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5 AS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA LETAL OFICIAL

6.4 MEDO, AMEAÇAS E SUPORTE

Os assassinatos dos entes queridos trazem uma série de alterações significativas para o cotidiano dos familiares das vítimas de violência letal por policiais militares. O medo passa ser uma constante entre eles. Sentimento de inquietação e receio de sofrer algum atentado para não reclamarem punição.

Em um incessante estado de alerta, os familiares das vítimas pouco tende a titubear diante de um sinal de perigo. De modo que, qualquer ameaça, não constitui qualquer ameaça. Elisângela Araújo, 25 anos, a companheira de Luís Alberto, uma das vítimas da chacina do Pero Vaz declarou à imprensa que não sabe mais o que fazer para garantir a própria vida. Ela foi obrigada a abandonar o emprego de costureira porque três homens desconhecidos passaram a procurá-la no trabalho. O medo e a ameaça somam-se a outras alterações significativas na vida dos familiares, que lhes trazem, como veremos adiante, perdas econômicas severas.

Ela acredita que os estranhos foram mandados por policiais para intimidá-la. “Tenho passado por dias difíceis. Não vou trabalhar, não posso sair sozinha. Vivo com medo de botar minha cara na rua. Minha única proteção é Deus”, desabafou (J. Correio, 02/04/2010, p.16).

As ameaça nem precisa ser proferida pelos perpetradores para disseminar o medo entre os familiares das vítimas. A possibilidade de encontrar os PMs na rua representa uma ameaça para eles. Esse medo tende a ser mais sentido quando a probabilidade de encontros é certa. A proximidade com os perpetradores, quando existente, deixa os familiares bastante temerosos.

Eu trabalho aqui. Os policiais dão plantão aqui. Eles estão sempre aqui dando plantão. E eu tenho uma família ainda. Então, meu medo naquela hora... Meu filho estava morto, mas ainda tinha meu marido, ainda tinha as minhas duas filhas (Lícia, 51 anos).

No que tange a busca por justiça, o medo pode configurar um impedimento. Como vimos, geralmente, a busca se inicia buscando visibilidade para o caso na fase pré-processual. Por medo de represálias, de que aconteça alguma coisa, não exatamente consigo, mas com outro membro da família, os familiares podem se calar diante da impressa, para evitarem exposição.

E eles nos conhecem. Eu não conheço eles, mas eles conhece a gente. O meu filho trabalhava aqui [...], na hora, eu temi por meus filhos, pela minha família. Não por mim. Porque quando você perde o filho, você perde todo o medo. Perde a esperança, perde a sua vida. Então eu achei melhor... Não quis me expor, não quis expor eles, não quis expor ninguém (Lícia, 51 anos).

O medo pode representar um obstáculo, mas não funciona como um determinante da busca por justiça. O medo de represálias não tem funcionado como um divisor de águas da busca. Uma linha divisória que separa os familiares das vítimas entre os que vão, por não ter medo, e os que não vão em busca de justiça, por não se sentirem seguros ou protegidos. Está na busca não significa que o medo de que algo aconteça consigo ou com outro membro da família inexista: “Temo por minha vida e dos meus filhos, mas continuo lutando com o apoio da família”34

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Talvez, somente as ameaças explícitas, dirigidas diretamente aos familiares das vítimas contenham esse poder. Aliado a culpabilização do morto, via negação de sua condição de vítima, as ameaças constituem um meio utilizado pelos perpetradores para tentar escapar da incriminação, procurando fazer com que os familiares não acessem a justiça. E se acessarem, desistam de continuar em busca.

Ele [o policial] trouxe uma intimação para comparecer no comando da polícia militar. [...] Aí, pediram que a gente reconhecesse os policiais, e que iriam abrir um processo administrativo disciplinar, como eles chamam. Aí, eles colocaram todos os policiais, assim: a gente entrou numa sala, depois colocaram os policiais numa sala, depois colocaram todos os policiais em fila para que a gente identificasse: “entre na sala ali e identifique, aponte pra eles pra eu ver. Não se preocupe não, pode apontar”. Eu pensei: como vou apontar o cara que matou o meu irmão ali, na minha frente? Você vai fazer isso? Como vou apontar de “cara limpa”. Uma coisa é botar fotos, um monte de fotos e identificar. Outra coisa é colocar o cara em sua frente Eu sou maluco de dizer? Eu não tive coragem. Minha mãe não teve coragem. Minhas irmãs também não tiveram coragem. A gente viu, sabia quem era. Depois daquilo começaram a ligar pra gente, pra casa. Ligavam e diziam, assim: “se vocês continuarem com isso... Vocês perderam um, o que é pra eu voltar matar todos”. Eram muitas as ligações (Josué, 25 anos).

A forma mais comum de intimidação tem sido a realização de ligações telefônicas para os familiares. Com efeito, uma das dificuldades enfrentadas entre os familiares, após se lançarem na busca por justiça, é conseguir manter o mesmo número de telefone, sobretudo, o número de telefone celular, por muito tempo. As ameaças constantes levam-os a trocar o número.

São muitos, os familiares que não vão ou deixam a busca por justiça pelo caminho. Entre os familiares das vítimas da chacina do Pero Vaz, que deram início a busca por justiça acompanhando o resgate dos corpos desaparecidas, na medida em que os corpos foram aparecendo e as ameaças se intensificaram. Por conta disso, quase todos foram deixando de acompanhar o andamento do Inquérito Policial.

Ainda que seja um transtorno para eles, e ainda que temam pelas suas vidas e dos demais membros da família, as ameaças não impedem que deem início e permaneçam na busca por justiça. Na reta final das oitivas de testemunhas de instrução somente a mãe de Érica tem acompanhado as audiências. Desde o início da busca reclamou à imprensa as ameaças que vinha sofrendo pelo celular, dizendo que não iria se intimidar. Reconhecia os riscos, porém replicou as ameaças afirmando que não iria desistir.

Mesmo recebendo ameaças por celular, a mãe de Érica afirmou que não vai desistir: “Vou processar o Estado. Não vou ter medo das ameaças. Minha filha era uma criança. Vou até o fim. E se eu amanhecer morta, foi o mesmo que matou a minha filha” (J. A Tarde, 10/03/2010, p. A4).

Como proteção, não existe nenhuma garantia que assista os familiares na busca por justiça. Nem mesmo a condenação do perpetrador da violência letal. O medo que não surgiu durante a busca passou a fazer parte entre alguns familiares de Luciano, após o julgamento que condenou o policial militar responsável pela morte do adolescente a 15 anos. Uma vez que enquanto tramita o recurso da defesa de revogação da sentença, o PM aguarda em liberdade.

Em cima do recurso, [o PM Gilson] fica aqui na Mata Escura, pra cima e pra baixo no carro. Quer dizer, olhando pra cara da gente dando risada. O que a justiça está fazendo: ele pra ter uma vingança do que ele sofreu, o que ele pode fazer? Voltar, até atacar, e matar a gente. [...] Então, a justiça faz um negócio dessa. Amanhã ou depois acontece um fato com a gente aqui dentro. Quem foi o culpado, não é a justiça? Um homem desse era pra estar atrás das grades, e não ser protegido pela justiça (Nilson, 64 anos).

Para Nilson, além de um duro golpe, a liberdade do acusado pode representar um “passaporte” para a retaliação. A “justiça” não privando o PM de sua liberdade, estaria convertendo a punição em “proteção”. Inseguro, acredita que esta “proteção” da “justiça” estaria colocando a sua vida e a da família em risco.

Com relação às testemunhas, aquelas que são ouvidas no período da investigação criminal podem sumir na fase de processo. Passado a comoção e revolta, o impulso do momento, em muitos casos, o medo vem à tona, e os depoentes da fase pré- processual se escondem com receio da exposição e do que possa acontecer, caso prestem seu testemunho. Mesmo sendo a testemunha um parente da vítima, e estando ciente que o seu relato é importante para o processo.

O tio dele [Adelmo], por exemplo, foi intimado várias vezes pra depor, e ele não foi. [...] Toda vez que mandava uma intimação, a

pessoa que poderia dar uma informação detalhada e comprometedora contra os policiais não aparecia. Porque não aparecia? Por que já sabia: é botar a cara e ficar exposto (Carlos, 44 anos).

As testemunhas ouvidas na fase pré-processual também costumam sumir na fase de processo devido às ameaças explicitas. Um dos recursos utilizado pelo acusado para impedir a oitiva de testemunhas chaves para o processo é a intimidação. Os nomes e endereços registrados no Inquérito Policial passam a ser do conhecimento dos acusados, que podem localizá-los e ameaça-los.

Entretanto, nem sempre essas intimidações funcionam. Em muitos casos, aliás, além de continuarem na busca, os familiares ainda denunciam as ameaças às instituições competentes e a imprensa.

[...] procurei o Ministério Público para denunciar que policiais militares do grupo [do PM perpetrador] procuraram Adelson no bairro em que morava. Mas não encontraram ele. E para não perderem a viagem deixaram um recado com o tio do menino: disseram que, se ele continuasse como testemunha no caso, que iriam matar ele (Iara, 49 anos).

No caso da intimidação dirigida a Adelson, que estava com Fábio e Diego no dia que eles foram assassinados, primeiramente, como “contraofensiva”, Iara procurou o Ministério Público, e denunciou as ameaças. De pronto, a procuradora Isabel Adelaide35 ao receber a denúncia tomou algumas medidas. Entrou em contato com o batalhão em que estava lotado o sargento, exigindo as cabíveis providências. Segundo a mãe de Fabio, o PM chegou a ser detido, mas não ficou muito tempo preso. Pois, a sua detenção dependia do depoimento do tio de Adelson, mas como o mesmo temia pela sua vida, não foi depor. Com o sargento preso, Iara foi atrás Adelson que saiu do bairro que morava. Por conta disso teve que descobrir o local onde o jovem estava escondido, e tentar convencê-lo de que nada de ruim lhe aconteceria. Se alguma coisa viesse acontecer com alguém, esse seria ela: “não se preocupe, porque se Pedro tiver que matar alguém, será a mim” (Iara, 49 anos).

Uma forma de proteção aos familiares das vítimas e testemunhas seria o ingresso no Programa de Apoio e Proteção a Testemunhas Vítimas e familiares de vítimas da violência – Provita – BA36. O programa, inserido na área de Direitos Humanos, procura

35Na época, era coordenadora do Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade

Policial (GACEP) do Ministério Público da Bahia.

36Criado na Bahia no ano de 1998, o programa é uma parceria da organização não governamental

Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – AATR com a Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia e o Ministério da Justiça. Segundo o escopo do programa, o Provita Bahia oferece proteção em local seguro, assistência social, econômica, psicológica e jurídica

garantir a integridade física, a vida a segurança das pessoas, vítimas e testemunhas de crimes, bem como de seus familiares, que estejam coagidos ou expostos a grave ameaça por colaborarem com a investigação e o processo criminal.

O programa apresenta alguns inconvenientes. Um deles consiste na mudança radical na vida do usuário. Que de uma hora para outra deve romper o cordão umbilical com a vida que mantinha. Familiares, parentes, amigos, trabalho etc., ficam pra traz até que possam retomá-la.

Diante desse inconveniente fica difícil vislumbrar o programa de proteção como uma alternativa de enfrentamento das ameaças dos perpetradores e instrumento de apoio eficiente para a busca por justiça dos familiares das vítimas desse tipo homicídio. Comumente, ao se lançarem na luta, os familiares têm contado com uma rede de apoio formada por pessoas ligadas as vítimas, vizinhos, amigos, parentes e familiares, e pessoas vinculadas a instituições não governamentais de apoio e a imprensa. A visibilidade dos casos na mídia e o acompanhamento realizado pelas instituições não governamentais de apoia têm colocado os familiares das vítimas em evidência. Tal evidência tem lhes conferido certo aporte de proteção e sensação de segurança e confiança. A rede de proteção assim configurada, não representa um fator determinante, mas tem contribuído bastante para a persistência dos familiares na busca por justiça.

para as testemunhas, vítimas e seus familiares, para que as pessoas tenham a sua integridade física assegurada. E uma das formas de chegar até o programa é através do Ministério Público Estadual ou Federal, que faz a primeira apreciação da denúncia, avalia os riscos, requisita as providências policiais necessárias e, sendo caso para atendimento, encaminha formalmente ao programa. Disponível em: < http://www.aatr.org.br/Programas/DH/Provita.htm >. Acesso em: 17 jan. 2010.