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Entrevistas semiestruturadas e não estruturadas: restrições e aberturas

3 MÉTODO

3.3 FONTES, TÉCNICAS E PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS

3.3.3 Entrevistas semiestruturadas e não estruturadas: restrições e aberturas

No início da pesquisa, parti para o campo compartilhando da crença de que os familiares das vítimas estariam ansiosos por uma oportunidade para falar sobre as circunstâncias da morte do ente querido e dos efeitos desta em suas vidas. Tal crença tinha como base a convicção da falta de ocasiões para que pudessem falar da perda. Desse modo, o encontro com um familiar que se dispusesse a dar uma entrevista ocorreria com certa facilidade, uma vez que essa seria um momento oportuno de fala. Entretanto, as coisas não ocorreram bem assim.

O cotidiano dos familiares das vítimas está marcado pelo medo, desconfiança, culpa, dor e sofrimento. Com efeito, a fala da morte do ente querido e dos seus efeitos, seja com pessoas conhecidas, seja com desconhecidos, tem dois momentos: um de retração e outro de catarse. No tocante a retração da fala da morte, em primeiro lugar, esta provém da própria situação de perda, pois o medo e a desconfiança os deixam inseguros para falar sobre o que consideram um assunto perigoso. Em segundo, ela procede da evitação dos familiares em falar sobre algo que os forçam a vivenciar lembranças dolorosas e que eleve mais ainda o seu sofrimento e o sentimento de culpa. Portanto, em meio a insegurança e o medo de verem o “mundo” novamente “desabar”, a fala da morte configura um momento de retração entre os familiares das vítimas. Tornando complicada a realização de entrevistas em profundidade.

Por outro lado, durante a pesquisa foram evidenciados momentos de fala da morte com alguma profundidade, em eventos jurídicos no Fórum Ruy Barbosa, na forma de testemunho, ou em atos públicos, na forma de entrevistas, concedidas aos profissionais da imprensa televisiva e escrita. Outros momentos de igual profundidade, diz respeito a expectativa salutar com a purgação das aflições através do desabafo. Trata-se do momento de catarse efetuado através da fala da morte. Essa representa as raras oportunidades producentes para a realização de entrevistas com certa profundidade. Ainda que estas, devido ao seu caráter de desabafo, tenham que ser abertas, não estruturadas.

Esses dois momentos de fala da morte em profundidade configuram uma ruptura com o quadro de restrições provocado pela insegurança e pesar. Sendo que um é provocado e o outro é espontâneo. Uma consiste em uma fala interpelada, que responde a interpelações feitas, em eventos específicos, pelos operadores da justiça ou profissionais da imprensa, podendo estar de acordo ou não com os interesses dos

familiares das vítimas. A outra é uma fala espontânea, que responde aos questionamentos e interesses do próprio familiar, que se sente estimulado para falar por confiar no ouvinte e sentir-se aconchegado em seu desabafo.

As falas da morte dos familiares das vítimas nas entrevistas realizadas seguiram a mesma ordem dos momentos da fala da morte interpeladas e espontâneas. As falas dos familiares presentes nas entrevistas semiestruturadas configuraram momentos de falas mediante interpelações promovidas pelo pesquisador, seguindo um roteiro flexível de questões previamente construído. Já nas entrevistas não estruturadas, ou abertas, a fala, ao contrário, emergiu espontaneamente das próprias aflições e angustias dos familiares, em conversas estimuladas por mim, agindo como pesquisador e como amigo4.

Para que as entrevistas fossem realizadas a confiança foi fundamental. Mas, a confiança não garantiu que as entrevistas fossem conduzidas mais formalmente. O crescendo de confiança que foi sendo alcançado no processo de aproximação junto aos familiares das vítimas possibilitou que muitos cedessem entrevistas semiestruturadas e gravadas. Contudo, uma parte considerável se negou a ser interpelados a falar da morte formalmente.

Além disso, o roteiro semiestruturado quebrou, em parte, em quase todas as entrevistas, a espontaneidade da fala dos familiares. Foi preciso ter cautela e sensibilidade na forma de abordagem e questionamento a respeito dos detalhes da morte e dos seus efeitos, para não trazer á tona, de forma súbita, lembranças dolorosas para os familiares. Assim, em algumas entrevistas semiestruturadas não foi possível alcançar o nível de profundidade requerida pela pesquisa.

Uma parte significativa dos dados coletados na pesquisa atual ocorreu através das entrevistas abertas. Isto se deu por conta da espontaneidade da fala, que consiste no profundo desabafo sobre as dimensões da vitimização indireta vivenciada por eles – o trauma, a ofensa moral impingida, as motivações da busca por reparação ou resignação e as perdas secundárias mais íntimas (como separação, perda de apetite sexual, etc.). Como essas entrevistas não estruturadas situaram-se no âmbito das catarses, cuja regência é a própria espontaneidade, falar sobre a perda nesses momentos não foi um completo suplício para eles.

A possibilidade de realização dessas entrevistas surgiu nas conversas que ocorreram em diversos lugares. Ao lado da confiança, o que tornou possível a realização

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das entrevistas abertas foi a proximidade conquistados durante as pesquisa. Na medida em que a confiança foi se estabelecendo, cada vez mais os laços de proximidade foram se fortalecendo. Ampliando, com isso, cada vez mais a possibilidades de encontros e a duração destes. Passei não somente a acompanhar os eventos sociais e jurídicos, mas também visitá-los indo a suas casas e trabalhos, e acompanha-los nas suas idas ao cemitério, na rua e nos ônibus no fim dos eventos citados. Sendo que foi neste último que ouvir grandes declarações, chaves fundamentais para a pesquisa.

Contudo, a catarse dos familiares das vítimas configura um verdadeiro rio de informações. E o trabalho desempenhado pelo pesquisador, nestes casos, pode ser comparado ao de um pescador. Consistindo em pescar, num nível mais profundo desse rio, as informações pertinentes.

O problema, aqui, consistiu em gravar as entrevistas, assim realizadas. Seu início ocorre no meio de uma conversa, cessando antes desta ou no seu término. Essa total informalidade das entrevistas, o tom de bate-papo, para não serem quebrado, não foi possível gravá-las, o que prejudicou, em parte, a reprodução fidedigna da fala da morte nas citações feitas ao longo do trabalho.

Uma alternativa encontrada, para isso, quando possível, foi aproveitar as reentrevistas para introduzir os pontos pertinentes, que sugiram nas entrevistas abertas realizadas anteriormente. Desse modo, as reentrevistas semiestruturadas contaram com questões complementares, construídas, a partir das informações que surgiam nas entrevistas abertas, ou melhor, nas conversas com os próprios familiares das vítimas.