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Robert Stoller foi um psicanalista estadunidense conhecido por suas pesquisas sobre identidade de gênero. Seus estudos com meninos transexuais levaram-no a

introduzir o conceito de gênero na teoria psicanalítica, trazendo uma concepção que questionou as ideias de Freud a respeito da constituição da identidade sexual.

O conceito de identidade de gênero nuclear, proposto por Stoller (1993), pressupõe um estágio precoce no desenvolvimento da criança, independentemente do sexo que possui, no qual ela se encontra fundida com a mãe. O processo de separação dos dois só se inicia alguns meses após o nascimento e acontece de maneira gradual. Assim, enquanto essa separação não acontece, a criança desenvolve um sentimento de ser parte da mãe, fazendo com que o bebê, seja menino ou menina, estabeleça um núcleo para a feminilidade na fase adulta.

Se, para as meninas isso é um facilitador, uma vez que a identidade de gênero nuclear feminina é a que deve permanecer, a persistência dessa identidade pode se tornar um problema no caso dos meninos, já que eles correm o risco de manter essa feminilidade e, com isso, não promover sua masculinização. A menina, portanto, tem uma vantagem em relação ao menino. Se ela se identifica com uma pessoa de seu próprio sexo desde o início, o esforço para ela se tornar feminina é bem menor que aquele exigido do menino. Assim, os riscos apresentados pela feminilidade são bem menores do que os envolvidos na masculinidade, uma vez que há uma exigência de que o menino tenha se separado do objeto materno para que se sinta um indivíduo do sexo masculino. Vejamos a descrição do desenvolvimento da masculinidade nas palavras do autor:

Para que a masculinidade se desenvolva, cada bebê-menino deve construir barreiras intrapsíquicas que afastem o desejo de manter a sensação bem-aventurada de ser um só com a mãe. Ao desenvolver-se – resultado combinado do desabrochar das funções biológicas e habilidades aprendidas e do prazer com a competência – o menino adquire apoios poderosos na luta contra seus próprios impulsos de se fundir com a mãe. De modo inverso, na extensão em que a fusão é intensificada por ter sido excessivamente encorajada, o sentimento de ser como ela – identificado com ela – interfere com sua masculinização. O menino que não valoriza sua masculinidade – em que a masculinidade não foi encorajada – terá poucas razões para resistir ao seu sentimento de feminilidade e de estar de acordo com a qualidade de ser mulher da mãe. (Stoller, 1993, p. 242)

Os caminhos da masculinidade no menino, portanto, são determinados tanto pela intensidade com a qual a mãe permite que o filho se separe dela quanto pela entrada do pai na relação dos dois. Quando ocorrem problemas durante esse processo, o menino pode apresentar o que foi denominado por Stoller de “distúrbios da identidade de

construção da masculinidade resultam do conflito estabelecido entre a feminilidade precoce e a necessidade de separação da mãe. Aquilo que chamamos de masculinidade é, portanto, o resultado de uma luta na qual o homem se esforça para se livrar dos atributos femininos, já que, caso ele não mantenha uma distância das mulheres, será irreparavelmente abraçado pela feminilidade.

O estudo do transexualismo por Stoller (1982) fez com que ele acreditasse, por muito tempo, que o processo responsável pela aquisição da feminilidade nesses meninos era a identificação. Ele percebeu, entretanto, que o processo de identificação exigia que a criança possuísse estruturas psíquicas minimamente desenvolvidas para poder absorver ativamente a mãe e colocá-la dentro de seu psiquismo. Como a feminilidade nesses meninos é desenvolvida em estágios muito precoces, o autor chegou à conclusão de que eles não poderiam ser absorvidos ativamente pela criança. Assim, Stoller chegou à conclusão de que os atributos de mulher adquiridos por essas crianças são recebidos passivamente de sua mãe por meio do contato maciço com o corpo dela. Para ele, esse contato oferece uma gratificação extrema, que não apresenta nenhuma razão para que o menino se oponha a ela. Portanto, antes do desenvolvimento de determinadas estruturas psíquicas, o menino absorve uma feminilidade que lhe é impingida e para a qual não oferece nenhuma resistência. Segundo Stoller, é somente no fim de seu primeiro ano de vida que o transexual passa a se identificar ativamente com a mãe, se comportando

como um verdadeiro aspirador de pó, “sugando tudo de feminino que vem a seu encontro” (1982, p. 56).

A partir dessa constatação, Stoller questiona se o que comumente chamamos de identificação pode, na realidade, ser resultado de um processo anterior ao

identificatório, no qual a feminilidade é “impressa” pela mãe sobre um sistema nervoso

ainda em formação. Vejamos as palavras do autor em relação a esse processo:

Então, à medida que a estrutura psíquica se desenvolve, as psicodinâmicas em si próprias são etiológicas para a diferenciação das estruturas psíquicas. Com o desenvolvimento da experiência e da memória, a criança aprende a criar defesas que neutralizam influências familiares dolorosas, transformando-as em alguma coisa menos dolorosa (e.g. pela negação) ou em alguma coisa prazerosa (e.g. pela fantasia) mas, no princípio, a mãe invade diretamente sua criança que, sem a adequada proteção das estruturas psíquicas, é tão vulnerável a essas invasões diretas (se elas são indolores ou felizes) como o são os animais, que também, incapazes de fantasiar, não são capazes de construir uma proteção que enfraqueça essas influências diretas (Stoller, 1982, p. 52-53).

Esse processo, no qual os conteúdos femininos são “impressos” num psiquismo

que sofre passivamente a ação da mãe, é um dos conceitos mais importantes do pensamento de Stoller, que foi por ele denominado de imprinting. Ao indicar a existência de uma feminilidade primária impressa tanto em meninas quanto em meninos, a perspectiva stolleriana desafia a concepção freudiana de que existe um único sexo no início do desenvolvimento, o sexo do homem. Se Freud defendia que o sentimento de ser menino decorria da precocidade da relação de objeto com a mãe, Stoller afirma que não é exatamente assim que acontece, já que o sentimento de ser feminino ou masculino só surge por volta do primeiro ano de vida como resultado do processo de separação da mãe. Antes de tomar a mulher como objeto de amor há um estágio anterior no qual as fronteiras entre o bebê e ela não estão bem definidas. Se Stoller afirma que é a protofeminilidade, condição decorrente da simbiose entre mãe e bebê, que dá início ao desenvolvimento da identidade de gênero, a masculinidade do homem não pode ser considerada natural, ela precisa ser conquistada.

A partir da concepção de que um estado de simbiose prolongado com a mãe pode desencadear transexualismo em meninos, Stoller aponta que a surpresa encontrada é que, ao contrário do que comumente se acredita, o prolongamento desse estado simbiótico não desencadeia uma psicose, já que as pesquisas stollerianas descobriram

que “essas mães não danificam o desenvolvimento das funções do ego em geral, ou mesmo do ego corporal, exceto em relação a esse senso de feminilidade” (1982, p. 55).

Com isso, o enigma passa a ser, então, a compreensão de como é possível que o menino continue ligado à mãe em determinados aspectos sem que isso prejudique outras áreas de seu processo de separação e individuação.

A descrição dos aspectos do pensamento de Stoller que foram delineados até o momento nos leva a fazer as seguintes considerações:

1) Existe uma aproximação possível entre as ideias de Stoller e a discussão proposta no capítulo II, sobre o pensamento de Jacques André. Considerando que tanto Stoller quanto André propõem que a feminilidade não seja rechaçada em nome de uma teoria que defende a primazia do masculino, podemos apontar que os dois autores sublinham a importância de questionar o primado do falo, o que nos leva a inferir que as relações de poder que perpassam a questão do gênero, ainda que não seja intencionalmente, são problematizadas por esses autores.

2) A necessidade de repúdio da feminilidade para que a masculinização do menino aconteça, descrita por Stoller, pode ser relacionada às ideias de Jacques André,

que associam a feminilidade a uma passividade radical que é submetida ao trabalho do mais profundo recalcamento. Diante disso, é possível afirmar que os dois autores apresentam concepções consonantes com a afirmação freudiana de que o feminino é “o

recalcado por excelência”.

3) A possibilidade de aproximar alguns pontos das teorias de Stoller e André deve considerar os contextos nos quais os autores estiveram inseridos. Sob nosso ponto de vista, a problematização da primazia do masculino feita por esses autores pode ser relacionada à distância deles em relação ao contexto histórico de Freud, já que quando eles formularam suas teorias a Segunda Guerra Mundial já havia terminado e consolidado a entrada das mulheres no mercado de trabalho, o que alterou radicalmente a configuração da sociedade. Tais alterações inseriram esses autores num contexto no qual se tornou possível questionar a ideia da mulher vista apenas sob a ótica da inveja do pênis, uma vez as teorias de André e Stoller foram desenvolvidas num contexto muito diferente da criação da psicanálise. Assim, talvez seja possível afirmar que as proposições desses autores acerca do feminino foram influenciadas pelas alterações históricas nas relações de poder entre os gêneros. Considerando a importância de entender que as mudanças nas configurações da sociedade exigem que as teorias se reposicionem diante delas, a contextualização histórica das teorizações aponta a necessidade de convidar as diversas correntes da teoria psicanalítica a questionarem posicionamentos teóricos que estão a serviço da manutenção de relações de poder conservadoras, que fecham possibilidades de inserção social para determinados setores da sociedade quando não acompanham as mudanças que a sociedade vem sofrendo – como ocorre com as mulheres e as sexualidades não normativas, conforme estamos apontando nesse trabalho.

4) O último ponto que gostaríamos de sublinhar refere-se à discordância de Ribeiro (2010) em relação à Laplanche21, que inclui as ideias de Stoller acerca do imprinting no grupo dos ipsocentristas. Ribeiro, discordando de Laplanche, aponta como a concepção de imprinting corrobora com a noção da situação antropológica fundamental, uma vez que propõe a passividade radical da criança em relação ao adulto. Ora, se o bebê recebe passivamente os conteúdos de feminilidade provenientes da mãe, o que vai ao encontro da assimetria da criança diante do adulto, fica difícil entender o que levou Laplanche a considerar como ipsocentrista a noção stolleriana de imprinting.

Diante disso, concordamos com Ribeiro quando ele defende que, longe de contradizer a teoria laplanchiana, a noção de imprinting pode contribuir para o entendimento da aquisição da identidade de gênero.

Após termos feito as considerações que julgamos necessárias para o nosso

percurso, um outro apontamento é importante: se a feminilidade é “impressa” pela mãe

no bebê, fazendo com que o núcleo da identidade seja feminino, é preciso entender como os processos de identificação ocorrem. Para nos auxiliar nesse entendimento, lançaremos mão das ideias de Paulo César Ribeiro acerca da constituição da identidade.

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