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3. CLERO E LETRADOS NA ORDEM MONÁRQUICA

3.1 A instrução das letras

Seguindo o modelo do Padroado Régio estabelecido em Portugal,3 o conhecimento letrado no Brasil se deu conjuntamente à implantação do catolicismo, uma vez que a colonização portuguesa apresentava dentre os seus princípios a transmissão da fé católica, efetivada sob a forma da transmissão do saber letrado. O início efetivo da educação brasileira, mormente com a ação jesuítica, é um assunto que vem sendo tratado pela história da educação e pensado no interior das grandes fases políticas dos períodos Colonial,

3Cf: SOUZA, Ney de (Org.). A instalação do bispado em São Paulo em 1845. In: Catolicismo em São Paulo:

450 anos de presença da Igreja Católica em São Paulo. 1554-2004. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 19-29. O exercício dos poderes religiosos da Coroa Portuguesa sobre o Brasil se deu com a abertura do bispado de São Salvador da Bahia, legitimada pela bula papal Super specula militantis Ecclesiaie, do papa Júlio III, promulgada em 25 de fevereiro de 1551. A partir desta data, ficou outorgada à Coroa Portuguesa a categoria de patrona das instituições católicas na África, na Ásia e no Brasil, ou seja, a Coroa Portuguesa tornou-se responsável pelo aumento da cristandade pela exaltação da fé. Aos portugueses é assegurado também o direito de construir igrejas e estabelecer o clero católico – nomeá-lo e dar condições materiais de existência –, contexto que fez do clero um funcionário da Coroa Portuguesa, dependente de remunerações para sobreviver em território brasileiro. A inconstância da corte portuguesa quanto à participação dos clérigos na estrutura burocrática da colonização negligenciava os subsídios necessários ao grupo que, não raro, se via em situações em que eram obrigados a se dedicar a atividades econômicas da sua época, para garantir uma sobrevivência mais digna no sólo hostil da colonização efetivada. Padres, bispos e integrantes das ordens religiosas, no decorrer da colonização, ficam subordinados ao controle da Mesa de Consciência e Ordens, instrumento do poder real sobre os assuntos relativos ao padroado. A bula mais significativa às relações do padroado foi a

Aequm reputamus, que vem reforçar as anteriores e servir como referencial àquelas promulgadas posteriormente. Datada de 3 de novembro de 1534, publicada pelo papa Paulo III, a bula fora criada para a diocese de Goa, na Índia, cujo território se estenderia desde o cabo da Boa Esperança até a China, abrangendo todos os lugares descobertos pelos portugueses ou que viessem a ser descobertos.

Monárquico e Republicano, e ainda nas subfases que cada período apresenta.4 O padroado

régio português principiou junto às colônias, dentre as quais o Brasil, que compunha a maior parte do império de Portugal além mar, a educação, em cujos propósitos prevalecia a difusão da religiosidade católico-cristã, como prerrogativa para a legitimação dos valores do regime monárquico absolutista. Com isso, o padroado régio, assumido pelos monarcas portugueses, 5 fez com que os clérigos se subordinassem às estruturas da política absolutista, minimizando os interesses religiosos que estavam sendo propostos pela hierarquia católica romana desde a Contra-Reforma, no século XVI. Com a manutenção das características do Antigo Regime, os privilégios e encargos clericais foram posteriormente estendidos ao imperador do Brasil, com a instalação da monarquia. O padroado régio no Brasil perpassou o século XIX, com a projeção da monarquia portuguesa sobre os Imperadores dom Pedro I e dom Pedro II, com a preservação desta forma de governo cindido somente com a proclamação da república, em 1889.

Nas disposições da organização colonial, os clérigos, padres, bispos e, sobretudo, os jesuítas foram incumbidos de transmitir o conhecimento sobre as letras acompanhado da evangelização. Todavia, desde o início da colonização, os interesses econômicos dos portugueses minimizaram a participação educativa dos jesuítas, impedindo que desenvolvessem satisfatoriamente a incumbência educacional. Os portugueses temiam que a educação trouxesse idéias que prejudicassem o sistema de dominação colonial.

4 Cf: TOBIAS, José Antônio. História da educação brasileira. São Paulo: Ibrasa, 1986.; NISKIER, Arnaldo. Educação brasileira: 500 anos de História, 1500-2000. Rio de Janeiro: Consultor, 1995.; RIBEIRO, Maria Luiza dos Santos. História da educação brasileira. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.

5 Cf: AZZI, Riolando. A cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas, 1987. “Cabia desta

forma ao monarca a apresentação dos candidatos ao episcopado e às paróquias, bem como a obrigação de zelar pela construção e conservação dos edifícios do culto, remuneração do clero e pregação da fé cristã, através do envio de missionários.” (p. 21-22).

A adesão ao pensamento iluminista pela corte portuguesa, na segunda metade do século XIX, representada pelo período pombalino, colocou a colônia brasileira numa situação de carência educacional6 ainda maior, sobretudo após a expulsão dos jesuítas, em 1759. Os jesuítas foram elementares à consolidação do cristianismo junto à cultura brasileira; foram eles os responsáveis pela difusão de uma educação formalizada,7 cujo objetivo era legitimar os valores do Estado Absolutista português, confirmados sobre os princípios dogmáticos doutrinários e disciplinares defendidos pelo catolicismo. Os padres da Cia. de Jesus representavam a conjuntura cultural portuguesa em meio ao sistema colonial, contribuindo para a penetração dos colonizadores no território.8 A expansão dos jesuítas no interior do território colonizado se fortaleceu no movimento de Contra-Reforma Católica. Os jesuítas foram, no Brasil, os primeiros porta-vozes das determinações enunciadas pelo Concílio de Trento, calcado no espírito renascentista do século XVI. Em Portugal e nas colônias, os jesuítas se dedicavam às aulas de ler e escrever: espécie de curso propedêutico para as demais graduações de ensino que estavam sendo oferecidas.9 Além da

6 Cf: HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.). As novas idéias. In: História Geral da Civilização Brasileira.

Tomo II. O Brasil Monárquico. 1. O processo de emancipação. São Paulo/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. p. 179-190.

7 BRANDÃO, Carlos. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1995. Em toda a obra, o autor expõe os

contrastes entre as características da educação formal e informal. PILETTI, Nelson. História da Educação no

Brasil. São Paulo: Ática, 1997. As referências feitas à educação aqui fazem parte das definições sobre educação formal que se opõem a educação informal efetivada no âmbito social e familiar no qual se insere o indivíduo. “A educação Formal ocorre, portanto, sempre que se desenvolve sistematicamente, segundo planos que incluem objetivos, conteúdos e meios previamente traçados. Diz-se, a partir da definição anterior, que a escola é a agência por excelência da educação formal.” (p. 9).

8 PILETTI, Nelson. História da Educação no Brasil. São Paulo: Ática, 1997. “...mantinham 36 missões,

escolas de ler escrever em quase todas as povoações e aldeias por onde se espalhavam suas 25 residências, além de dezoito estabelecimentos de ensino secundário, entre colégios e seminários, localizados nos pontos mais importantes do Brasil: Bahia, São Vicente (depois São Paulo), Rio de Janeiro, Olinda, Espírito Santo, São Luís, Ilhéus, Recife, Paraíba, Santos, Pará, Colônia do Sacramento, Florianópolis (Desterro), Paranaguá, Porto Seguro, Fortaleza, Alcântara e Vigia.” (p. 33).

9 Cf: ANDRADDE, Antônio. Prolegômenos dos Estudos Secundários: o Ensino Elementar. In: A reforma pombalina dos Estudos Secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 2.

população indígena – principal grupo para o qual se voltaram os jesuítas –10 eles tinham

também como estratégia nas colônias os filhos dos senhores de engenho, dos colonos e dos índios. As escolas de ler, escrever e contar dos jesuítas foram os principais veículos de difusão do catolicismo e conseqüentemente dos costumes europeus intimamente relacionados ao domínio da escrita.

A expulsão dos jesuítas, em 1759, simboliza a ascensão do iluminismo11 junto à corte portuguesa, uma das pioneiras na sistematização do pensamento iluminista na organização política e cultural. A orientação do iluminismo em Portugal se fizera sentir pela reforma educacional do Marquês de Pombal, então ministro do Estado de dom José I (1750-1777). A educação, a partir desta reforma, tem como objetivo dar vazão ao pensamento iluminista, aparelhando o Estado para o desenvolvimento material da nação.12

No caso específico da colônia brasileira, que atendia apenas aos intuitos econômicos de Portugal, não houve, com a expulsão dos jesuítas, um novo depositário educacional. Mesmo os recintos ocupados pelos padres da Cia. de Jesus ficaram abandonados.13 Dentro do novo projeto educacional, a Coroa se responsabilizaria pelas aulas de Latim, Grego e

10 BOSI, Alfredo. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialética da colonização. São Paulo: Cia das

Letras, 1992. p. 64-93. No período colonial, os jesuítas são os que mais se aproximaram da cultura indígena, na tentativa de traduzir-lhes os símbolos do catolicismo, durante o processo de alfabetização do grupo. Esta atividade dos jesuítas implicava também a apropriação dos elementos indígenas como premissa doutrinária e dogmática teológico-cristã.

11 Cf: HAMPSON, Norman. O Iluminismo. Lisboa: Ulisséia, 1973. O autor apresenta a evolução do

pensamento e das práticas que denotam o homem europeu do século XVIII, quanto à sua organização social, econômica, política, filosófica e teológica – tipo de orientação denominada Iluminismo. CASSIRER, Ernest. IV A idéia de religião. In: A filosofia do iluminismo. São Paulo: Editora da Unicamp, 1980. p. 189-266. Neste capítulo, o autor demonstra as modificações filosóficas sobre o conceito de religião vinculadas à ascensão do pensamento iluminista e à difusão do deísmo, tipo de raciocínio religioso que descaracterizava os princípios instaurados pela tradição cristã, ao tornar dispensável a presença dos clérigos católicos à difusão do raciocínio religioso.

12 BIHLMEYER, Karl; TUECHLE, Herman; CAMARGO, Mons. Paulo F.S. A Igreja Católica nas

tempestades da Idade Iluminista. In: História da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1965. p. 351-352.; Cf: Idem, p. 408-409.; LUTTEROTH, Maria Alicia Puente. La Iglesia en la História de México. México: CEHILA, 1993. A América espanhola também sofreu os impactos do pensamento iluminista por intermédio das reformas Borbônicas, implantadas na Espanha, a partir de 1765, por José de Galvez, Marquês de Sonora.

Retórica. As aulas régias não garantiam a educação nas colônias pela ausência de professores qualificados, uma vez que os cargos eram atribuídos por indicação e simbolizavam títulos de nobreza no sistema colonial implantado no Brasil.14 As ordens que permaneceram no Brasil, destacadamente beneditinas e franciscanas, foram impedidas de aceitar noviços brasileiros ou europeus, fator que dificultou a atividade educacional destes clérigos que, em poucos anos, quase desapareceram enquanto grupo. Imediatamente à expulsão dos jesuítas, os bispos assumiram maior participação na organização da religiosidade da colônia, voltando-se mormente para a formação dos sacerdotes, o que iria garantir a participação sociocultural do grupo frente às mudanças políticas.15

Os Seminários, organizados e mantidos cada qual pelo bispo de sua localidade, careciam de professores e conteúdos a serem ministrados. Não raro o bispo ministrava todas as matérias, usando como recinto uma das salas de sua casa, e ordenava o interessado em pouco mais de um ano. Este período, que vai da expulsão dos jesuítas até a entrada da família real no Brasil, é o período que marca o desenvolvimento da pluralidade ideológica do enciclopedismo francês, como conseqüência daquilo que havia sido assumido pela Universidade de Coimbra – principal ponto de desenvolvimento das idéias portuguesas na Europa.16 É importante salientar que as aulas régias que vieram substituir o ensino dos jesuítas, tanto em Portugal como nas colônias, não simbolizavam a secularização do ensino,

14 CHAGAS, Laerte Ramos. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva/Edusp, 1978.

p. 9.; ALMEIDA, José Ricardo Pires. Instrução pública no Brasil (1500-1889): História e Legislação. São Paulo: EDUC, 2000. p. 29.

15 ANDRADE, Antônio. A reforma pombalina dos Estudos Secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1978.

“O Bispo alinhará com o governador que, não obstante a qualidade de representante do poder central, promoverá Juntas de decisão no Paço episcopal, tanto na emergência de preencher os vazios deixados no ensino pelos Inacianos, como depois, quando se começa a implantação da Reforma do Ensino, a partir do Diretor Geral dos Estudos do Reino e seus Domínios.” (p. 4-5)

que continuou perpassado pelas autoridades eclesiásticas que, independentemente das posturas professadas, estimulavam a religião17 em seus esquemas de conhecimento.