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Bolivianos na Argentina: de migração de fronteira à migração metropolitana

Capítulo 1. Bolivianos na RMSP: origens e composição de um fluxo urbano

1.3 Origens e características da migração boliviana ao Brasil

1.3.3 Bolivianos na Argentina: de migração de fronteira à migração metropolitana

Se o processo de migração fronteiriço descrito serve ao caso da tríplice fronteira Brasil-Bolívia-Paraguai, o mesmo não ocorre no caso do espaço dividido por Paraguai, Bolívia e Argentina, cuja migração é polarizada por este útimo país. De acordo com Souchaud, Fusco e Carmo (2007), tanto os nascidos no Paraguai quanto na Bolívia são comunidades muito mais importantes em volume na Argentina (325.000 e 231.000 respectivamente84).

quase nula) e pelo lado brasileiro (presença humana concentrada no maior espaço urbano do trecho, Corumbá-Ladário)” (Souchaud, Fusco e Carmo., 2007).

83 No caso específico dos bolivianos no Brasil, os autores chamam a atenção para as migrações de tipo

fronteiriço de vizinhança recíproca (bolivianos em Corumbá e Guajará-Mirim) e de tipo metropolitano exclusivo (bolivianos em São Paulo).

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Os autores utilizam o Censo INDEC. A Argentina, até 2001, é o país do Cone Sul que mais recebeu migrantes internacionais dessa subregião, “Entre eles, os paraguaios compunham o grupo maior e os bolivianos pertenciam àquele que mais cresceu nas duas últimas décadas do século XX” (Sala e Carvalho, 2008: 289). Mesmo tendo aumentado o número de bolivianos no Brasil já a partir dos anos 1980 e, sobretudo, entre 1990 e 2000, nesse mesmo período a taxa de crescimento médio anual dos bolivianos que se dirigiram a Argentina foi maior do que em relação ao território brasileiro.

59 Em relação especificamente ao caso Bolívia-Argentina, vemos como esse espaço de fronteira define muitas das maneiras pelas quais se delinearam os fluxos migratórios de bolivianos a este país, em formas e intensidades diferentes do caso brasileiro. A migração boliviana à Argentina guarda relação com o momento em que as próprias delimitações territoriais-nacionais ainda não estavam configuradas tal como hoje, em que diversos povos e territórios comuns aos dois paíes estavam sob domínio do império Inca, no momento da chegada dos conquistadores espanhóis (Celton e Carbonetti, 2007).

Durante a época colonial – principalmente no período de apogeu da extração da prata na região do sul do altiplano, onde hoje encontra-se a cidade de Potosí na Bolívia – a região andina e a bacia do Rio da Prata se interligavam por meio de viagens comerciais constantes e deslocamentos de trabalho e estudo desde o fim do século XVII. De acordo com Hinojosa Gordonava (2009:26), “De hecho, la economía del norte argentino estaba articulada a la economía de Potosí en más de un sentido; hasta muy entrado el siglo veinte, el comercio de toda esta región se realizaba por los puertos del Pacífico y no por el puerto de Buenos Aires”85.

Segundo Grimson e Soldán (2000):

El primer censo nacional de población de 1869 [da Argentina], ya registra la presencia de extranjeros limítrofes en una proporción que alcanzaba el 20% sobre el total de extranjeros. El peso relativo de esta inmigración ha ido variando a lo largo del siglo XX. Si en 1914 eran alrededor del 8%, en 1991 superaban la mitad del total de inmigrantes (INDEC, 1996)”86

(Grimson e Soldan, 2000: 6).

Houve, de fato, importantes fluxos e influxos dos movimentos fronteiriços entre os dois países que alteraram, sobretudo, os lugares de origem e destino e o tipo de ocupação no país acolhedor. Um primeiro movimento importante esteve relacionado às migrações estacionais (ou sazonais) para a produção de açúcar na Argentina, nas províncias do noroeste (Salta e Jujuy), em que os migrantes bolivianos começaram a substituir os trabalhadores temporários dessas regiões – movimento associado à escassez de mão-de-

85 Tradução livre: “De fato, a economia do norte argentino estava articulada com a economía de Potosí em

mais de um sentido; até grande parte do século vinte, o comércio de toda esta região se realizava pelos portos do Pacífico e não pelo porto de Buenos Aires”.

86 Tradução livre: “o primeiro censo nacional de populaçao de 1869 [da Argentina], já registra a presença de

estrangeiros limítrofes em uma proporção que alcança 20% sobre o total de estrangeiros. O peso relativo dessa imigração foi variando ao longo do século XX. Se em 1914 eram em torno de 8%, em 1991 superavam a metade do total de imigrantes”.

60 obra no setor primário da economia argentina, sobretudo a partir dos anos 1930 (Balan, 1990; Benencia e Karasik, 1994).

Sobre esse aspecto, existe uma questão importante, que é o fato de que nem sempre os bolivianos que se dirigiam (e dirigem) às áreas de fronteira com a Argentina permanecem de forma definitiva nesse país. Essa circunstância se repete em outros contextos migratórios entre esses dois países, como no caso dos trabalhadores imbricados na produção de frutas e verduras no periurbano de Buenos Aires (Benencia e Karasik, 1994). Nesse contexto migratório de fronteira, as muito comuns idas e vindas entre os espaços de origem e acolhida – incluindo a dupla residência nos dois lugares – sublinham a necessidade de reconsiderarmos as fronteiras entre “sair para trabalhar” e “emigrar” de fato (Dandler e Medeiros, 1991), que suporia uma mudança permanente do local de residência.

No caso das migrações bolivianas à Argentina, somente a partir dos anos 1960, principalmente em função da mecanização na produção de cana de açúcar, os fluxos migratórios bolivianos (mas também de outros países limítrofes) foram alterando a rota em busca de oportunidades de trabalho na Região Metropolitana de Buenos Aires, sobretudo na área da construção civil (Balan, 1990). Vemos que esse processo de metropolização das migrações bolivianas à Argentina é bastante anterior ao processo vivido no Brasil, que se acentua duas décadas mais tarde, como vimos, embora já comece a se delinear nesse período. Mesmo que tenha ficado mais clara a alteração dos percursos migratórios em direção à Área Metropolitana de Buenos Aires – que concentra 51,6% dos bolvianos residentes na Argentina – ainda hoje, de acordo com o Censo Argentino de 2001, 23,8% dos bolivianos se concentram no Noroeste argentino (províncias de Catamarca, Jujuy, La Rioja, Salta, Santiago del Estero e Tucumán), seguido por outros pontos de concentração (Benencia, 2008a).

Benencia e Karasik (1994:271) mostram que até 1974, no interior da Argentina – onde os migrantes se inseriam prioritariamente em atividades agrícolas – a maioria dos bolivianos era originária do departamento de Potosí, seguidos por tarijenhos, cochabambinos, chuquisaquenhos, pacenhos e crucenhos. Em Buenos Aires havia muito mais cochabambinos seguidos por potosinos e emigrantes de Chuquisaca, La Paz, Tarija e Santa Cruz. Na capital, a maior parte dos bolivianos estava empregada na construção civil e

61 fabricação de tijolos, sendo que, entre as mulheres, observava-se a concentração no trabalho doméstico.

Nos inúmeros processos de inflexão e crescimento dos fluxos históricos de bolivianos à Argentina – que acompanham processos como a dolarização da economia nos anos 1990 e profundas crises econômicas, como entre 2001 e 2002 – a cidade de Buenos Aires como principal pólo de atração das migrações limítrofes foi ganhando espaço, tendo se tranformado hoje no “(...) principal lugar de destino de los mismos y constituye en el centro del subsistema migratorio del Cono Sur de América Latina”87 (Maguid, 1997: 31); razão pela qual, também, esse processo migratório passou a adquirir maior visibilidade nos últimos anos (Grimson e Soldan, 2000)88.

Apesar das constantes crises econômicas sofridas por esse país, a Argentina, no entanto, nunca parou de receber pessoas da Bolívia (Sala e Carvalho, 2008), o que, de certa forma, indica que os fluxos não são tão adaptáveis às conjunturas econômicas. Durante a crise de 2001 e 2002 que assolou o país economicamente, por exemplo, houve menos um retorno dos migrantes ao local de origem e mais uma readequeção nos seus espaços econômicos na Argentina, como a maior participação na indústria da confecção e de calçados, que serviu como refúgio para essa população na situação de desemprego generalizado (Benencia, 2008a).

Embora os bolivianos residentes em Buenos Aires estejam em grande parte imbricados em trabalhos informais em geral, com baixa qualificação profissional e baixos salários, principalmente na área da construção e no serviço doméstico (Maguid, 1997), existe uma ocupação importante (sobretudo a partir dos anos 1980) nas zonas rurais periurbanas da capital ligada à produção de frutas e verduras89. Ali, muitos bolivianos

87 Tradução livre: principal lugar de destino dos mesmos e constitui o centro do subsistema migratório do

Cone Sul da América Latina.

88 Segundo Grimson e Soldán, “cabe señalar que el proceso migratorio limítrofe ha adquirido mayor

visibilidad en los últimos años por el desplazamiento de los extranjeros desde las zonas fronterizas hacia los centros urbanos más importantes. Los migrantes han dejado de estar definitivamente localizados en zonas ‘marginales’ para instalarse en el corazón de las grandes ciudades” (Grimson e Soldán, 2000: 10). Tradução livre: “Cabe assinalar que o processo migratório limítrofe adquiriu maior visibilidade nos últimos anos pelo deslocamento dos estrangeiros das zonas fronteiriças até os centros urbanos mais importantes. Os migrantes deixaram de se localizar definitivamente em zonas ‘marginais’ para se instalarem no coração das grandes cidades”.

89 Existem diversos trabalhos sobre o assunto, principalmente elaborados por Benencia (1994, 2002, 2004,

2005, 2008b, Benencia e Quaranta, 2006). Sobre os trabalhadores bolivianos no mesmo ramo nas áreas periurbanas de Córdoba, também na Argentina, cf. Pizarro, Fontana et al.(2008).

62 praticamente dominam a cadeia de produção e comércio hortifrutículo, trabalhando na terra em sistemas de arrendamento, mas também propriedade privada (Benencia, 2009). Essa ocupação tem gerado, segundo Benencia, processos de intensa ascenção social entre bolivianos, sintetizados pelo autor como “la escalera boliviana” (Idem).

Vemos que a ocupação de bolivianos em Buenos Aires é muito mais diversa do que na RMSP, ainda que predomine o trabalho informal em todos os ramos. No entanto, existem pontos de convergência no que tange à área de confecção de roupas, cuja concentração ocupacional parece ter sido constante e aparentemente crescente a partir dos anos 200090 no caso Argentino (Benencia, 2008a), acompanhando também a própria crise e evolução desse setor na economia do país. No caso brasileiro, como mostramos adiante, o imbricamento dos bolivianos na cadeia de confecção é mais forte a partir dos anos 1980, sendo que também parece apresentar-se em expansão91.

Essa simultaneidade entre fluxos migratórios de mesma origem (Bolívia, mas também Coreia92) e áreas específicas de produção nos locais de destino (costura em São Paulo e Buenos Aires) já foi diagnosticada por Freitas (2009) e Silva, Georges et al. (2010). Para esses autores e também Caggiano (2009), no entanto, não se trata de uma coincidência. Embora aprofundaremos a questão da participação dos bolivianos na costura no Capítulo 2 e os imbricamentos entre esse ramo de atividade, migração e lugar de origem no Capítulo 3 – estamos chamando a atenção para uma confluência entre esses fatores que Caggiano (2009) acredita ser respaldada por questões culturais ligadas à origem migratória nos Andes, e mais especificamente nas cidades de La Paz e El Alto.

Voltado ao entendimento da presença de uma cultura aimara em Buenos Aires, Caggiano (2009) leva adiante a suposição desse imbricamento, associando esse fenômeno com uma cultura específica de organização da produção (em grande parte familiar), do

90 Sobretudo em relação a sua forma de organização, baseada na acumulação flexível (Benencia, 2008a).

Benencia atribui um momento de “renascer” da indústria de confecção na Argentina no pós-crise de 2001- 2002, sendo que o setor experimentou uma forte crise nos anos 1990.

91 A comparação entre o papel da indústria da confecção, bem como da participação dos bolivianos nessa

cadeia produtiva deve ser mais bem investigada levando em conta a participação e a dimensão dessa produção nos dois países, que acreditamos ser bastante diferente. Para uma dimensão comparativa desses dois casos, cf. Silva, Georges et al.(2010). Sobre o caso brasileiro, retomamos a questão no capítulo que segue.

92 Considera-se, nesse caso, que tambem existe uma confluência no que se refere à participação de coreanos

nesse ramo de produção, tanto em São Paulo como em Buenos Aires; ou seja, há o cruzamento dos circuitos da imigração coreana e boliviana em torno da indústria de confecções, tanto no Brasil como na Argentina (Freitas, 2009, Silva, Georges et al., 2010). Sobre os coreanos na Argentina, cf. Mera (1998, 2005). Sobre coreanos no Brasil (especialmente em São Paulo), cf. Choi (1991).

63 espaço e das relações de parentesco, que põem em circulação roupas típicas, saberes, imagens e, também, máquinas de costura. Explicita, ao mesmo tempo, possíveis lógicas de circulação migratória envolvidas nessa dinâmica, que retomamos a seguir.

Benencia (2008) confirma em seu texto que a maior parte dos bolivianos que trabalham no setor têxtil em Buenos Aires é proveniente de La Paz (embora cite alguns casos em que a origem se refere especificamente à El Alto)93.

Essa breve recuperação da migração boliviana à Argentina e, mais especificamente, do envolvimento dos bolivianos no setor de costura em Buenos Aires nos ajuda a justificar a hipótese que atribui à El Alto a maior parte dos fluxos de bolivianos trabalhadores da confecção na RMSP. Essa demonstração contribui para reforçar a importância dos lugares de origem no entendimento dos fluxos migratórios.

A partir dos dados e aspectos gerais evidenciados, em conjunto com as dinâmicas espaciais na Bolívia e em especial na cidade de El Alto, trabalhamos com a hipótese de que as migrações de bolivianos para a RMSP só começam a tomar forma, tal como conhecemos hoje, a partir dos anos 1980. Trata-se, como abordamos no próximo item, de uma migração direcionada à metrópole paulista, com perfil menos qualificado (com uma especialização laboral específica) e mais masculino.