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3. CLERO E LETRADOS NA ORDEM MONÁRQUICA

3.3 Bispos e padres

Em princípio, o clero fora o grupo que menos sofrera manipulação do governo monárquico brasileiro. Até 1850, ou seja, durante a monarquia de Pedro I e o Período Regencial, nenhum projeto fora de fato implantado em relação à educação do clero. Os bispos trazidos de Portugal tinham autonomia para manter suas escolas episcopais, embora as condições materiais em que eram colocados dificultassem muito o desenvolvimento educacional almejado por eles.

“Muitos se envolviam em negócios comprando fazendas e escravos, vivendo em concubinato e participando ativamente da política. Quer isto dizer que boa parte do clero era formada por elementos locais, com educação precária, embora sem dúvida acima da média, dispondo de recurso de poder desta educação, além do prestígio da religião e da Igreja e as vezes do próprio poder econômico. Um quadro completamente distinto do que era apresentado pela magistratura.” 38

37 BOURDIEU, Pierre. O mercado de bens simbólicos. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo:

Perspectiva, 1999. p. 99-181. “O desenvolvimento do sistema de produção de bens simbólicos (em particular o do jornalismo, área de atração para os intelectuais marginais que não encontram lugar na política ou nas profissões liberais), é paralelo a um processo de diferenciação cujo princípio reside na diversidade dos públicos aos quais as diferentes categorias de produtores destinam seus produtos, e cujas condições de possibilidades reside na própria natureza dos bens simbólicos. Estes constituem realidade com dupla face – mercadorias e significações –, cujo valor propriamente cultural e cujo valor mercantil subsistem relativamente independentes, mesmo nos casos em que a svc anção econômica reafirma a consagração cultural.” (p. 102- 103)

38 Cf: CARVALHO, José Murilo. Juízes, padres e soldados. In: A construção da ordem. Rio de Janeiro:

Pela atuação dos bispos, os padres, dentre os letrados que compunham a administração pública do país, eram o grupo mais envolvido com a cultura popular,39 pois vinculados ao catolicismo sincrético, formado por irmandades e confrarias, contribuíam para os cultos e ritos coletivos e a educação das primeiras letras. Neste sentido, a postura ideológica que o padre assumia, cada qual em sua região, tinha rápida repercussão junto aos grupos populares, o que lhe atribuía a característica de conselheiro e orientador dos hábitos e consciências.

“Apesar do Padroado, a burocracia eclesiástica era fonte constante de conflitos potenciais com o Estado; a formação da maioria do clero era menos nacional e menos estadista em seu conteúdo, a origem social do grupo era provavelmente mais democrática, as menores possibilidades de ascensão tornavam o grupo eclesiástico menos coeso do que os magistrados, finalmente, a atuação da maioria dos padres era muito próxima da população, tornando-os líderes populares em potencial, em contraste com juízes de guardar a lei e que permaneciam por pouco tempo em seus postos.”40

Por intermédio dos bispos, formaram-se padres conservadores e liberais. Trazidos de Portugal, os bispos refletiam no Brasil as controvérsias européias quanto às orientações do catolicismo praticado e idealizado.41 Distantes de Portugal e Roma, e sem auxílio dos governos locais no período colonial, eles se dividiam e não organizavam um sistema de ensino homogêneo. Em geral, no Brasil, os prelados liam os livros aos quais tinham acesso e se deixavam influenciar pelas várias correntes de pensamento que se configuravam na Europa, tornando-se vulneráveis às correntes revolucionárias do final do século XVIII e início do XIX. Com isso, desde a ascensão política do Brasil, em 1822, até o final do período regencial de Araújo Lima, o pensamento iluminista se desenvolveu no Brasil sob a

39 Cf: ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular. São Paulo: Brasiliense, 1988. 40 CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Campus, 1980. p. 143.

41 Cf: SOUZA, Ney de (Org). A sociedade paulista no século XVIII e o catolicismo. In: Catolicismo em São Paulo: 450 anos de Igreja Católica em São Paulo. 1554-2004. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 100-127. A obra narra a transferência do catolicismo monitorado pelos jesuítas para o catolicismo monitorado pelos bispos.

ativa participação do clero, que colaborou para a consolidação de um iluminismo denominado conservador.42

Na história do pensamento brasileiro, padres e bispos produziram e propagaram o chamado saber eclético, do qual sairiam as idéias revolucionárias do iluminismo francês e também as mais radicais idéias que justificavam a manutenção da ordem monárquica, que representava a tradição conservadora.43

“Muitos dos “padres ilustrados” acompanharam os sinais dos tempos, formando-se na Academia Jurídica para, em seguida, se engajarem na política, no ensino superior ou no funcionalismo público. Outros padres, vivendo em regiões de florescimento econômico e, muitas vezes, não tendo recebido uma formação adequada, se engajaram em atividades econômicas lucrativas.”44

Localizados em regiões do Brasil de difícil acesso, onde não chegava a burocracia de poder do império brasileiro, os padres formavam uma categoria de intelectuais autônomos, defensores de uma ordem política nem sempre concordante com as demais categorias que compunham o poder das monarquias absolutas modernas, quais sejam, magistrados e militares. Intencionalmente ou não, o clero estava inserido numa dupla relação de lealdade política que o colocou como provocador de antagonismos: ora subordinado ao poder monárquico, ora à hierarquia católica, ora aos seus próprios interesses.

42 Cf: MARTINS, Wilson. Liberalismo religioso, conservantismo literário. In: História da Inteligência brasileira. Volume II. (1794-1855). São Paulo: T.A. Queiroz, 1992. p. 129-136.; HAMPSON, Norman. O

Iluminismo. Lisboa: Ulisséia, 1973. De acordo com o autor: “... À medida que os agentes do Estado se foram estabelecendo por todo o território asseguraram novas fontes de informação, bem como o meio de influenciar o que anteriormente fora deixado à tradição, à natureza e à providência (...) A revolução administrativa se deu numa sociedade conservadora, em que uma classe camponesa continuava a pagar tributos a senhores cujas funções protetoras tinham sido assumidas pelo Estado.” (p. 50) De certa forma, o mesmo ocorreu no Brasil com a instauração da monarquia.

43 Cf: PAIM, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. 2 ed. São Paulo: Grijalbo; Edusp, 1974. 44 WERNET, Augustin. A Igreja paulista no século XIX: a reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-

Sob o monopólio religioso do governo imperial, as práticas religiosas de caráter público foram colocadas sob vigilância policial. A construção de um cruzeiro ou uma capela em lugar público envolvia um longo caminho burocrático e a participação de benfeitores que acabavam financiando as obras. O padre aparecia como peça burocrática das relações entre benfeitores, corte e população rural que compunha o montante de devotos,45 uma vez que os párocos faziam repercutir suas posturas junto aos indivíduos da área rural e dos povoados, caracterizados como freguesia, paróquia ou vila.

“A paróquia era a célula mais importante no sistema eleitoral brasileiro. As eleições realizavam-se na Igreja Matriz, precedida pela missa solene do Espírito Santo, na qual se invocava a graça divina para que iluminasse a todos.”46

O padre fundamentava valores, significados e coesão ao grupo na execução dos rituais de passagem que caracterizavam a vida civil, legitimando os nascimentos; os registros de batismo; as uniões conjugais; a morte, e outros elementos da vida civil vinculados à vida cotidiana. Na categoria de elemento moralizador, ele também desempenhava papel político, “... o campo que os eclesiásticos podiam distinguir-se, e realmente se distinguiram, era o político, mercê de uma situação privilegiada, por constituírem a parte mais numerosa da elite intelectual.”47

Antônio Carlos Villaça, em O pensamento católico no Brasil,48 divide o pensamento católico brasileiro em duas fases: a escolástica portuguesa, com a presença dos jesuítas,

45 HAUCK, J. F. 4º. Período. A Igreja na emancipação. In: BEOZZO, José Oscar (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina. Tomo II. História da Igreja no Brasil segunda época: A Igreja no Brasil do século XIX. 3 ed. Petrópolis: Vozes/Paulinas, 1992. p. 18.

46 WERNET, Augustin. A Igreja paulista no século XIX: a reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (1851-

1861). São Paulo: Ática, 1987. p. 69.

47 HAUCK, J. F. 4º. Período. A Igreja na emancipação. In: BEOZZO, José Oscar (Coord.). História Geral da Igreja na América Latina. Tomo II. História da Igreja no Brasil segunda época: A Igreja no Brasil do século XIX. 3 ed. Petrópolis: Vozes/Paulinas, 1992. p. 17.

entre os séculos XVI e XVIII; e a francesa, com a presença das congregações francesas, no século XIX e primeiras décadas do século XX. A fase francesa é subdividida em três: indefinição da espiritualidade, que corresponde ao romantismo; dissolução da espiritualidade, influência do ceticismo renaniano e do evolucionismo alemão e inglês; restauração da espiritualidade, como um novo fenômeno cultural que pode ser chamado de reação católica. O período marcado pela reação católica é apresentado na atividade intelectual do clero, nas publicações e na docência de personalidades que viveram em Recife, São Paulo e Rio de Janeiro.