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5. SEMINÁRIO EPISCOPAL DE SÃO PAULO COMO ESTRATÉGIA

5.2 A construção do prédio

A aplicação dos controles expostos nos regulamentos, que exigiam do clero uma nova disciplina, poderia de fato ser efetivada mediante o modelo educacional do internato, ou seja, em um local determinado e fechado em si mesmo. O modelo mais eficaz para a propagação desta disciplina moral e ética que o clero deveria assumir, ou de qualquer outra que viesse a ser estabelecida, era o regime que seguia o modelo dos conventos medievais. De acordo com Michel Foucault, “o internato aparece como regime de educação senão o mais freqüente pelos menos o mais perfeito”24 para a aplicação de um novo código disciplinar. As instituições totais, conforme a definição de Erving Goffman,25 são recintos fechados em si mesmos, que separam os grupos ali reunidos da sociedade que se configura

20 Idem, p. 5.

21 MELO, Antônio Joaquim de Melo. Regulamento ao clero. 2 de agosto de 1851. Arquivo da Cúria

Diocesana de São Paulo. Documentos interessantes, p. 27-42. Estante 15, gaveta 79, nº 52.

22 MELO, Antônio Joaquim de. Regulamento para ordinandos. São Paulo, 1852. Arquivo da Cúria

Metropolitana de São Paulo, pastas avulsas do Seminário Episcopal de São Paulo 1854-1864.

23 BULA DE NOMEAÇÃO DO BISPO D. ANTÔNIO JOAQUIM DE MELO. Arquivo da Cúria

Metropolitana de São Paulo. Março de 1851, 4-2-31, p. 188.

24 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1988.

no espaço externo. O recinto é composto e dividido de forma a garantir a sobrevivência e o desenvolvimento dos grupos, apresentando em seu espaço todas as condições para alimentação, estudo, descanso, lazer, cerimoniais e outras atividades da vida cotidiana que se realizam na sociedade aberta, de forma a reduzir ao máximo a saída dos internos. O contato do interno com o mundo externo era mediado pelo representante máximo da administração, dividida hierarquicamente. Atribuía-se a ele a responsabilidade pela contratação de funcionários, pela manutenção das bases materiais e pela determinação da disciplina. No caso específico do Seminário, cabia ao reitor a administração, que se dividia em: financeira, intelectual e religiosa.

As escolas particulares começam a ser construídas em São Paulo a partir da Lei Provincial de março de 1846, que dispensava processos burocráticos ou formais de autorização, sob a alegação de que as escolas públicas que havia eram inconsistentes e o alcance do Colégio de Belas Artes e da Faculdade de Direito eram insuficientes.26

A construção do prédio para a aplicação da nova disciplina sacerdotal envolveu quatro anos de um burocrático trabalho, que incluiu: formação de uma comissão para levantar fundos e administrar a construção, reunião das pessoas habilitadas à construção e ainda, um dos pontos mais relevantes, a localização daqueles que deveriam assumir a administração pedagógica educacional.27 A Carta Pastoral elencou à população civil os

26 Cf: MARCILIO, Maria Luiza. História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Instituto Braudel;

Imprensa oficial, 2005. p. 79. Cf: ALMEIDA, José Ricardo Pires. Instrução Pública no Brasil (1500-1889): História e Legislação. São Paulo: EDUC, 2000. p. 81. Nesta obra, são expostas algumas medidas da monarquia brasileira, adotadas a partir de 1845, para com o ensino secundário público e também particular.

27 Para identificar o processo de construção do Seminário, foram consultados os seguintes arquivos: Arquivo

da Cúria Metropolitana de São Paulo; Arquivo do Município de São Paulo; Arquivo do Estado de São Paulo; e as Atas da Câmara Municipal de São Paulo, consultas estas que evidenciaram a escassez de documentos sobre o processo de construção do estabelecimento. Para suprir esta escassez, foram utilizados neste capítulo os memorialistas da História de São Paulo, mormente aqueles dedicados ao bairro da Luz, local onde o Seminário foi apresentado como um sinônimo de progresso. Cf: TAUNAY, Affonso de. História da cidade

de São Paulo sob Império (1842-1854). Volume VI. Coleção da Secretaria Municipal do Patrimônio Histórico Divisão do Arquivo Histórico. São Paulo, 1977.; MARTINS, Antônio Egydio. São Paulo Antigo. São Paulo:

pontos mais relevantes acerca do Seminário, a sua finalidade e o objetivo a que se destinava. Depois da abertura, que relacionava os títulos de nobreza de dom Antônio, era apresentada a finalidade a que se destinava o recinto: combater o espírito pagão, que teria invadido todas as classes católicas do Brasil.28 O Seminário deveria ser reconhecido no contexto da sociedade em que se constituía como um centro de legitimação de uma dada instância cultural e profissional, o que pode ser entendido como parte da complexificação das sociedades contemporâneas. Conforme a Carta Pastoral, o Seminário fora aberto como fruto da autorização do Concílio de Trento, na sés. 23 de ref. 18, autorizado pelo Decreto n. 1.275, de 21 de abril de 1853, no qual constam também as nomeações do Reitor, dos Lentes e Professores que deveriam servir ao ensino.29

Na redação da Carta Pastoral n. 8 são apresentados também os ânimos que moveram as intenções educativas do bispo para a abertura de um Seminário ao clero, condizentes com os de Pio IX. Com o emprego de um vocabulário capaz de denotar a posição de submissão do bispo às orientações e ordens do papa, dom Antônio apresenta os capuchinhos como grupo enviado para dirigir o Seminário, relata a sua procedência francesa e as qualificações atribuídas aos mesmos, quanto à competência para o Paz e Terra, 2003.; JORGE, Clóvis de Athayde. Luz: notícias e reflexões. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1988.; GUIMARÃES, Laís de Barros Monteiro. Luz: História dos bairros de São Paulo. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Departamento do Patrimônio Histórico, Divisão do Arquivo Histórico, [1929?].

28 SANTANA, Joaquim José Gomes. Ata de abertura do Seminário. São Paulo, 4 de novembro de 1856.

Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Livro Tombo 1856-1898, localização (11-3-1), folha 2.

29 DENZINGER, Enrique. El magistério de la Iglesia. Barcelona: Editorial Herder, 1963. p. 272-274. Sessão

do Concílio de Trento em que se inscrevem os princípios de autoridade da hierarquia para com a administração dos sacramentos, assim como a capacidade de perdoar e absolver os pecados como fora manifestado nas Sagradas Escrituras e tal como vinha sendo mantida pela tradição católica. Nesta sessão, defende-se a qualificação da hierarquia e sua distinção perante a comunidade de fiéis. Apresentam-se também os cânones dos sacramentos, conferindo somente aos sacerdotes ordenados pelos bispos a graça do Espírito Santo em seu caráter, conseqüentemente os únicos capazes de ministrar o cerimonial cristão. O texto reforça ainda os aspectos da hierarquia eclesiástica atribuídas por ordenação divina, presentes nos bispos, presbíteros e ministros e, por último, afirma que os bispos só devem ser reconhecidos na medida em que são designados pela autoridade do Romano Pontífice.

desempenho da função de sacerdotes santos e cultos. Nesta passagem, mesmo tendo indicado a competência dos freis para a missão que estava sendo assumida, dom Antônio deixava claro que esta havia sido uma exigência da hierarquia. Mais à frente, junto à parte que trata sobre os professores e as matérias que seriam ministradas, o bispo salienta a espera por mais 5 lentes lazaristas de Paris, para assumir as disciplinas vacantes; este fato reforça a hipótese de que o bispo dom Antônio não teria ficado de todo satisfeito com o envio dos capuchinhos para assumir o Seminário que ele estava inaugurando. Outro ponto no tocante a esta questão é a determinação do bispo, exposta nos últimos parágrafos da sua Carta Pastoral, quanto à permanência dos capuchinhos na reitoria e nas disciplinas principais. Os freis deveriam permanecer até o momento em que do Seminário pudessem sair sacerdotes hábeis para os substituir. Esta determinação foi colocada junto às determinações sobre a biblioteca. Depois do falecimento do bispo, nenhum livro doado de sua biblioteca particular poderia ser tirado da casa, e em caso do seu desejo não ser atendido, os livros deveriam ser vendidos em São Paulo ou na Capital e a verba obtida encaminhada para a Santa Casa da Misericórdia de Itu. A terceira determinação episcopal consagrou a instituição aos santos padroeiros:

“Este estabelecimento foi primeiro dedicado a Santo Inácio de Loyola; mas conhecendo a vontade do Pai comum, que Nos fez saber que sua vontade era, que os edifícios criados, depois da memorável época da definição dogmática da Imaculada Conceição de Maria, fossem dedicados a Maria Imaculada; com o mais puro sentimento de obediência filial e de confiança na Mãe dos Homens Nós lhes damos o primeiro lugar e ficará de hoje para todo o sempre chamando-se Seminário Episcopal de Maria Imaculada e de Santo Inácio – Inefável era o amor e a confiança de Inácio para com Maria Santíssima (...) Nos pedimos, exortamos e mandamos que anualmente se façam nesta casa duas festas de missa cantada a canto chão e Sermão: a 1ª. a 8 de dezembro, implorando a proteção de Maria Imaculada a 2ª. a 31 de julho, dedicada a Santo Inácio de Loyola, cujos filhos tantos bens fizeram expondo em seus trabalhos evangélicos suas vidas, seus cômodos, a bem daqueles que jaziam sepultados no embrutecimento e sombras da morte (...) Tão bem pedimos igual festa na 6ª. feira antes da dominica palmarum em honra de Maria Imaculada em seu sacrifício doloroso. Pretendemos fazer as nossas expensas um altar e aí colocaremos a imagem de Maria em

sua solenidade. Desde já doamos para a casa esta imagem mas só a entregaremos depois da acabada a capela...”30

Neste ponto prevaleceu o caráter conciliador do bispo perante as relações de poder que recaíam sobre ele. A consagração dos padroeiros envolvia os ícones do catolicismo e as devoções que colaboravam para a formação da personalidade dos formandos; perpassava as datas comemorativas e contribuía para a formação do caráter religioso, que estaria sendo constituído no interior da instituição. O santo padroeiro pode ser entendido como um dos elementos estruturantes dotado de poder simbólico, que deixa traços específicos na identidade dos envolvidos no culto. No caso do Seminário, verifica-se que dom Antônio pusera fim à questão, conciliando as intenções e invocando as bençãos de ambos os santos: Santo Inácio e Nossa Senhora da Conceição. Outra passagem que reforçou esta questão foi a ata de abertura do Seminário, que em sua totalidade reproduz partes dos pontos apresentados na Carta Pastoral n. 8:

“Serve este livro, pertinente ao Seminário Episcopal de Maria Imaculada e Santo Inácio de Loyola, para nele se registrarem os Provimentos, Ordens e Determinações do Exmo. e Revmo Diocesano, e autoridades competentes. Não para mim, abaixo assinado, numerado e rubricado Alto de cada folha... Este estabelecimento foi primeiro dedicado a Santo Inácio de Loyola, mas conhecendo a vontade do Pai comum, que nos fez saber que sua vontade era, que os edifícios criados, depois da memorial época da Definição Dogmática da Imaculada Conceição de Maria, fossem dedicados a Maria Imaculada, com o mais puro sentimento de obediência filial, e de confiança na mãe dos Homens, nós lhes damos o primeiro lugar, e ficará de hoje para todo o sempre chamando-se: Seminário de Maria Imaculada e Santo Inácio de Loyola...”31

O caráter conciliador pode ser interpretado como um indício de resistência do bispo em relação ao papa. Entretanto, o culto à Virgem promovido pela hierarquia, além de perpassar a questão da fé em forma de dogma, favorecia a difusão de relações assexuadas

30 Cf: CAMARGO, Paulo Florêncio da Silveira. Carta Pastoral sobre o Seminário. In: A Igreja na História de São Paulo (1851-1861). São Paulo. Instituto Paulista de História e Arte Religiosa, 1953. p. 314.

31 SANTANA, Joaquim José Gomes. Ata de abertura do Seminário. São Paulo, 4 de novembro de 1856.

com a figura feminina, e que seria um importante elemento de moralização do clero, muito envolvido com o concubinato. Nas práticas do catolicismo já arraigado na Província de São Paulo, a figura de Santo Inácio estava associada à imagem de combatente em favor da palavra de Cristo, que tinha como principal escudo a educação, precisamente o ponto que o bispo dom Antônio queria reafirmar nos alunos do seu Seminário. Neste caso, é a figura masculina, de um ser instruído pela palavra ou erudição, que é ressaltada nos traços da personalidade de Santo Inácio. Ao conciliar ambas as figuras, não podemos descartar o fato e a representatividade do homem colocado ao lado da mulher; as imagens da Imaculada Conceição e de Inácio de Loyola definiram os aspectos de um sincretismo que unia o imaginário popular ao imaginário da hierarquia romana, e de uma forma ou de outra mantinha a figura feminina ao lado da masculina.

O uso de Santo Inácio como padroeiro e orago começou antes do recebimento da carta de Pio IX, que determinava a Imaculada Conceição padroeira. Santo Inácio fora lançado junto ao grupo que se responsabilizou pelo levantamento dos fundos para a construção material do prédio, constituindo-se como um elemento de mobilização da sociedade civil para a materialização dos locais de culto. No Brasil, seguindo a tradição do catolicismo popular português, a adoção de oragos – usados como uma espécie de invocação religiosa – era muito comum entre as famílias para proteger os estabelecimentos construídos.32 Com as bênçãos de ambos, Santo Inácio e Imaculada Conceição, haveria, conseqüentemente, duas festas comemorativas no Seminário. Recomendava-se ainda que em todas as manhãs e em todas as noites fossem invocadas nas orações comuns a proteção

32 Cf: TIRAPELLI, Percival (Org.). Arte Sacra Colonial: Barroco memória viva. São Paulo: Editora UNESP;

Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 16. De acordo com o autor, a adoção de santos padroeiros era uma prática comum do catolicismo popular trazido de Portugal para ao Brasil; assim, as famílias portuguesas ou as suas descendentes no Brasil tinham sempre o seu orago, utilizado como espécie de invocação religiosa.

dos padroeiros.33 Foi ainda declarado na Carta Pastoral sobre o Seminário que a casa teria,

desde aquele momento, um arquivo no qual seria guardada toda a escrituração produzida: livro tombo, registros das determinações do próprio bispado ou de outros competentes, livro de receitas e despesas, livro de matrículas, da entrada e saída dos Seminaristas, dos empregados da casa e suas contas com a mesma.

De acordo com Clóvis de Athayde Jorge,34 a junta administrativa para angariar fundos foi atribuída ao Cônego Dr. Ildefonso Xavier Ferreira, ao Barão de Itapetininga e a José Joaquim dos Santos Silva, grupo que passou a representar juridicamente o Seminário, levantando e administrando os saldos necessários para a construção do prédio. De acordo com os registros na Poliantéia, dom Antônio teria mobilizado todas as paróquias para a arrecadação de fundos, contudo, a participação da Corte foi decisiva para a construção do prédio do Seminário no bairro da Luz.35

33 A figura de Inácio de Loyola junto ao imaginário popular paulistano acabou sobrepesando esta questão dos

padroeiros junto àqueles que eram de fora do Seminário. Cf: ARROYO, Leonardo. Igreja de São Paulo. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1966. p. 233. Em seu texto, o autor atesta que o Seminário de São Paulo tinha como orago apenas Inácio de Loyola, sendo o nome da Imaculada Conceição omitido.

34 JORGE, Clóvis de Athayde. Luz: notícias e reflexões. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico,

1988. p. 76.

35 Outro fator que evidencia a participação do governo imperial na construção do Seminário são as

controvérsias na cidade de São Paulo em relação ao patrimônio material dos clérigos distribuídos nas cidades, considerados na época bens de mão morta, que não traziam nenhuma espécie de benefício para a sociedade civil. É o que elucida o seguinte trecho de um artigo de jornal: “De há muito que o paíz inteiro reclama do corpo legislativo uma medida tendente a fazer cessar o estado irregular e imprestável a que, em geral, estão reduzidos os bens das corporações de mão morta (...) Antigamente os prédios pertencentes a estas corporações distinguião-se e eram procurados pelos alugadores por baratos:- hoje são os mais caros! (...) Daqui que se vê que tais corporações mais se ocuparão da administração dos seus bens do que do seu fim primordial. A comissão da fazenda da câmara dos Srs. Deputados acabam de apresentar felizmente um projeto, no sentido de cortar este estado de cousas. Louvores sejam dados, pois aos Irmãos Taques e Ferraz dignos membros desta comissão. (...) as rendas e os bens a estes pertencentes são gastos em proveito de um ou outro abade, comissionário ou presidente, que a sós em seus conventos vivem – vida de abastados proprietários, sem que a sociedade colha de sua existência” (CORPORAÇÃO de mão morta. O correio paulistano, São Paulo, ano 1, n. 02, p. 2, terça-feira, 27 de junho de 1854.). No dia seguinte, em 28 de junho, um outro artigo, intitulado

Ainda os bens de mão morta prossegue com a mesma discussão. No dia 30 de junho de 1854, é publicado um artigo falando sobre a instalação da Cadeia Pública e prossegue defendendo o bispo que havia sido desapropriado do seu palácio na Sé: “Entre o número de propriedades que conta a província, tem lugar o edifício construído no Largo da Sé, cujo usufruto a assembléia provincial acaba de tirar ao Sr. Bispo. Esta providência foi salutar: não havia motivo que justificasse o abandono deste prédio ante a câmara dos padres. Mas errou a assembléia dando-lhe o destino que se vê da lei. Foi estabelecido que para aí se transferisse a