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A teoria psicanalítica diante das novas cobranças de subversão na esfera da sexualidade

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Academic year: 2017

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150 M477t 2016

Mazzini, Cristiana de Amorim

A teoria psicanalítica diante das novas cobranças de subversão na esfera da psicanálise [manuscrito] / Cristiana de Amorim Mazzini. - 2012.

99 f.

Orientadora: Cassandra Pereira França.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia.

1. Psicologia – Teses. 2. Psicanálise – Tese. 3. Relações de gênero - Teses. 4. Movimentos sociais – Teses. 5. Sexo - Teses. I. França, Cassandra Pereira. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências

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CRISTIANA DE AMORIM MAZZINI

A teoria psicanalítica diante das novas cobranças de subversão na esfera da sexualidade

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Estudos Psicanalíticos

Orientadora: Prof. Dra. Cassandra Pereira França

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Em primeiro lugar agradeço à minha querida mãe, pelo orgulho escondido atrás da preocupação maternal por minhas escolhas “tortas”. Obrigada por seu exemplo de força, que me ensinou a acreditar na possibilidade de transpor barreiras intransponíveis.

Agradeço à minha querida irmã, Lu, pelo companheirismo na estrada da vida. Seu brilhantismo ensinou-me a exigir mais de mim, o que foi determinante para eu chegasse até aqui.

Ao Beto, pelo carinho, incentivo e pela alegria que traz à nossa família.

À Cassandra, pelo papel decisivo em minha formação, pela orientação e principalmente pelo carinho representado pelas portas da casa sempre abertas.

Ao Professor Paulo César, pela inteligência instigante.

Às queridas amigas Izabela e Larissa (em ordem alfabética). Obrigada pelos vinhos, cervejas, discussões, jantares, angústias e alegrias. Os encontros com vocês, sempre regados com discordâncias e risos, dão sentido à concepção de que a formação do analista vai muito além da academia. Vocês tornaram o caminho até a defesa mais doce.

Ao Fred, grande incentivador, pelo carinho contido nos braços sempre abertos. Nossas discussões sempre acaloradas e conversas inspiradoras foram fundamentais para a construção desse trabalho.

Ao Professor Fábio Belo, pelos debates ao longo do caminho e pela disponibilidade sempre presente.

À minha prima Adriana, com quem compartilho angústias e sonhos nos caminhos acadêmicos.

À Silvinha, companheira dos primeiros passos nessa jornada.

Aos amigos Agueda, Ana, Carol, Diogo, Júlia, Júnia, Laura (e Renato), Liliane (e Lara), Mari e Rafa que sempre me oferecem apoio.

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RESUMO

O presente trabalho é constituído por um posicionamento crítico em relação a algumas concepções psicanalíticas que não se atualizaram diante das configurações da sexualidade na contemporaneidade. A mudança no papel social da mulher e a busca de reconhecimento dos homossexuais fizeram com que esses sujeitos reivindicassem que a sociedade se reposicione diante das concepções conservadoras que provocam a sua submissão e opressão. Apesar de ter sido subversiva em relação a aspectos como a proposição da sexualidade infantil e a variabilidade do objeto de satisfação sexual, a psicanálise foi construída com as lentes do final do século XIX. Assim, com base nas críticas feitas pelos movimentos feminista e LGBT à psicanálise, o estudo de textos de Laplanche e autores laplanchianos foi empreendido de forma a apontar os momentos em que a teoria psicanalítica mantém uma postura anacrônica, necessitando, assim, rever alguns de seus pressupostos conceituais para que fique em consonância com os dilemas da sociedade contemporânea.

palavras-chave: psicanálise, subversão, sexualidade, movimento feminista, movimento

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ABSTRACT

This work criticizes some psychoanalytical conceptions that have not been updated according the configurations of contemporary sexuality. The changing role of women and the search for recognition sought by homosexuals led these peoples to claim a revaluation of conservative conceptions that cause oppression and submission. Psychoanalysis, in spite of being subversive in relation to infantile sexuality and the variability in object of sexual satisfaction, was constructed with lenses from the end of 19th century. Therefore, based on the critique proposed by feminist and gay movements, the study of essays from Laplanche and laplanchian authors was undertaken aiming to highlight moments in which psychoanalytic theory has been sustaining an anachronic prospective that should be looked at in order to be consistent with the dilemmas of contemporary society.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 08

1 ESTRUTURALISMO: SIM OU NÃO? ... 16

1.1 Laplanche e o inconsciente como condição de linguagem ... 16

1.2 Laplanche e o inconsciente como condição de linguagem ...16

1.3 Depois de Bonneval ... 21

1.4 O estruturalismo, sim ou não? ... 28

1.5 Lacan estruturalista? ... 31

1.6 E os movimentos sociais entram no debate ... 34

2 A PASSIVIDADE É FEMININA? ... 44

2.1 E a descoberta da feminilidade, quando acontece? ... 44

2.2 O complexo de masculinidade e primazia do falo são inquestionáveis? ... 46

2.3 As origens femininas do inconsciente ... 48

2.4 A passividade é feminina? ... 51

3 GÊNERO E SEXO: QUAL A RELAÇÃO ENTRE ELES? ... 57

3.1 O sexo é biológico? ... 65

4 IDENTIFICAÇÃO COM A MÃE: REINSTAURAÇÃO DA ALTERIDADE ... 68

4.1 A feminilidade em Stoller ... 68

4.2 Bebê tradutor? ... 73

4.3 Recalcamento, inconsciente e identificação ... 75

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4.7 Os binômios e o estruturalismo ... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 91

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INTRODUÇÃO

A época em que vivemos vem sendo marcada por grandes transformações na esfera da sexualidade. A Segunda Guerra Mundial, que marcou a saída das mulheres para o mercado de trabalho devido à ausência de mão de obra masculina, fez com que a sociedade consolidasse um questionamento, já levantado pela Revolução Francesa, acerca da restrição da importância social delas ao âmbito familiar, o que tornou as mudanças referentes ao papel da mulher irrevogáveis. Se essas transformações ocorridas em decorrência da guerra, entre o final da década de 1930 e início de década de 1940, já haviam sido profundas, o advento da pílula anticoncepcional, ocorrido na década de 60, ofereceu a elas a ampliação das possibilidades de expressão de seus desejos sexuais, graças à possibilidade de controle da gravidez.

Diante dessas mudanças, o questionamento das relações sociais que lhes atribuíam menor valor na sociedade se consolidou e começou a adquirir um caráter mais organizado. Foi em meio a essa efervescência que surgiu o movimento feminista, reivindicando igualdade de direitos para as mulheres. A consolidação de sua importância no sustento da família e a alteração do conceito do que é ser mulher possibilitou que os movimentos feministas crescessem e se diversificassem, ampliando as reivindicações que faziam, adequando-as de acordo com as especificidades de cada grupo de mulheres. Sem dúvidas houve ganhos significativos; por outro lado, é preciso reconhecer que os desafios ainda continuam. A luta das mulheres pelos seus direitos ainda está muito longe de terminar já que, para citar apenas alguns exemplos, elas continuam ganhando menos mesmo quando exercem a mesma função do homem e também permanecem sofrendo um índice alarmante de violência que criou a necessidade da promulgação da lei Maria de Penha – um passo importante, mas que ainda não solucionou a questão. Assim, é possível perceber que o caminho percorrido por elas já foi longo, mas está longe do final.

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como GLS – gays, lésbicas e simpatizantes –, vem sendo atualmente denominado de LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, após ter sofrido mudanças na nomenclatura a fim de dar maior visibilidade às reivindicações das lésbicas, diante da sua marginalização no interior do próprio movimento, historicamente centrado nos gays. De maneira semelhante ao ocorrido com os movimentos feministas, a luta LGBT também obteve muitas conquistas. Hoje em dia, no contexto brasileiro, tornou-se possível incluir um parceiro do mesmo sexo como dependente no plano de saúde e no imposto de renda, usar a renda do casal homossexual para a concessão de financiamento e, recentemente, após a aprovação da união homossexual pelo Supremo Tribunal Federal, enquadrar a união homoafetiva como entidade familiar, possibilitando a adoção de crianças por casais homossexuais. Essas conquistas, entretanto, não garantem que eles sejam tratados em pé de igualdade. A discussão acerca dos possíveis problemas na estruturação psíquica desenvolvidos na criança criada pelo casal do mesmo sexo, assim como a frequência de episódios com violência brutal contra homossexuais, que é

“justificada” pelo simples fato de a vítima ser gay, oferecem uma pequena amostra de

como, apesar dos avanços, nossa sociedade ainda está muito longe do que pode ser

considerado “aceitável” em relação ao tratamento de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis.

O advento dessas transformações culturais em consonância com as reivindicações desses movimentos acabou produzindo teorias críticas em relação aos posicionamentos que mantêm posições excludentes. Judith Butler, filósofa estadunidense referência nos estudos não somente sobre gênero, mas também sobre sexualidade, identidade e poder, pode ser considerada um ícone desta corrente, já que seu pensamento crítico em relação à posição da mulher e das sexualidades não normativas tem grande influência no mundo contemporâneo. Embora o pensamento da autora não se restrinja a uma leitura crítica da teoria psicanalítica, ela estabelece um diálogo bastante interessante com as postulações de Freud e seus sucessores, apontando conceitos que precisam ser revisitados.

Baseando-se nos argumentos de Freud (1905/2006b) de que a pulsão apresenta uma variabilidade infinita de possibilidades de satisfação, indicando que a biologia é insuficiente para explicar as relações sexuais, descritos nos em seus “Três ensaios sobre

a teoria da sexualidade”, Judith Butler nos diz que se a pulsão pode encontrar satisfação

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alguns pressupostos psicanalíticos representaram uma subversão aos valores vigentes, percebe-se, por outro, como eles foram baseados em um contexto histórico específico, indicando que alguns de seus conceitos precisam ser revisitados. Assim, a autora sublinha como o mais significativo exemplo dessa necessidade está relacionado ao enraizamento da fundamentação psicanalítica na impossibilidade de existência própria da mulher, já que, como é a inveja do pênis que a define, a existência dela fica referenciada no homem. Ora, se tal afirmação era plausível quando a psicanálise foi inventada, há mais de cem anos, é possível continuar acreditando nela? Será que ela não é tributária de uma concepção patriarcal do mundo?

De maneira semelhante, Butler (2003) aponta como Freud, mesmo sendo subversivo ao defender a variabilidade do objeto de satisfação sexual, apresentou uma postura conservadora em relação à homossexualidade ao incluí-la no campo da perversão. Concepções como essa, apesar de não mais se sustentarem, continuam a nortear as decisões tomadas ainda quando, por exemplo, a psicanálise lacaniana francesa defende, por esse motivo, a impossibilidade da adoção de crianças por casais homossexuais (Arán & Júnior, 2007). Assim, a posição retrógrada de algumas concepções psicanalíticas diante das modificações contemporâneas na esfera da sexualidade pode fazer com que essas novas configurações acabem por ser incluídas no campo da perversão, da delinquência ou da loucura. “O mundo vai se tornando errado e a psicanálise se mantém certa em seu poder diagnóstico, quer das pessoas, quer da

cultura.” (Ferraz, 2008, p. 72 [grifos do autor]).

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o vínculo com a psicologia social se atenuasse. Após ter percorrido esse caminho, os estudos empreendidos do dentro universo psicanalítico fizeram com que eu me inserisse no Projeto CAVAS, Projeto de Pesquisa e Extensão no atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual do Departamento de Psicologia da UFMG, que faz pesquisas e realiza atendimentos psicológicos dentro da abordagem psicanalítica. A experiência clínica adquirida nesse projeto apontou uma preocupação bastante intrigante, muito comum entre os pais de meninos abusados por homens: a fantasia de que o fato de o menino ter sido abusado poderia influenciar sua escolha objetal, dando a ele um encaminhamento homossexual. Um caso clínico atendido no CAVAS, no qual o menino estava às voltas com questões concernentes à sua identidade masculina, remeteu à essa preocupação dos pais, delineando uma questão acerca da relação entre escolha de objeto sexual masculina e o atravessamento da contingência do abuso sexual. Seria possível relacionar abuso sexual e homossexualidade masculina?

Essa foi a pergunta que norteou a escrita do projeto de pesquisa e o ingresso no mestrado. O início dos estudos, entretanto, demonstrou como essa questão era bem mais complexa do que à primeira vista pareceu ser. A pluralidade de caminhos da sexualidade, independentemente de situações de violência, indicou que, antes de estudar o atravessamento da contingência do abuso sexual, era preciso retornar às origens do sujeito psíquico para entender como ocorrem os processos de constituição da identidade sexual e escolha de objeto.

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ser cometida. O problema de pesquisa inicial, que procurava entender a relação entre abuso sexual e homossexualidade, implicou uma questão que, caso não fosse bem esmiuçada, poderia reforçar a caracterização da expressão da sexualidade dos

homossexuais como “problemática”, uma vez que relacionava a expressão homoafetiva

a uma violência.

À medida que essas questões se apresentaram, a necessidade de reformular a questão inicial da pesquisa foi se tornando evidente, já que as perguntas passaram a girar em torno do posicionamento da psicanálise diante das novas configurações da sexualidade. As leituras psicanalíticas sobre a constituição da identidade sexual e a estreita relação com a origem do psiquismo começaram, então, a ser tomadas a partir desse olhar crítico. Dentro dessa nova perspectiva, o pensamento de Laplanche foi se tornando central na construção desse trabalho, uma vez que o inconsciente e suas origens estão no foco das investigações deste autor. Se nessas leituras foi possível destacar passagens em que a teoria psicanalítica subverteu concepções vigentes e propôs algo surpreendente, tal como com a proposição da sexualidade na infância, outros momentos nos quais ela serviu – e ainda serve – para a manutenção de uma visão conservadora acerca da sexualidade também puderam ser sublinhados. Para isso, as concepções de Laplanche e Butler foram utilizadas.

Tal como Copérnico, que indicou que o homem não é o centro do universo, Laplanche (1993a) também aponta como a psicanálise freudiana também foi revolucionária ao propor a primazia da alteridade na constituição do psiquismo. Essa revolução, entretanto, ficou inacabada, uma vez que Freud negligenciou a importância da alteridade na construção das fantasias da neuróticas ao abandonar a teoria da sedução, fazendo com que o sujeito fosse entendido a partir de um autocentramento, ou como o próprio autor denominou, a partir de um movimento ipsocentrista.

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perdeu. Passamos, então, a tentar compreender como a psicanálise poderia contribuir para a compreensão das transformações ocorridas na sexualidade contemporânea com o mesmo potencial subversivo presente no início de sua criação.

O primeiro capítulo do nosso trabalho apresenta como as críticas de Laplanche proferidas no polêmico Colóquio de Bonneval, em 1960, desencadearam seu rompimento com Lacan, ao consolidarem a discordância laplanchiana em relação ao

“inconsciente estruturado como linguagem”. Após essa apresentação, um estudo das

ideias presentes na conferência intitulada “O estruturalismo, sim ou não?” (1981),

proferida por Laplanche no México, é feito com o objetivo de inserir os embates teóricos entre os dois autores numa contextualização histórica. Isso possibilita o alinhamento da posição laplanchiana às críticas que vêm sendo feitas ao estruturalismo e torna possível a aproximação das ideias de Laplanche aos movimentos feminista e LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais).

O segundo capítulo contém uma análise das ideias de Jacques André (1996) contidas no livro As origens femininas da sexualidade. A partir das concepções defendidas neste livro, analisamos pontos em que o autor acabou contribuindo para a subversão de concepções normativas e pontos em que ele corroborou com posições conservadoras. Percorremos o caminho feito pelo autor em defesa de uma existência da feminilidade que lhe seja própria, ou seja, que envolve uma concepção do feminino determinada por algo além da ausência do pênis. Essa discussão nos oferece elementos para chegarmos à ideia central da argumentação do autor, que se refere à circunscrição da passividade pelo orifício vaginal. Diante dessa afirmação, o questionamento acerca do emparelhamento entre passividade e feminilidade é feito, colocando em xeque sua fundamentação em uma estrutura biológica. Essa problematização possibilita que um paralelo entre nosso posicionamento e as críticas apresentadas pelos movimentos feministas.

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propostas pelas feministas não vão de encontro ao pensamento de Laplanche, já que podem ser alinhavadas às suas concepções.

O último capítulo explora uma concepção laplanchiana que é descrita no capítulo III, qual seja, a de que a adoção da postura ereta foi responsável pela exclusão do órgão genital feminino do campo visual. Se, segundo o autor, tal mudança fez com que o par de opostos fálico/castrado fosse eleito para simbolizar a diferença entre os sexos na espécie humana, surge o seguinte questionamento: o par de opostos fálico/castrado não seria apenas um desdobramento de um outro par, o da presença/ausência, este sim encontrado no cerne de nossa civilização? Acreditando que esse questionamento feito por Laplanche é de extrema importância, e concordando com a concepção de que existe um binômio que se encontra no cerne de nossa civilização, esse capítulo apresenta um aprofundamento dessa discussão partindo, do caminho que se inicia com o estudo da aquisição da identidade de gênero trilhado. As ideias de Robert Stoller (1982, 1993) são apresentadas com o objetivo de embasar a discussão que é proposta por Paulo César Ribeiro (2000) sobre a importância dos processos identificatórios na atribuição da feminilidade aos conteúdos de passividade. Munidos dessas ferramentas teóricas, uma discussão acerca da ênfase dada pelo autor brasileiro à identificação foi feita com o objetivo de propor que as ideias de Ribeiro podem ser utilizadas como contraponto em relação ao caráter problemático da circunscrição da passividade pelo orifício vaginal, que é proposta no capítulo II. Isso permitiu apontar o caráter contingencial da relação entre passividade e feminilidade e ofereceu elementos para pensar como os emparelhamentos entre passividade/castrado/feminino e atividade/fálico/masculino podem ser tomados pela ótica de uma contingência, cujo cerne é, conforme propôs Laplanche, o par presença/ausência.

Após termos delineado o percurso percorrido por este trabalho é possível perceber, embora as teorias sempre tragam as marcas da cultura vigente e estejam carregadas das representações sociais e das relações de poder, o quanto a psicanálise deve estar atenta para que seu poder subversivo não se perca num conservadorismo. Se a existência de representações sociais e de relações de poder faz parte do mundo em que vivemos, isso não torna desnecessário o questionamento dos valores hegemônicos que causam sofrimento aos excluídos do discurso dominante.

Se as questões concernentes às sexualidades “desviantes” e às reivindicações das

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1 ESTRUTURALISMO: SIM OU NÃO?

Na época do polêmico Colóquio de Bonneval, em 1960, Laplanche não somente tinha sido analisando de Lacan por muito tempo como também era um de seus discípulos. A apresentação de Laplanche no colóquio, entretanto, teve repercussões que acabaram desencadeando o rompimento entre os dois. Este capítulo apresentará como as críticas laplanchianas proferidas em 1960 inicialmente pareciam ser apenas um desdobramento do pensamento lacaniano, para, num segundo momento, descrever a

solidificação da discordância de Laplanche em relação ao “inconsciente estruturado como linguagem”. Nesse segundo momento, a apresentação das ideias presentes na conferência intitulada “O estruturalismo, sim ou não?” (1981), proferida por ele cerca

de 20 anos após Bonneval, no México, será feita com o objetivo de inserir os embates teóricos entre os autores numa contextualização histórica que possibilitará o alinhamento da posição laplanchiana às críticas que vêm sendo feitas ao estruturalismo, com o objetivo de aproximar as ideias de Laplanche tanto do movimento feminista quanto do movimento LGBT.

1.1 Laplanche e o inconsciente como condição da linguagem

A apresentação no Colóquio de Bonneval, nomeada “O inconsciente, um estudo

psicanalítico”, foi escrita por Leclaire e Laplanche. Enquanto o primeiro se dedidou à

parte clínica do texto, o último se encarregou da parte argumentativa. Uma das seções dessa apresentação escritas por Laplanche, intitulada “O inconsciente é a condição da linguagem, interdependência dos sistemas pré-consciente e inconsciente”, acabou se transformando num divisor de águas que alterou para sempre o percurso teórico laplanchiano. Discorreremos a seguir sobre as ideias descritas nessa seção, que se consolidou como um capítulo da história da psicanálise.

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certa restrição ao livre escoamento da energia pulsional característicos do deslocamento e da condensação. Essas conclusões indicam como é preciso supor a existência de alguma coisa que possibilite a construção de diques para a contenção dos incessantes deslocamentos e condensações característicos do processo primário, que impedem que o funcionamento da linguagem seja esquizofrênico. Tentando esclarecer como a construção desses diques ocorreria, Laplanche defende que a cadeia inconsciente seria a responsável pela retirada da linguagem do reino exclusivo do processo primário. Essa formulação, que parecia apenas um desdobramento do pensamento de Lacan, foi fortemente rejeitada por ele, desencadeando um embate que culminou no rompimento entre os dois.

Na tentativa de explicar como a construção dos diques ocorre, Laplanche supõe a existência de um momento mítico, que seria regido apenas pelo processo primário e não imporia nenhuma barreira nem à condensação nem ao deslocamento. Esse momento mítico implicaria uma apropriação gradativa da linguagem pela criança, que apenas se inseriria no universo linguístico após conseguir apreendê-lo. A suposição desse momento mítico, entretanto, gerou o seguinte impasse: se todos os significantes se definissem pela relação com os demais, dando origem ao conjunto do sistema significante, não poderia haver nenhum significante que se definisse fora de sua posição no sistema. Um bom exemplo para entender essa questão é a captura do sentido das palavras no dicionário, no qual o significado de uma palavra é sempre dado em relação às outras demais. Se o sentido de um significante sempre é dado em relação a outro, implicando um deslizamento infinito que impossibilita a estabilização de qualquer significado, como seria possível capturar algum sentido?

Na tentativa de solucionar o problema, Laplanche recorre ao conceito dos

“pontos de capitonagem” forjado por Lacan1, que estabelece a existência de pontos nos quais a cadeia significante é fixada ao significado. O exemplo do dicionário novamente auxilia na exemplificação do conceito: se a apreensão do significado de um termo por meio da consulta ao dicionário é possível, é porque existe algo que impede a transformação de um significante em outro por meio do deslizamento. Aquilo que impede uma palavra de escapar pela porta que um determinado sentido abre é a posição

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de um determinado significante em relação aos outros no sistema, ou seja, o fato de um único significante comportar várias significações.

Essas formulações laplanchianas, tal como apresentadas em Bonneval, não

pretendiam ser nada além do desdobramento do momento mítico da origem dos “pontos

de capitonagem”. Se a exata apreensão da fixação de um significante a um significado é

impossível, Laplanche leva a compreensão dos “pontos de capitonagem” às últimas

consequências, descrevendo um momento mítico, que corresponderia à construção dos diques que contém o livre funcionamento do processo primário, no qual ocorre a fixação do significante ao significado. Com o objetivo de auxiliar a compreensão da origem

desses “pontos de capitonagem”, Laplanche utiliza a fórmula da metáfora de Lacan. Ele

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)

A descrição da fórmula nos termos do esquema II indica que aquilo que foi aparentemente simplificado não desapareceu, mas encontra-se abaixo da barra que separa o significante do significado. A concepção do esquema dessa maneira permite entender que quando um termo é deslocado para outro na operação da metáfora, ele não desaparece, mas permanece como conteúdo latente. Fazendo uma relação entre essa operação e a fixação do significado, é possível perceber que a significação fica definida pela posição que o termo inicial ocupa em relação ao metaforizado, o que significa que a preservação do primeiro como conteúdo latente indica um efeito de significação que só se dá a partir da posição de conteúdo latente que ele ocupa por ele no sistema. Portanto, a compreensão do efeito metafórico exige que a simplificação de não seja considerada uma mera supressão. Os recursos poéticos da metáfora se dão justamente pela permanência de algo do significado na forma de significante latente, já que afirmar

que “seus olhos são como amêndoas” só faz sentido se a ideia do significado de uma

amêndoa não se perder.

Retomando a construção do momento mítico a partir dessa argumentação, Laplanche recorre à brincadeira do fort-da para dar embasamento às suas ideias. Se o fort-da simboliza tanto a presença como a ausência da mãe por um par de fonemas

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oposição entre tais fonemas ainda não pode ser percebida. Esse momento mítico é caracterizado por um “mesmo movimento que produz a separação do céu e da terra e

sua nomeação” (Laplanche, 1992a, p. 247), no qual a percepção das relações de oposição se dá na medida em que a criança se insere no campo da linguagem, ou seja, a percepção do par de opostos presença/ausência enquanto tal acontece num movimento simultâneo, no qual a percepção da existência de A se dá em oposição a O.

Tal processo é composto de uma etapa puramente mítica que, num primeiro nível de simbolização, lança sobre o psiquismo, em vias de constituição, uma malha de oposições significantes. Nesse momento, há apenas a introdução da pura diferença, que

no gesto do “fort-da” seria representada pela barra da cama entre a criança e o carretel. O segundo nível de simbolização é o que Lacan chamou de metáfora. A criação do inconsciente insere-se neste segundo nível, como resultado do recalque originário que introduz uma hiância entre significante e significado, um lastro que nunca será reencontrado, a não ser no mundo do esquizofrênico. Essa segunda etapa põe um fim à incessante oscilação entre pares de opostos – tais como + e -, A e O, claro e escuro – pode ser considerada a ancoragem no mundo simbólico.

Ainda que seja possível perceber como essas ideias tinham a intenção de complementar a formulação lacaniana acerca dos pontos de capitonagem, Lacan discordou completamente dessa conceitualização. A pressuposição de que a apreensão da linguagem pelo sujeito ocorre somente após a constituição do inconsciente ia de encontro a uma concepção que foi defendida por ele até o último momento, qual seja, a de que a linguagem é que constituiria o inconsciente.

A tentativa de conciliação por parte de Laplanche pode ser percebida na manobra teórica feita por ele para afirmar que o estatuto ontológico do inconsciente como linguagem, tal como defendia Lacan, implica não concebê-la apenas como linguagem verbal. Desta maneira, os elementos do imaginário que são tomados pelo inconsciente não se transformam em linguagem verbal – a existência deles continua a ser composta por imagens que, além de não remeterem a nada que não sejam elas mesmas, não apresentam nenhuma distinção entre significante e significado. Embora o inconsciente seja composto por essas imagens, defendeu Laplanche, o imaginário visual também deve ser considerado como linguagem, ou seja, o imaginário visual pode ser

“elevado ao estatuto de significante”. (Laplanche, 1992).

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divergências que ficaram encobertas. Embora a apresentação de Laplanche não explicite

uma discordância irreversível ao “inconsciente estruturado como linguagem” de Lacan

em Bonneval, sua fundamentação não deixa dúvidas a respeito de seu ponto de vista. A

existência do inconsciente é imprescindível para a aquisição da linguagem. O

sujeito não é inserido na linguagem antes da constituição de seu inconsciente.

1.2 Depois de Bonneval...

Os anos que se seguiram indicaram que Laplanche não recuaria diante de seu

ponto de vista. Embora Lacan tivesse discordado severamente de sua posição, ele manteve seu ponto de vista, o que culminou no rompimento entre os dois. Se, em Bonneval, Laplanche estava totalmente inserido dentro do pensamento lacaniano, ele tomou seu próprio rumo teórico a partir de então. Talvez seja possível afirmar que a apresentação de 1960 já demonstrava uma discordância que parecia visualizar algumas limitações de uma corrente que foi bastante problematizada alguns anos depois, qual seja, a estruturalista. As limitações desse tipo de pensamento estavam implícitas nas discordâncias de Laplanche, mesmo quando o estruturalismo ainda fervilhava na

França. A exposição das ideias em uma conferência no México, intitulada “O estruturalismo: sim ou não?” será feita a partir desse momento com o objetivo de descrever como a crítica laplanchiana, cuja centelha foi acesa em Bonneval, não se restringe ao pensamento lacaniano, mas estende-se a um pensamento embasado em um puro formalismo.

Nesta conferência que foi proferida em 1981, Laplanche fez um balanço da influência do movimento estruturalista na psicanálise. Para isso, ele faz uma breve descrição de um dos pressupostos do estruturalismo, que postula que a correspondência direta entre os elementos de um determinado conjunto é uma ilusão, já que não existe nenhuma correspondência que seja biunívoca. Dessa maneira, de acordo com essa corrente de pensamento, só é possível apreender cientificamente a relação entre um determinado elemento A e um outro B pelos desvios e rodeios que um estabelece com o outro dentro de um conjunto. O exemplo do dicionário trazido por Laplanche em Bonneval é uma boa demonstração dessa relação, que além de exemplificar também

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A questão sobre a correspondência de elementos de um determinado conjunto introduz a problemática da noção de valor na linguística, que implica que o significado de um significante se dá apenas de forma mediada. Se a inserção do estruturalismo linguístico no campo da ciência é possibilitada pela definição do significado a partir da posição do termo na cadeia significante, Laplanche questiona se a noção de valor que se relaciona com a posição dentro da estrutura é uma posição ontológica ou se é apenas um postulado metodológico. Para exemplificar sua argumentação, ele compara o conceito de valor na linguística e no marxismo. Para Marx, o fato de o valor de troca ser o único que pode ser tratado pela ciência não implica o desaparecimento do valor de uso. É preciso perguntar, então, se a redução do sentido à estrutura feita pela linguística estruturalista é parte da tentativa de tratamento científico da linguagem ou se ela implica

o desaparecimento do “valor de uso” do termo. Tudo indica que o valor de uso acaba

desaparecendo.

A diferença entre a posição saussuriana e a lacaniana em relação à fórmula do significante sobre o significado é outra questão fundamental para Laplanche. Se a formulação de Saussure não parece justificar a separação dos conjuntos do significante e significado, já que tanto um quanto o outro contribuem simultaneamente para o efeito da significação, de onde veio a formulação de Lacan que defende a primazia do significante sobre o significado? Ela não seria apenas um idealismo do significante? A que serviria a primazia do significante além de indicar sua filiação a um estruturalismo que defende a preponderância da forma sobre o conteúdo?

Para sustentar sua argumentação, Laplanche recorre ao texto A interpretação dos sonhos (1899/1900), no qual Freud nos conta que os sonhos são a via régia para o

inconsciente. Embora o acesso ao sonho seja possível apenas pelo relato do sonhador, eles, em si, não são compostos de palavras, mas de imagens. Dessa maneira, o

inconsciente “como uma linguagem” tal como postulado por Lacan contradiz a concepção freudiana de um inconsciente formado por imagens, representações de coisa. Se, como vimos, Laplanche tentou encobrir a contradição do pensamento lacaniano ao

“elevar as representações de coisa ao estatuto de significantes” em Bonneval, nesse texto de 1981 a consolidação de seu pensamento escancara a incoerência presente na concepção de um inconsciente estruturado como linguagem.

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de cada sujeito. O fato de não ser sonhado com a intenção de comunicação indica um valor do sonho que não é simplesmente o “valor de troca”, uma vez que sua importância

se concentra em seu “valor de uso”. É a ausência de intenção de comunicação que faz

com que a interpretação do sonho por um código seja impossível, já que sua interpretação é sempre particular. Assim, o próprio Freud critica as chaves para a interpretação do sonho, que emudecem o sonhador e levam ao prevalecimento da significação da linguagem sobre a significação inconsciente. Essa crítica freudiana, formulada contra o pensamento de Jung, é retomada por Laplanche em relação ao pensamento de Lacan. Embora a teoria lacaniana não proponha uma chave para a

interpretação dos sonhos, a negligência do “valor de uso” pode ser tomada de maneira

semelhante à teoria junguiana. Com isso, surge o questionamento: o sonho é sonhado para ser decifrado? Para exemplificar e trazer seu posicionamento acerca da questão, Laplanche introduz o exemplo da ruborização de jovens no escuro. Faria sentido perguntar se alguém se ruboriza no escuro, levando em consideração que ninguém poderia perceber? Ora, comenta ele, tal como o rubor, o sonho ocorre independentemente de ser dirigido a alguém. Mas, o fato de ele não ser endereçado não impossibilita sua decifração como enigma, já que, mesmo considerando que o conteúdo onírico não tem intenção comunicativa, a psicanálise se propõe a estabelecer comunicação com ele, tal como faz com o sintoma. Isso indica como a supressão do

“valor de uso” feita pelo pensamento estruturalista tem implicações que não dão conta

de alguns aspectos importantes da interpretação dos sonhos.

Após as produções do inconsciente, os sonhos, Laplanche se detém no funcionamento do inconsciente como instância para problematizar outros aspectos defendidos pelo estruturalismo. O lapso, que é um elemento que indica como o funcionamento do inconsciente ocorre por meio da irrupção de um conteúdo na consciência, é utilizado por ele nessa problematização. Visto sob a ótica da introdução de uma negação que se origina no inconsciente, esse tipo de produção pode ser tomado em defesa dos estruturalistas. Laplanche, entretanto, defende que a introdução da partícula não, sempre presente no lapso, não advém do inconsciente, mas do processo secundário que se encarrega da censura. Se a negação está relacionada com um símbolo da linguagem, o inconsciente não pode abrigá-la, pois, como Freud afirmou, ele é o lugar da ambivalência e da coexistência de contrários.

(26)

não é estruturado. Laplanche afirma que o funcionamento de uma linguagem

estruturada, que considera a substituição pura e simples sem levar em conta o eu, comete um erro semelhante ao de Jung, que postulava a pré-determinação do significado de elementos do sonho. Assim, ele propõe que a fórmula lacaniana de que o

inconsciente é estruturado como uma linguagem não pode ser sustentada. Diante

disso, o autor propõe que ela seja reescrita da seguinte maneira: o inconsciente é

como-uma-linguagem não estruturado.

Laplanche retoma a problematização que ele empreende em Bonneval acerca da simplificação da fórmula da metáfora para descrever como ela corresponde à substituição pura e simples de um significante por outro, inserindo-se num funcionamento estruturalista que desconsidera o conteúdo, já que a simplificação da fórmula só pode ser concebida se nenhum elemento do termo anterior for preservado. A fórmula da metáfora, conforme Lacan a descreveu, só poderia ser utilizada caso a relação com o significante inicial seja totalmente suprimida. Um exemplo daquilo que a fórmula simplificada indicaria poderia ser dado por um termo indoeuropeu de etimologia sânscrita, que remete a algo que já foi completamente esquecido, já que é possível que a relação com suas raízes etimológicas tenha sido suprimida ao longo de tempo. Mas, como os deslocamentos e as condensações que conhecemos geralmente guardam relação com o termo do início, a simplificação não pode ser apropriada.

(27)

consolidou nos anos subsequentes a Bonneval, indicando que a crítica à simplificação do termo inicial, que parecia uma tímida proposta em 1960, se tornou uma necessidade irreversível nesta conferência de 1981.

Laplanche aponta como o funcionamento binário do complexo de castração e o ternário do complexo de Édipo poderiam ser usados para rebater as críticas que ele faz ao estruturalismo, já que ambos podem ser situados numa estrutura. Sua argumentação, entretanto, sugere que nem o binarismo e tampouco o ternarismo são necessariamente frutos do estruturalismo, uma vez que eles já eram encontrados desde Hegel. Para demonstrar a não exclusividade dos fenômenos de funcionamento binário ou ternário ao estruturalismo, ele utiliza uma passagem de um dos trabalhos mais formalistas de Lèvi-Strauss, no qual é possível apontar um funcionamento que não é puramente estrutural.

Em “O totemismo hoje” 2, o antropólogo utiliza a noção de totem para reduzi-la a um tecido de relações puramente classificatórias. Diante dessa redução, Laplanche pondera que ainda que algumas ideias de Freud em “Totem e tabu” (1913/2006d) possam ser colocadas em xeque, o totem freudiano é inquestionavelmente a figura concreta do pai morto, o que significa que ele não pode ser reduzido à estrutura. A tentativa de redução formalista do totem por Lévi-Strauss, dessa maneira, acaba caindo nas armadilhas do conteúdo em detrimento da forma, indicando a dificuldade de se manter preso a uma forma de pensamento que não transcende a pura classificação.

Reconhecendo que o estruturalismo psicanalítico encontra respaldo em algumas formulações freudianas, Laplanche examina quais elementos resistem à corrente estruturalista e quais se rendem a ela nos complexos de castração e Édipo. Para isso, ele ressalta que o momento em que a universalidade do complexo de Édipo se apresenta com mais força na obra de Freud coincide com o descobrimento dos fantasmas originários3. Assim, ele descreve como, ao contrário dos fantasmas cotidianos, os originários são constituídos por cenas apriorísticas, a partir das quais interpretamos nossa realidade, tal como a partitura que é interpretada pelos músicos. O fantasma originário da cena primitiva, por exemplo, que está diretamente relacionado ao complexo de Édipo, foi preconizado por Freud a partir do relato que o Homem dos Lobos fez da relação sexual entre seus pais. Esse caráter apriorístico dos fantasmas originários que, por um lado, acaba os aproximando tanto dos arquétipos junguianos

2 Uma descrição aprofundada das ideias do autor pode ser encontrada em: Strauss, C. L. (1980). O

totemismo hoje. São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1908)

3 Uma apresentação mais extensa das ideias do autor pode ser encontrada em: Laplanche, J. (1990).

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quanto do funcionamento estrutural, já que parecem ser desenvolvidos a partir de algo

que “brota” do indivíduo, por outro, distancia-se deles exatamente porque não são inatos, uma vez que sua universalidade deve-se a um acontecimento pré-histórico específico. O assassinato do pai da horda primitiva, que proíbe o acesso dos filhos às mulheres, é o acontecimento histórico que embasa a proibição do incesto necessária para a superação do complexo de Édipo. Embora Laplanche acredite que a transmissão

de um acontecimento renovado a cada geração, tal como feito por Freud em “Totem e Tabu”, é absurda, ele também destaca que a solução freudiana para explicar a universalidade do complexo de Édipo não foi estruturalista, e sim histórica. Embora seja preciso reconhecer a inverossimilhança da saída freudiana, também é necessário lembrar que a saída estruturalista para explicar a universalidade do complexo de Édipo, baseada na quebra da indiferenciação entre a mãe e a criança pela entrada do pai na relação, não é freudiana.

Esta discussão sobre a transmissão da lei e sua relação com o estruturalismo também é encontrada no debate sobre as origens do superego. A formulação freudiana clássica postula que ele é herdeiro do complexo de Édipo, uma vez que é a aceitação da interdição do incesto que irá promover a interiorização da lei paterna pela criança. A generalização desta proibição adquire um caráter estruturalista na medida em que apresenta a função de um enunciado, um dito paterno da ordem da linguagem. Essa concepção de superego, entretanto, não é a única possível, pois, sob o ponto de vista de Melanie Klein, a origem dele é bem anterior ao complexo de Édipo. Na contramão do que os estruturalistas acreditam, ela defende uma instância superegoica que é mais inquisidora e déspota do que propriamente legisladora. Tomando essas duas vertentes, Laplanche se pergunta se haveria dois superegos ou se a concepção de algum deles estaria equivocada. Sem escolher nenhuma das duas opções, ele apenas aponta que a concepção estruturalista não é a única, já que o próprio Freud, que teve contato com as ideias kleinianas, não se atreveu a refutar o que ela defendia, uma vez que seu embasamento clínico parecia ser bastante significativo.

Essa discussão apresenta como a ambiguidade está presente na teoria psicanalítica. A própria questão edípica exemplifica essa presença quando exige que o

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A situação edipiana, tomada como “triângulo” que é transmitido de uma geração à outra e possibilita a identificação da criança a partir de sua relação com os pais, também se apresenta de maneira mais complexa do que inicialmente é possível perceber. Se a formulação clássica descreve que o menino se identifica ao rival por causa de seu amor pela mãe, a clínica mostra que a rivalidade com o pai é secundária no processo identificatório, já que é o amor por ele que desempenha um papel mais importante para a identificação. Os movimentos identificatórios da criança revelam que o pai não é somente o terceiro elemento que barra a relação do filho com a mãe, colocando a forma exclusivamente triangular do Édipo em xeque. A relação de amor entre pai e filho revela que, como os pares amorosos filho/mãe e filho/pai também atuam com força nesse circuito, é impossível tomar a questão somente do ponto de vista do triângulo. Portanto, o complexo de Édipo também descortina algo que escapa ao funcionamento estrutural, por mais esclarecedor que ele possa parecer.

Seguindo sua crítica ao estruturalismo, Laplanche analisa a universalidade do complexo de castração. Para isso, ele pondera que, embora alguns trechos da obra Freud descrevam a impossibilidade da generalização do complexo de castração há uma

hegemonia absoluta dele que é defendida em “Inibição, sintoma e angústia”

(1926/2006), texto que apresenta o complexo de castração como responsável pela circunscrição de todas as angústias, além de tomá-lo como a “rocha insuperável” da análise. Em relação a esse ponto de vista, Laplanche defende que o entendimento da significação da castração exige que ela seja colocada em seu devido lugar, pois, se for entendida como termo último que não comporta nenhuma interpretação, ela acaba se transformando num conceito puramente normativo.

Se a conceitualização do complexo de castração se deu a partir das teorias sexuais do pequeno Hans, ela deve ser considerada sob a ótica de uma teoria sexual infantil, que relaciona a ausência de pênis nas mulheres a uma extirpação. Frente a oposições imprecisas tais como “homem x mulher” e “masculino x feminino”, o pequeno Hans circunscreveu as diferenças que percebia adotando o par de opostos

(30)

sociais e hábitos. O pequeno Hans encontrou no complexo de castração uma maneira de simbolizar o enigma fundamental do outro, circunscrevendo a diferença entre ele e a alteridade pela ausência do pênis. Essa lógica da presença/ausência, que caracteriza o complexo de castração, é uma lógica binária que foi denominada por Laplanche de

“lógica fálica”.

Embora o autor reconheça que o binarismo do complexo de castração é importante, ele ressalta que é preciso examiná-lo com atenção. Se, por um lado, ele soluciona muitos problemas, por outro, ele também implica algumas dificuldades. Embora o complexo de castração seja um fantasma originário no qual estamos habituados a navegar, também é preciso compreender que o respeito à realidade

psíquica do fantasma não justifica sua redução. “Aceitar, dar à castração seu lugar para a realidade psíquica é uma coisa, ver aí seu acesso definitivo, o acesso obrigatório da verdade, é outra”. (Laplanche, 1981, p. 33 [tradução nossa]).4 Ora, acreditar na teoria sexual de que a mulher é um homem sem pênis não seria tão falso quanto acreditar que os bebês são trazidos pela cegonha?

Esse tipo de conceitualização, embora possa ser questionado, está em consonância com nossa sociedade, que relaciona o complexo de castração a uma célula estrutural: a família. Dentro desse raciocínio, a lógica binária pode ser considerada uma espécie de acontecimento cultural. Mas seria essa lógica realmente insuperável? Ela não seria reducionista?

Diante disso, Laplanche recorre à teoria da comunicação para importar um conceito, que auxilie nessa discussão, denominado paradoxo, que se refere às formulações que não se enquadram dentro de nenhuma estrutura, ou seja, que escapam do funcionamento estrutural (seja ele binário ou ternário), porque acredita que essa nomenclatura é estratégica para ampliar a possibilidade de classificação, abrindo caminho para soluções inéditas, dialéticas, verdadeiros frutos de um processo criador.

1.3 O estruturalismo, sim ou não?

Não existiria som se não houvesse o silêncio

4 “Aceptar, dar su lugar a la realidad psíquica de la castración es uma cosa, y ver allí el acceso

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Não haveria luz se não fosse a escuridão A vida é mesmo assim Dia e noite

Não e sim

(Lulu Santos/Nelson Motta)

Como já foi descrito, o Colóquio de Bonneval, que ocorreu em 1960, introduziu uma crítica laplanchiana a alguns pontos do pensamento de Lacan num momento em que o estruturalismo francês se encontrava em sua época áurea. O fato de a corrente estruturalista estar em alta naquele tempo, entretanto, não impediu que Laplanche já conseguisse vislumbrar algumas limitações daqueles pressupostos que se apresentavam como muito revolucionários. Passados alguns anos, foi possível compreender que Laplanche não foi o único a apontar alguns pontos frágeis do estruturalismo, já que um movimento crítico em relação a ele foi ganhando força ao longo do tempo.

Atualmente, mais de 50 anos após o ápice dessa corrente de pensamento, é possível apontar que, embora a corrente de pensamento estruturalista apresente limitações, ela teve uma importância enorme para as ciências humanas. Por isso, antes de aproximar Laplanche dos autores que problematizam o estruturalismo, é necessário enfatizar que tais críticas não desconsideram a importância dessa corrente para a história do pensamento psicanalítico. Embora existam limitações que possam ser apontadas, também é preciso contextualizar a importância desempenhada por ele num momento crucial para a psicanálise. O movimento estruturalista surgiu em uma época em que a psicanálise corria o risco de ser diluída nas ciências biológicas, tal como aconteceu com a psicologia nos Estados Unidos. Como a década de 50 foi marcada por uma influência enorme do modelo psicanalítico norte-americano, a psicanálise corria o risco de se tornar apenas um braço da medicina. A adesão da psicanálise ao estruturalismo, dessa maneira, ocorreu de maneira a fazer com que a teoria psicanalítica fosse reconhecida no campo das ciências, mas fora da biologia. Isso foi fundamental para que o objeto da teoria psicanalítica, o inconsciente, fosse preservado. A análise desse momento feita por Dosse é bastante esclarecedora:

(32)

Freud pela qual ele permanece prisioneiro do positivismo de sua época. Ora, a leitura dominante de Freud na França, nos anos 50, identifica pulsão e instinto, desejo e necessidade. Considera-se então Freud um bom médico que trata as neuroses com uma eficácia reconhecida. Havia, portanto, esse duplo e perigoso obstáculo: por uma parte, uma psicanálise em vias de perder seu objeto, o inconsciente, em proveito de uma psicologia dinâmica, e, por outra, a medicalização de todas as formas de patologia, e, por conseguinte, a dissolução da psicanálise na psiquiatria (...)

Nesse domínio, como nos outros, a intervenção de Lacan foi salutar, na medida em que proporciona à prática analítica, além das inspirações teóricas, garantias científicas sólidas, regras de funcionamento rigorosas que lhe permitem apresentar-se como ciência autônoma, dotada de procedimentos claros que validam o seu grau de cientificidade. Esse saneamento do pensamento e da prática contribui então, de forma considerável, para a mudança da imagem social do psicanalista que, até então, era visto um pouco como um perigoso bruxo e que vai ser doravante considerado um homem da ciência (Dosse, 1993, p. 126).

Isso significa que qualquer crítica ao estruturalismo psicanalítico que seja

legítima precisa levar a importância que ele teve em consideração. O trecho da “História do estruturalismo”, de François Dosse, apresenta uma forma de problematizar a corrente de maneira bastante interessante:

Colocar em evidência os impasses do estruturalismo não deve significar uma marcha à ré, à idade de ouro do iluminismo, mas, pelo contrário, um salto em frente, no rumo de um futuro – o da constituição de um humanismo histórico. Nessa perspectiva, importa identificar as falsas certezas e os verdadeiros dogmatismos, os procedimentos reducionistas, mecânicos, e interrogar a validade dos conceitos transversais utilizados pelas ciências sociais para além das fronteiras disciplinares. (...) A experiência das ciências sociais é aqui chamada a responder ao emergir de um humanismo do possível, talvez em torno da figura transitória do homem dialógico. Suplantar o estruturalismo impõe um retorno a essa corrente de pensamento que difundiu amplamente seu método no campo das ciências sociais como um todo. Refazer as etapas de sua conquista hegemônica, valorizar os processos de adaptação de um método à pluralidade disciplinar das ciências do homem, apreender seus limites e impasses onde se esgotou essa tentativa de renovação do pensamento. (Dosse, 1993, p. 18)

A crítica de Laplanche acerca de desvio biologizante5 cometido por Freud também situa o autor nesse movimento que defende a permanência da psicanálise no campo das ciências humanas. Isso significa que as ressalvas feitas por ele ao estruturalismo devem ser entendidas dentro daquilo que Dosse propõe: um passo que ao

5 O desvio biologizante apontado por Laplanche discorre sobre os momentos em que Freud recorre à

biologia quando sua teoria não consegue descrever determinados funcionamentos psíquicos. Uma descrição mais aprofundada do tema pode ser encontrada em Laplanche, J. (1997). Freud e a

(33)

mesmo tempo reconhece a importância do movimento sem recuar diante de seus impasses.6

É a partir desses pressupostos que Laplanche pergunta se seria possível pensar uma simbolização para além da estrutura. Esse questionamento revela que o título de

seu artigo “O estruturalismo, sim ou não?” pode ser considerado uma armadilha, já que qualquer resposta para a pergunta seria binária, ou seja, estruturalista. Sob o ponto de vista laplanchiano, a questão poderia ser mais pertinente se oferecesse alguma

possibilidade de resposta que não fosse simplesmente “sim” ou “não”. Para ele, é

necessário ir além, com o objetivo de tentar entender o que é uma simbolização e como ela muitas vezes desafia a ordem lógica pré-estabelecida por meio de um processo criativo. O autor acredita que isso é possível e que algumas sociedades até já colocam isso em prática, convivendo melhor com os “paradoxos”.

Sem esgotar a questão, o autor encerra a conferência com a seguinte pergunta:

“No mundo contemporâneo existem lugares, ainda que pontuais, para uma simbolização

aberta? Seria presunçoso supor, ou pelo menos desejar, que a psicanálise seja um desses

lugares?” (Laplanche, 1981, p. 34 [tradução nossa]).7 Diante disso, introduzimos um outro questionamento, que será longamente discutido ao longo deste trabalho: não seria necessário que a psicanálise fosse mais aberta aos “paradoxos” para aceitar e conviver melhor com as diferentes formas de gênero e de escolha de objeto sexual?

Desejar que a psicanálise seja um lugar possível para simbolizações abertas parece ser um dever presente desde as suas origens. Esse dever exige a difícil tarefa de reinventarmos até mesmo os versos da epígrafe, abrindo a possibilidade do

questionamento: “não existiria som se não houvesse o silêncio?”

1.4 Lacan estruturalista?

O decorrer da escrita deste capítulo nos levou a perguntar sobre como uma teoria com tanta capilaridade como a lacaniana poderia se manter alheia às pertinentes

6A respeito de Laplanche, Dosse tece o seguinte comentário, que julgamos interessante. “Talvez não se

deva ao acaso encontrar posições críticas em relação a essa orientação estruturalista num antigo militante do grupo ‘Socialismo ou Barbárie’ como Jean Laplanche.” (DOSSE, 1993, p.149).

7 “¿Existen em el mundo contemporáneo, lugares, aunque sea puntuales para uma simbolización abierta?

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problematizações acerca da redução do funcionamento psíquico a um puro formalismo. Essa pergunta acabou nos levando a investigar, ainda que superficialmente, o posicionamento de Lacan diante das críticas proferidas em Bonneval. Como descobrimos que “muitas águas rolaram” depois do Colóquio, achamos necessário ao menos dar notícia do reposicionamento de Lacan diante das críticas que recebeu de Laplanche. Sem a pretensão de explicar detalhadamente os impactos que o evento desencadeou na teoria lacaniana, apenas escolhemos o texto de Márcio Peter de Souza

Leite (2001), “O inconsciente está estruturado como uma linguagem”, para embasar

uma síntese dos desdobramentos de Bonneval na teoria de Lacan que será feita a seguir. Leite se refere ao rompimento ocorrido em Bonneval como o mais moderno

“divisor de águas” da história da psicanálise, “de cujas consequências ainda se nutrem

quase todas as correntes atuais da mesma” (Leite, 2001, p. 31). Ele descreve que embora a posição de Laplanche durante o Colóquio estivesse de acordo com a tentativa de Lacan de retirar a psicanálise do campo da biologia de uma vez por todas, ela tomou um caminho diferente do esperado para um discípulo lacaniano.

Segundo Leite, a afirmação de que “o inconsciente é a condição de linguagem”,

defendida por Laplanche, ia contra uma afirmação de Lacan que era sustentada na

coerência do seu ensino, qual seja, a de que “o inconsciente é estruturado como uma

linguagem”. Embora, desde muito tempo, Lacan insistisse na função e no campo da

palavra e da linguagem, Laplanche, em Bonneval, apontou a necessidade de precisá-las. Leite, entretanto, acredita que a insuficiência da linguagem para dar conta dos efeitos do inconsciente, apontada no colóquio, só era possível por uma confusão na posição do

termo “linguagem” no ensino de Lacan.

Em relação a essa afirmação, somos obrigados a discordar do autor, já que acreditamos impossível pressupor que Laplanche, fiel discípulo de Lacan, não tinha amplo conhecimento do ensino dele. A tentativa de desvalorizar a crítica da Laplanche, reduzindo-a a uma confusão na posição do termo não nos parece pertinente, já que, como veremos a seguir, Lacan fez várias reconsiderações em seu ensino a partir da crítica que recebeu. Ora, por que será que ele teria perdido seu tempo em reformular alguns pontos de sua teoria apenas por causa de um mal-entendido cometido por um de seus discípulos?

A resposta de Lacan, que formalizou o lugar do termo linguagem em sua obra

foi feita no texto “Posição do Inconsciente”, de 1964. Sob nosso ponto de vista, ela

(35)

ele era tão importante que foi levada em consideração por Lacan ao revisar alguns pontos de seu ensino. Vejamos como as próprias palavras de Leite, ao contrário do que ele defende, indicam que os desdobramentos de Bonneval representaram muito mais do que uma simples precisão do termo linguagem na teoria lacaniana:

Se, no início, Lacan colocou em evidência como o significante determinava o sujeito, ficava a questão do que faria um significante se localizar em um lugar, o que sustentaria sua “materialidade”? Em outros termos, o que retiraria a psicanálise de um nominalismo? Nos anos sessenta, Lacan distinguiu a letra do fonema, e por decorrência, a linguagem da palavra. Mais tarde, em 1971, em “Lituraterre” ele proporia que se existe um saber no real, este saber só pode ser da ordem da letra e portanto da ordem da escrita. Avanço que visava a estabelecer a relação entre o inconsciente e o real do sujeito. Esta nova posição, a partir dos anos setenta, impôs a ideia de que o que constitui o inconsciente seria a letra, e não o significante. Então, ao se dizer que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, isto quer dizer que esta não remeteria a uma linguística. Pois, de fato, o inconsciente estaria estruturado como uma linguagem, cuja estrutura, porém, só se revela pelo escrito (Leite, 2001, p. 36).

Se, por um lado, Leite indica que o problema apontado por Laplanche era resultante da imprecisão do termo linguagem, ele próprio indica, por outro, que a

reformulação de Lacan para solucionar a questão “afetaria a própria doutrina do inconsciente” (Leite, 2001, p. 37). Dentro dessa nova perspectiva, considerar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem só é possível quando o conceito de

linguagem pressupõe uma estrutura que “só se revela pelo escrito” e que é a “letra” que

revela a estrutura da linguagem, conferindo materialidade para o inconsciente.

Ao indicar um significante que está fora do simbólico, o conceito de “letra”

implica uma redefinição da estrutura para Lacan. Se antes sua organização era feita pelo Simbólico, ela passa a ser entendida como um Simbólico que é organizado por um Real. A partir daí a estrutura é tomada como o real que abre caminho na linguagem, indicando que a linguagem não está submetida apenas à combinatória própria da cadeia significante.

(36)

Na perspectiva anterior a esta posição, na direção do tratamento, restrita à compreensão da linguagem articulada em função de um código fundado num binarismo, o fim seria impossível, visto não haver um significante que signifique toda a verdade para o sujeito (Leite, 2001, p. 39).

Ora, não era exatamente isso que a crítica de Laplanche denunciava? Que devia haver algo que impedisse o deslocamento incessante de um significante para o outro? A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando onde queremos chegar com toda essa argumentação. Esclareceremos. Se houve uma reformulação de Lacan acerca do estruturalismo e da imaterialidade do inconsciente, influenciada pelos questionamentos que se iniciaram em Bonneval, as críticas que apresentamos ao longo desse capítulo continuariam a fazer sentido? Embora a crítica de Laplanche tenha provocado o rompimento com Lacan, é possível perceber que a teoria lacaniana não foi ingênua a ponto de desconsiderar o problema que havia sido apontado. Levando isso em consideração, será que não é possível pensar que tais críticas acusam a psicanálise lacaniana por um erro pelo qual ela já se redimiu?

1.5 E os movimentos sociais entram no debate...

A reivindicação de uma simbolização aberta, que aceita melhor aquilo que escapa ao funcionamento estrutural, pode, em nossa opinião, ser aproximada das críticas à psicanálise feitas tanto pelo movimento feminista quanto pelo movimento LGBT, uma vez que tanto a tentativa de consolidar uma compreensão do mundo para além da estrutura e dos pares de opostos quanto a exigência da análise dos fenômenos sociais a partir de sua historicidade em detrimento de uma estruturação pré-determinada também são defendidas por esses movimentos sociais. O ponto de entrecruzamento entre a crítica ao estruturalismo feita tanto por Laplanche como por esses movimentos será o foco de nossa argumentação nessa sessão, cujo cerne será o diálogo com a filósofa Judith Butler.

(37)

movimento feminista quanto no LGBT, escolhemos suas formulações para embasar nossa argumentação. Em Problemas de Gênero, a autora inovou ao propor que o movimento feminista cometeu um erro ao unificar as mulheres em um mesmo grupo, como se todas elas tivessem os mesmos interesses. Ela indica que, com isso, as feministas corroboram com uma visão binária do mundo, uma vez que a reunião de interesses das mulheres em um único grupo indica uma única possibilidade de divisão dos seres humanos em apenas dois grupos, o das mulheres e dos homens, limitando, com isso, as possibilidades de escolha da identidade,.

Márcia Arán e Carlos Augusto Peixoto Júnior, no artigo “Subversões do desejo:

sobre gênero e subjetividade em Judith Butler”, de 2007, trilham um caminho dentro do pensamento de Butler que norteará a nossa discussão a partir desse momento. Eles apontam como as críticas de Judith Butler se radicalizaram ao longo do tempo, fazendo

frente, principalmente, a “uma certa ortodoxia” da teoria psicanalítica, representada

principalmente pelos seguidores de Lacan, que, ao defenderem a centralidade dos complexos de Édipo e de castração nos processos de subjetivação, acabam por reduzi-los a oposições binárias. Butler (2003) acredita que essa ortodoxia está a serviço de relações de poder que estão baseadas numa universalidade fundamentada em referentes que são transcendentes. Para ela, essa transcendência desemboca em uma concepção de subjetividade cujo fundamento é sustentado por um ponto de vista estrutural, que desconsidera a multiplicidade da diferença e as contingências sócio-históricas da subjetivação. Se a psicanálise foi alicerçada num potencial subversivo inaugurado por Freud (1905/2006) nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade com a proposta da variabilidade do objeto sexual, esse poder de subversão fica perdido quando as contingências sócio-históricas de subjetivação são desconsideradas. A autora acredita que a concepção do simbólico fundada no estruturalismo exclui determinadas formas de desejo e expressão da sexualidade, já que a diversidade de expressão de gênero e de objeto sexual acaba sendo colocada no campo da abjeção pela psicanálise fundada no estruturalismo.

Referências

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