o autor endossa o caráter insuportável decorrente do recalcamento das experiências de passividade.

Em conjunto com as outras argumentações que já descrevemos, essa última endossa uma constatação que se delineia como a ideia central do pensamento de Jacques André, a de que é a percepção do caráter penetrável da vagina diante da descoberta da diferença anatômica que estabelece uma relação entre passividade e feminilidade. Assim, após a constatação do caráter penetrável da vagina, a criança passa a conceber como femininas as experiências de penetração generalizada às quais ela havia sido submetida quando bebê. A vagina, portanto, circunscreve as intromissões da sexualidade do adulto, fazendo com que a posição feminina ofereça uma primeira representação para a posição traumática da criança diante da sedução generalizada. “A

‘criança-seduzida’ ocupa uma posição feminina na medida em que ‘é uma criança-

cavidade, uma criança orificial.’” (André, 1996, p. 98).

Essa constatação denuncia a existência de um prazer envolvido na penetração generalizada que é semelhante ao prazer sentido pela mulher quando é penetrada. Ela demonstra, portanto, como a passividade está estreitamente relacionada à feminilidade num momento muito anterior à puberdade, colocando em xeque, mais uma vez, a ideia de que o conhecimento da vagina acontece somente na adolescência. Se as representações do interior feminino provenientes do inconsciente do adulto são implantadas na criança durante os cuidados primários, o conhecimento da feminilidade acontece muito precocemente e está intimamente relacionado às origens do psiquismo.

A relação entre passividade e feminilidade proposta por André aponta como ele

acredita que um significante deve ter uma “inscrição na carne” para adquirir o caráter de

representante da pulsão, já que a passividade da criança em relação ao adulto não se dá apenas no plano simbólico, mas também concretamente pela introdução do mamilo na

boca e do supositório no ânus. Esta necessidade de uma “inscrição na carne” vai de

encontro à proposição lacaniana acerca da constituição do sujeito a partir da inserção no mundo simbólico. Portanto, André acredita que sua proposição seria acusada de

“anatômica” por Lacan, uma vez que se baseia na existência de sensações vaginais

precoces e na circunscrição da passividade pela vagina. No entanto, ele lembra que a tomada da cloaca pelas teorias sexuais infantis já demonstra que não é de uma endogênese biologizante que se trata, e sim de algo que, apesar de associar fantasia e sedução, não despreza a anatomia. Para ele, em relação à sua referência anatômica, a

teoria psicanalítica oscila entre dois extremos: “ou ela é levada em conta e se impõe

como um destino, ou é tratada como uma quantidade desprezível, pelos parâmetros desenvoltos da fantasia. Isso equivale a esquecer o que a anatomia deve à história do

sujeito” (André, 1996, p. 104).

Em relação às ideias que defende, Jacques André não acredita que elas corroborem com o deslocamento para um ginocentrismo, já que apenas reconhecem a feminilidade como um sexo cuja existência não se referencia somente na ausência da masculinidade. Segundo ele, a relação do feminino com o recalcado, ao contrário do que acontece em relação à masculinidade, não centraliza nada, já que, enquanto a lógica fálica é de centramento, a da feminilidade pode ser aproximada do recalcado disruptivo. André aponta que se o ginocentrismo realmente existisse, seus resultados seriam

perceptíveis. Assim, “a irrupção das mulheres (das mulheres, não das mães) no cenário

político, quando se produz, menos faz deslocar o centro do que desorganizar o

princípio.” (André, 1996, p. 117). Com isso, ele defende que a centralização em torno

da feminilidade é impossível, já que a participação do feminino na sociedade desorganizaria o princípio.

Para concluir, sintetizaremos nossa descrição das ideias de Jacques André da seguinte maneira: se no início da argumentação ele defende a precocidade das sensações vaginais, apontando para as origens da feminilidade, o desenvolvimento de suas ideias delineia a existência de uma feminilidade precoce, ou seja, uma feminilidade das origens que está presente em todos os sujeitos independentemente do sexo.

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