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7 IMPACTOS DAS MORTES E AS REAÇÕES

7.2 O EU “ABATIDO”

Os membros das famílias que tiveram entes queridos violentamente assassinados, deixa de ser os mesmos. A violação do Eu configura um aspecto extremamente significativo da vitimização indireta sofrida por esses familiares. Tal violação deixou marcas profundas em suas mentes, que durante muito tempo os acompanham.

Até hoje ela [Célia, mãe de Gledson] tá muito bem, mas se comentar, falar o nome do menino, acabou, ela fecha tudo e não trabalha mais. De hipótese nenhuma ela tem condições, falou no nome do menino acabou o dia pra ela. Até hoje ela está assim... Se ela tiver assim com um ar de sorriso... Já se trancou toda, perde a voz logo e acabou o dia pra ela (Valdemar, 43 anos).

Logo após os assassinatos dos jovens os familiares das vítimas vivenciam uma sensação de perda de si mesmo: o mundo “real” lhes parece agora “irreal”, deslocado, vazio (PARKES, 1999), carente de sentido. Trata-se de uma experiência de dano do Eu, que se sente mutilado, com a perda do ente querido. Como o mundo interno fica “bagunçado”, devastado pela violência letal, os familiares ficaram com a sensação de que não foram os entes queridos, mas eles mesmos, que foram mortos.

Uma pessoa abatida é algo doloroso pra caramba. Eu não sabia que isso existia. [...] Eu fui abatido, você morre. Ela [Nalva] foi abatida, morreu. Você morre junto com o seu ente querido. Ainda mais por uma causa dessa [...] (Carlos, 44 anos).

Essa sensação de desvanecimento que toma os familiares das vítimas é uma característica marcante do Eu “abatido”. Tal sensação de abatimento decorre da violação do forte vínculo afetivo existente entre os familiares e os entes assassinados. Devido a forma como ocorreu o rompimento desse vínculo, o Eu sofreu uma violação no seu nível mais profundo. Pois, assim como as vítimas, o Eu dos familiares foi brutalmente “abatido”.

Realizando uma arqueologia do Eu violado ou “abatido” pela perda de um ente querido, penetrando em suas camadas mais profundas, a partir de uma hermenêutica do

cotidiano37, depararemos com pelo menos três níveis de profundidade de violação: num primeiro nível, encontra-se a violação do Eu pela perda por morte natural ou decorrente de uma doença; num segundo nível, verifica-se a violação do Eu pela perda violenta e inesperada. E, num terceiro nível, o mais profundo, evidencia-se a violação do Eu pela perda violenta, repentina e injustificável.

O Eu “abatido” dos familiares das vítimas não é uma violação do Eu típica de quem perde um ente querido por morte natural ou decorrente de uma doença, seguida de uma piora progressiva do quadro. Nestes casos, a piora progressiva constitui um processo que se pode chamar de “morrer vagaroso”, e tende a deixar os familiares numa tensa expectativa. São diversos os sentimentos e reações que essa expectativa neles suscita, podendo ser traduzidos em dor ou até mesmo em alívio pelo óbito do ente querido. De todo modo, os familiares, diante dessa situação de perda, convivem com a possibilidade do falecimento, e na sua concretização não são pegos de surpresas (PARKES, 1999).

Assim como as doenças que se apresentam com quadro de piora progressiva, há casos de homicídios em que as vítimas antes de serem assassinadas tendem a passar por um processo que se assemelha ao de “morrer vagaroso”. Isso acontece nos padrões de homicídios em que a mortes de algum modo foram anunciadas, por estarem às vítimas ligadas a gangues e/ou drogas (VIANO, 2007). Nessa situação, os familiares podem estar em tensa expectativa quanto à morte do ente familiar, e assim, não serem pegos de surpresa com o seu assassinato.

Ao revés dessa situação de perda, os casos de homicídios evidenciados nesse estudo não eram esperados e a sua ocorrência tomou a todos de surpresa, sem qualquer preparação. Ocorrendo sem direito a despedidas, sem um tempo para resolução de questões de relacionamentos que por ventura estivessem pendentes.

Foi uma morte assim, que ninguém esperava. Ele não era um menino que estava envolvido. Porque, quando você tem um filho que é viciado, que está no meio, você sempre espera o pior. Mas quando você tem um menino que é trabalhador, que vive ali, tem um respeito por todo mundo, e de repente acontece isso. Então abala (Lícia, 51 anos).

Além disso, não se trata de uma perda, cuja morte tenha sido provocada por falha ou imprudência do próprio ente querido, como as decorrentes dos padrões de homicídios descritos acima. Ao contrário, as mortes dos jovens provocaram um dano,

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Perspectiva que nos permite explicar as práticas e as relações visíveis e invisíveis construídas por homens e mulheres, sujeitos da história, como os modos de vivências e valores (QUIROZ, 2010).

uma perda injustificável, isto é, foram consideradas injustas. É recorrente nos relatos dos familiares das vítimas expressões de indignação que procuram dar conta do quanto à morte do ente querido foi injusta.

Fábio era tão carinhoso comigo. Sempre me esperava chegar do trabalho, no ponto de ônibus próximo de casa. Fábio estudava a tarde e era um bom aluno. Quando tinha muito trabalho na marcenaria do pai, ia ajudar nos fins de semana ou quando não tinha aula (Iara, 49 anos).

O relacionamento da gente era bom, amigável. Ela era uma menina boa. Ela tinha umas coisas de adolescente, mas nada que não podia ser resolvido. Ela morava comigo, era uma menina normal e amiga. Ela estudava, mas gostava mais de trabalhar (Natália, 34 anos).

Esmiúçam em suas falas o “modo de viver” dos jovens assassinados, tentando de alguma forma demonstrar na rotina cotidiana, mantida por eles, que se tratava de pessoas dignas de respeito e não merecedoras da violência letal perpetrada.

Meu filho era um menino bom, não tinha vícios, ia cursar o 2º ano do ensino médio na Escola Santos Dumont, em Pirajá. Meu filho não conhecia arma, era um rapaz pacato, que tinha inclusive horário para chegar em casa (Silvania, 41 anos).

Júnior (Valmir) sempre foi assim, uma pessoa trabalhadora. Um menino de boa índole, nunca me deu trabalho nenhum. Estudou no Colégio Militar. Estudava, trabalhava [...], era assim, uma pessoa que se dedicava muito ao trabalho, gostava do que fazia, e estava se formando no curso de eletromecânica (Lícia, 51 anos).

Ainda nessa linha de defesa do ente querido e do repúdio do homicídio, nota-se, em algumas declarações proferidas pelos familiares, uma posição ambígua em relação à violência letal, especialmente, a perpetrada por policiais militares, justificando a sua posição e estabelecendo uma distinção “entre a violência ilegítima cometida contra “nós”, pessoas direitas [...] e trabalhadores honestos, da violência “legítima” que é praticada contra “eles”, os marginais” (PAES-MACHADO, NORONHA, 2008, p. 145).

Se o meu filho fosse uma pessoa errada, eu jamais ia mexer em nada. Por quê? Não, foi o destino dele. Porque foi uma pessoa errada. Mas desde quando meu filho não era uma pessoa errada, meu filho era um estudante, uma pessoa muito sincera, entendeu? Não se misturava com ninguém, não usava porcaria nenhuma, não se metia com ninguém drogado, nada disso (Elena, 40 anos).

Reside aqui uma questão de reciprocidade, ou de “violação da reciprocidade” (MOORE, 1987). Os familiares das vítimas em suas declarações estão querendo de alguma maneira recorrer ao “consenso prévio intersubjetivo” (MATTOS, 2006; HONNTH, 2009), no qual as pessoas esperam ser levadas em consideração pelas outras

no momento em que essas agem. Ao falarem sobre o ente querido tentam fazem referência ao modo de viver dos jovens, descritos como sendo incapazes de ações que não levassem os outros em consideração. E, com isso, tinham a mesma expectativa de respeito com relação às ações dos outros, que, porventura, viessem a ser dirigida a eles. Sobretudo, respeito sobre os seus corpos.

Os policiais militares ao atirarem nos jovens prescindindo de causas excludentes de ilicitude, não os consideraram dignos de respeito: “um menino de dezenove anos que trafegava no bairro subia e descia ninguém mexia com ele. Tinha rixa de rua no bairro, mas ele subia e descia, não tinha problema com nada” (Carlos, 44 anos). “Eles [os policiais] não o pararam para perguntar. A obrigação deles era abordar o meu filho” (Nalva, 40 anos).

Assim, os familiares dos jovens brutalmente assassinados sofrem uma violação do Eu no seu nível mais profundo: o Eu é “abatido” pela perda violenta, inexplicavelmente repentina e considerada injusta.

[...] se desloca as ideias, não regula [...] e as coisas sobrevém, ficam ali, ó! Todo dia a mesma coisa, aquele mesmo pensamento vai minando e te fere no íntimo, e você perde a razão. E todo ser humano perde a razão depois que perde o seu filho de forma tão brutal. Quando você perde uma pessoa, um ente querido, que é designada morte natural – tipo foi um ataque do coração –,você sente. Mas você acaba tendo o seu dia de luto conformado. Vai passar, passou. Mas quando é de forma brutal, você fica procurando a vida toda uma explicação para aquele assunto (Carlos, 44 anos).

De forma inexplicável, as mortes foram perpetradas pelos policiais militares. Isso trouxe um tipo de perda, que não permitiu aos familiares das vítimas uma vivência resignada do luto.