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4 VIOLÊNCIA LETAL E BIOPOLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO

4.4 BIOPOLÍTICA E AS FORMAS DE VIDA

Os elementos constitutivos do ser social, como classe, raça, gênero, idade, ocupação, exercem uma forte influência sobre as práticas políticas de modo geral. Por outro lado, as práticas políticas, assim como as sociais e culturais, ao mesmo tempo em que se realiza condicionados por esses imperativos, definem e redefinem os seus valores e significados. Como um ritual, essas práticas estão sempre atualizando os sentidos dos elementos constitutivos do ser social, na mesma proporção em que são, por estes, influenciadas. Com efeito, ao propor uma política de proteção da vida de uns e descaso com a vida de tantos outros, as práticas biopolíticas de segurança pública têm conferido status ontológico aos elementos constitutivos do ser social, como sendo próprios de uma determinada forma de vida. Atribuindo, assim, aos seres humanos uma segunda natureza, comum e inerente a determinados seres sociais. Uma natureza distintiva que os distingue em categorias de formas de vida: de um lado, aqueles que devem viver e, de outro, aqueles que devem morrer.

Esse caráter atribuído à forma de vida diz respeito ao modo pelo qual o ser social encontra-se integrado a sociedade. Os laços de integração social determinam os impactos das mortes, no seio da sociedade Esse impacto se traduz em indignação moral, comoção e reação social, quando a morte é considerada uma perda, e ativação da accountability, quando a morte ocasiona constrangimento político.

Dessa maneira, as práticas divisórias (RABINOW, 2002; FOUCAULT, 2011) da biopolítica de controle da violência letal concebem a vida das pessoas que devem viver como soberana. A essa vida pertence o direito supremo de existência19. Como a biopolítica situa as vidas soberanas ao nível da ordem social, a manutenção desta tem se

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Evidenciamos vidas soberanas em diversos níveis sociais: local, regional, nacional ou global, seja qual for a concepção de ordem social: marxista, funcionalista ou outra.

confundido com a política de proteção daquelas vidas. Ao sofrerem uma morte violenta, a perda parece colocar a ordem social em crise, por conta da forte comoção e da reação social gerada. Por conta disso, evidenciamos o esforço mobilizado na elucidação das mortes violentas entre as vidas soberanas e o reforço do policiamento ostensivo dos territórios habitados por elas. Na primeira via de restabelecimento, a rápida resposta da investigação policial visa a restaurar a sensação de punibilidade que foi quebrada. Na segunda, a vigilância policial é reforçada, na tentativa de tornar a opção de vitimizá-las mais arriscadas e difíceis, procurando, assim, inibir o surgimento de interações indesejadas entre as vidas soberanas e possíveis ofensores.

No que tange ao esforço mobilizado na elucidação dos homicídios que acometem as vidas soberanas, a biopolítica atribui e renova sentidos e valores que reforçam a formação das comunidades morais20 em torno dessa forma de vida. Nelas as vítimas da violência letal têm a sua condição reconhecida, e contam com as pessoas que compartilham do sofrimento social gerado pela morte, para a expansão e efetivação desse reconhecimento. E em cada reconhecimento criminal realizado pela elucidação das mortes soberanas, as comunidades morais ganham força. O poder crescente pode desestabilizar a ordem social e ameaçar a sua legitimidade, caso a integridade da vida soberana, em algum momento, não seja restabelecida.

Já as vidas matáveis21, aqui, são aquelas vidas humanas, cuja morte por violência letal estão social e biopoliticamente anunciadas. A morte violenta de determinadas pessoas encontram-se socialmente anunciada, por conta da conduta considerada

20As comunidades morais assim formadas promovem a exclusão do outro, impondo barreiras àqueles que

lhe são estranhos. Essa constituição diverge da concepção de comunidade moral proposta por teóricos da teoria do reconhecimento. Habermas, para exemplificar, propõe uma noção, na qual “o mesmo respeito para todos e cada um não se estende àqueles que são congêneres, mas a pessoa do outro ou dos outros em sua alteridade. A responsabilidade solidária pelo outro como um dos nossos se refere ao “nós” reflexível numa comunidade que resiste a tudo o que é substancial e que amplia constantemente suas fronteiras porosas. Essa comunidade moral se constitui exclusivamente pela ideia negativa da abolição da discriminação e do sofrimento, assim como da exclusão dos marginalizados – e de cada marginalizado em particular –, em uma relação de deferência mútua. [...] Antes, “a inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos – também e justamente àqueles que são estranhos um ao outro – e querem continuar sendo estranhos” (2002, p. 7-8).

21Essa categoria empírica foi emprestada do conceito empregado por Agamben (2010). Vida matável é a

sina da vida nua do homo sacer, que também é insacrificável. Agamben procura realçar os contornos e aprofundar o tema da biopolítica assinalando a importância da assunção da vida pelo poder que marcou o século XIX. Desse modo, quando o Estado moderno coloca a vida biológica no centro dos seus cálculos “não faz mais, portanto, do que conduzir à luz o vínculo secreto que une o poder a vida nua [...]”. Vida nua é a “vida matável e insacrificável do homo sacer”. A vida nua é a vida que foi posta para fora da jurisdição humana, sem ultrapassar para a divina. E, assim, ela pode ser exterminada sem que se cometa qualquer crime ou sacrifício. Na esfera soberana, que se pode matar sem cometer uma violência letal e sem celebrar um sacrifício, a sacralidade da vida humana se politiza somente através da sujeição a um poder incondicionado de morte. Assim, ao contrário do que se poderia pensar, a sacralidade da vida não é um direito humano inalienável e fundamental, a sacralidade da vida na modernidade é destituída da ideia do sacrifício (AGAMBEN, 2010).

“desviante”, sobretudo, as definidas juridicamente como delitivas. Geralmente, há uma tensa expectativa, quanto à morte dessas vidas, e assim, a sua concretização não configura surpresa (PARKES, 1999; VIANO, 2007). A perda, assim como, a comoção e a indignação, quando ocorre, restringe-se a rede familiar e de amigos. Como essas mortes não geram comoção e reação social, somente, engrossam as cifras estatísticas.

A morte violenta biopoliticamente anunciada, de uma parcela significativa da população, assim está determinada, na medida em que os óbitos não contarão com uma investigação formal, como a que ocorre nas mortes das vidas soberanas. A prática divisória da biopolítica de segurança pública ao instituir uma política de proteção da vida de uns (FOUCAULT, 2010), tem autorizado a morte de tantos outros. Informando aos perpetradores que essas são mortes que não geram punição.

A biopolítica ao situar vidas como matáveis as coloca fora da ordem social e, ao mesmo tempo, como uma ameaça à manutenção desta. Essas vidas encarnam o mau que coloca em crise a ordem social (GIRARD, 1990) e fragiliza a proteção da vidas soberanas. Dessa maneira, ao sofrerem uma violência letal, a sua morte não gera sofrimento social. Sem a formação de uma comunidade moral, a sua condição de vítima não é reconhecida e o seu assassinato configura uma violência sem reação social.

De outra maneira, entre as vidas soberanas e as vidas matáveis, a biopolítica deixa a proteção e as garantias de existência de muitas vidas em aberto, devido a sua situação de classe e a sua raça, respectivamente. Dentro de um domínio de classe22, sustentado por signos de status (GOFFMAN, 1988), as vidas, independentemente de sua raça, podem contar com proteção, e com reparação em eventual falha desta.

Entretanto, fora do domínio de classe, as garantias de vida são definidos pela situação de raça. A biopolítica de segurança pública torna a diferença racial um elemento distintivo, que define quem deve viver e quem pode morrer (FOUCAULT, 2010). Para as pessoas que estão foram domínio de classe, a possibilidade de contar com garantias de vidas são escassas e as mortes podem ficar sem elucidação. Mas, ainda assim, a biopolítica não torna a vida dos brancos despossuídos marcada para morrer. Eles não são alvos preferenciais e nem são mortos, sistematicamente, pelos agentes do Estado.

Desse modo, pode-se afirmar que entre os brancos a condição de existência se encontra bem demarcada, ou seja, são vidas soberanas ou são vidas matáveis. Haja vista

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Consiste no território demarcado pelo entorno da residência, locais frequentados, marca de carro, a grife das roupas utilizadas, comportamento etc.

que, independente da situação de classe, os brancos não tendo uma conduta desviante, de forma que o torne moralmente desacreditado, a sua morte não estará biopoliticamente autorizada ou justificada. Por conta disso, os agentes do Estado, em diligencias policiais, procedem de forma cautelosa sobre os corpos dos brancos.

Já os negros não têm a mesma sorte. Quando eles não ostentam uma situação material abastada, não somente deixam de contar com proteção, como também passam a conviver com a morte iminente. Como foi demonstrado, a taxa de vitimização dos negros, relação entre as taxas de homicídio de brancos e as taxas de negros, no ano de 2010, apresentou um índice nacional de 132,3%. Ou seja, a cada branco vítima de homicídio proporcionalmente morreram 2,3 negros por motivo semelhante. Na Bahia, essa proporção é de 4 negros para cada branco (WAISELFISZ, 2012, p. 14).

A não investigação formal dos muitos assassinados de pessoas negros residentes em bairros periféricos tem funcionado como uma garantia de impunidade e, com isso, uma autorização para matar violentamente os negros.

A vida, assim, fica em-aberto. Isto é, a vida, nesse estado de coisa, não é nem soberana, nem matável a priori; e a morte embora não se encontre socialmente anunciada, quando ocorre não passa por uma investigação formal. Refletindo as condições históricas raciais de existência, na atual conjuntura biopolítica de segurança pública, as pessoas negras não têm garantias de vida. Não é à toa que, além de alvos dos conflitos violentos e alvos preferenciais de grupos de extermínio, a maioria esmagadora das vítimas de violência letal oficial são pessoas negras.