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A cidade extensiva sobre La Paz: povoamento de El Alto

Capítulo 1. Bolivianos na RMSP: origens e composição de um fluxo urbano

1.2 El Alto na encruzilhada entre Bolívia e São Paulo

1.2.1 A cidade extensiva sobre La Paz: povoamento de El Alto

Para iniciar uma descrição de El Alto, partimos de duas definições que sintetizam alguns de seus principais elementos.

Rafael Archondo se refere a El Alto como uma “(…) ciudad nueva e ignorada, especie de gigantesco patio trasero de La Paz y una gran pista migracional de aterrizaje para las provincias del altiplano y el sur del país”30 (Archondo, 2000: 68).

Em outra definição-síntese, Arbona e Khol apresentam a cidade altenha como “one of the world’s most spectacular urban environments, can be described as an indigenous urban center overlooking a colonial city”31 (Arbona e Khol, 2004: 255).

A 4100 metros de altitude, El Alto – como o próprio nome diz – está localizada na planície que beira o cânion estreito e fundo, onde situa-se a cidade de La Paz (entre 3200 e 4100 metros de altitude), em meio à Cordilheira dos Andes. Dessa localização originam-se as alusões a um “mirante da cidade colonial” e também a de um “pátio traseiro de La Paz”. Por muito tempo, a cidade, ocupada em 1900 por fazendas e empresas privadas e públicas, funcionou como ponto de escoamento portransporte aéreo, férreo e rodoviário da produção da capital boliviana em plena expansão no início deste século (Arbona e Khol, 2004). Em

29 Quando perguntamos sobre o local de origem dos entrevistados na Bolívia, a resposta imediata dos que

vieram da cidade de El Alto, muitas vezes, era “La Paz”. Em muitos casos, repetimos a pergunta enfatizando a diferença entre as cidades – “La Paz, La Paz, ou La Paz, El Alto?”e então a resposta passava a ser El Alto.

30 Tradução livre:“(...) cidade nova e ignorada, uma espécie de gigantesco quintal de La Paz e uma grande

pista migracional de aterrizagem para as províncias do altiplano e do sul do país”.

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Tradução livre: “Um dos mais espetaculares entornos urbanos, pode ser descrito como um centro urbano indígena com vista para uma cidade colonial”.

20 1930, iniciou-se a operação das instalações da Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB)32 e de um pequeno aeroporto, marcando essa configuração da cidade.

Mapa 2. Bolívia e seus departamentos

Fonte: Souchaud, 2006.

Essa função de ponto de escoamento da produção de La Paz é também resultado da necessidade de contar com amplas planícies para a prática da aviação, o que não era possível na acidentada La Paz (Garfías e Mazurek, 2005), e pelo fato de El Alto ser a conexão física da capital com o exterior. Assim, por muito tempo, El Alto operou como uma extensão da cidade principal, sem a qual La Paz perderia as principais conexões com o entorno. Ou seja, apesar de “satélite”, El Alto manteve uma localização bastante privilegiada em relação à La Paz, uma dominação geográfica e funcional em relação à capital (cf. Mapa 3).

32 A YPFB nasce como a principal empresa petrolífera estatal na Bolívia em 1936. Após uma série de

acontecimentos e transformações políticas (cuja complexidade não abarcamos aqui), a empresa passa a ser controlada por capital privado, e somente em 2006, no âmbito do governo Evo Morales, volta a ser estatal (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (Ypfb), 2010).

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Mapa 3. Área Metropolitana de La Paz-El Alto

Fonte: Arbona e Khol (2004).

Na década de 1940, inicia-se em El Alto um processo de divisão de algumas primeiras fazendas originais em pequenos lotes não urbanizados, criando os bairros iniciais da cidade, como Villa Dolores, 12 de Octobre, 16 de Julio entre outros. Esse processo se acentua a partir de 1950, durante o processo de Reforma Agrária33 na Bolívia. Neste ano, há a desapropriação de uma grande fazenda localizada na região de La Ceja – até hoje uma parte importante da cidade por constituir-se como um ponto nodal das linhas férreas e rodoviárias, transformando-se mais tarde no ponto de irradiação do crescimento da cidade (Garfías e Mazurek, 2005).

Os primeiros habitantes de El Alto foram, principalmente, os trabalhadores rurais “libertados” das fazendas desapropriadas e migrantes de regiões próximas, que encontravam nos baixos preços de terra uma oportunidade para se assentar nas cercanias de La Paz. A origem dos ocupantes, como veremos, será elemento essencial para a configuração da cidade em termos sociais, econômicos e políticos.

33 De acordo com Baby-Collin (1998), a Reforma Agrária na Bolívia – conhecida como Revolução de 1952 –

foi marcada pelo fim do sistema tradicional de exploração das grandes haciendas rurais nas mãos de poderosos proprietários e redistribuição da terra em pequenas parcelas. A divisão excessiva da terra, sobretudo na parte ocidental do altiplano boliviano, em que a terra é pouco fértil e onde se concentrava a maioria da população nacional no período, gerou, no entanto, a aparição de minifúndios pequenos demais para abastecer as familias. Esse processo acabou gerando um forte êxodo rural para os centros urbanos mais próximos.

22 A condição de El Alto como periferia de La Paz manteve-se até o final da década de 1980, precisamente em 1986, quando da separação oficial das duas cidades, tornando El Alto um município autônomo (Flores Vásquez, Herbas Cuevas et al., 2007: 25) – autonomia que apenas reforçou uma separação territorial clara entre as duas cidades (como acontece muitas vezes em processos de emancipação municipal), divididas, também topograficamente, pela altura entre o vale e o alto do altiplano.

É também nesse momento que El Alto passa a apresentar um alto e rápido crescimento demográfico anual, sobretudo entre 1976 e 1986, alcançando a taxa de 9% (cf. Tabela 1). Esse fato foi importante também para a geografia populacional da Bolívia, uma vez que contribuiu para o equilíbrio (e também desequilíbrio) de forças entre as partes ocidental e oriental do país, marcadas por uma forte heterogeneidade geográfica, cultural e econômica.

A heterogeneidade do território boliviano

Do ponto de vista cultural, em primeiro lugar, é preciso dizer que a Bolívia, ao lado da Guatemala, é um dos países da América Latina com a maior proporção de indígenas na sua população total34. Em 2001, os indígenas representavam 50% da população do país, então divididos em 36 povos representados por grupos linguísticos. Considerando a classificação por autopertencimento, teríamos 62% da população que se autoidentifica com algum povo originário, de acordo com os dados do Censo 2001 (INE, 2006).

As diferentes etnias ou povos originários – dentre os quais predominam os grupos étnicos aimara, quíchua e guarani35 – são desigualmente distribuídos no espaço nacional boliviano. De acordo com Fusco e Souchaud (2009):

34 Esse dado está de acordo com a classificação que separa indígenas de não-indígenas em função da condição

etnolinguística da população (Celade, 2006). Existem diversos trabalhos que discutem a questão da contagem da população indígena por meio dos censos de população – questão bastante controversa – discutindo a classificação étnica nesse tipo de pesquisa (por grupos linguísticos, auto-pertencimento, etc.) como um modo de ver e entender a própria cultura. Para uma apresentação desse debate no caso latinoamericano cf., entre outros, Celade (2006), Schkolnik e Del Popolo (2005) e também Xavier (2008), sobre o caso específico do Censo boliviano. Entre as treze famílias linguísticas faladas no páis, os grupos quíchua, aimara, guarani, chiquitano e moxeno são os mais numerosos e que também podem ser divididos em três ou mais categorias étnicas cada um (Albó, 2005).

35 No que tange a língua aprendida na infância (um dos critérios utilizados pelo Censo para a definição de

indígena) 41% aprendeu a falar quíchua, 27% aimara e 1,2% guarani (para ficar entre as línguas/etnias/culturas principais) (Fusco e Souchaud: 2009).

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Os departamentos orientais (com exceção dos departamentos de Chuquisaca e Tarija, que têm um perfil complexo) são regiões baixas, onde a proporção de indígenas varia entre 12% e 22% da população. Nos departamentos ocidentais, nas regiões altas (andinas), a proporção de indígenas varia entre 60% e 81% da população total (Fusco e Souchaud, 2009: 37)36.

Há, pois, uma predominância indígena nas terras altas em detrimento das terras baixas.

No departamento de La Paz (do qual El Alto faz parte) existe uma forte predominância aimara, embora exista também a presença da cultura quíchua: juntas, compõem e caracterizam a região andina da Bolívia37. Ainda, de toda a população do departamento de La Paz (2.350.466), 77,5% da população censada se identifica com algum povo originário, sendo que, destes, 68,4% se identificam com a etnia aimara, além do fato de que 78% dos falantes da língua aimara moravam nesse departamento em 2001 (Fusco e Souchaud: 2009). A composição aimara do município de El Alto, é será reforçada pelo fator migração (origem dos migrantes), como mostramos adiante.

A disposição das culturas/etnias na Bolívia espelha, de certa forma, a separação geográfica clara entre as terras altas e montanhosas andinas (na parte ocidental do país), e as baixas (planícies amazônicas); intermediadas pela zona subandina, região localizada entre o altiplano e os llanos (planícies) orientais, que compreende os vales e os yungas (vales quentes em quíchua) (conf. Gráfico 1).

A oposição cultural e geográfica entre esses dois territórios também possui um forte cunho político e econômico. Historicamente, a região andina foi a parte mais ocupada do território boliviano e constituiu, por muito tempo, o principal centro administrativo e econômico do país38. O modelo de alta concentração espacial na região andina só começa a

36 Uma versão ampliada desse mesmo artigo será publicada na Revista Anpocs. 37

Verifica-se uma concentração muito maior da etnia/ língua/cultura quíchua nos departamentos centrais, nos

llanos, como Cochabamba e Potosí – ali, 83% da população se identificam com algum povo originário, sendo

que, destes, 77% com a etnia quíchua.

38 A centralidade do território andino guarda relação com a organização territorial muito antes da colonização,

já que esse espaço já tinha sido integrado e estruturado durante o império Inca, uma civilização baseada, prioritariamente, em sistemas urbanos (Souchaud e Baeninger, 2008). Por oposição, a hoje região oriental da Bolívia foi ocupada muito posteriormente e não foi marcada pelo “controle e expansão territorial duradouros” (Idem: 273), como ocorreu na região andina. Esse processo, que nos ajuda a entender a separação entre esses dois territórios, de acordo com Souchaud e Baeninger, pode ser entendido pela chave da presença/ausência de cidades nessas duas regiões. No período colonial, no entanto, formaram-se as principais cidades bolivianas,

24 ser revertido a partir dos anos 1950, momento em que há uma reorientação dos equilíbrios de forças entre as várias regiões do país a partir de uma série de medidas políticas e econômicas – como a já citada Reforma Agrária em 1952, mas, sobretudo, uma clara reorientação dos recursos financeiros do Estado em direção às planícies orientais a favor do desenvolvimento agrícola, industrial e extrativo (Ledo García, 2000).

Gráfico 1. Seção transversal Leste-Oeste do perfil topográfico da Bolívia

Fonte: TeijeiroV. (2007:86).

De acordo com Ledo García (2000), em função desses acontecimentos, o eixo articulador das cidades bolivianas, antes baseado em La Paz-Oruro-Cochabamba, passaria a se localizar entre La Paz-Cochabamba-Santa Cruz (sendo esta última a principal cidade da parte oriental do país).

Segundo Souchaud e Baeninger:

A transferência das centralidades, ou pelo menos o reequilíbrio a favor do oriente, se fez sem transferência dos poderes políticos. Desse modo, hoje, o oriente, liderado por Santa Cruz de la Sierra, contesta o histórico predomínio político de La Paz e, de forma mais geral, da região andina, sobre o país, pedindo a autonomia de departamentos orientais (Souchaud e Baeninger, 2008:273).

centralizadas em torno da produção da prata, que foi por muito tempo o principal produto de exportação na Bolívia. Para uma visão mais completa do processo de urbanização do país, cf. Ledo García (2000).

25 Foi assim que, nas últimas décadas, Santa Cruz foi experimentando uma intensa transformação, passando de aldeia colonial à capital econômica da Bolívia, tendo desenvolvido a agroindústria, as minas e os hidrocarbonetos (Domenach, 2007: 22).

Cultural, política e economicamente vê-se estruturando um forte antagonismo entre oriente e ocidente39, sendo que El Alto e Santa Cruz de la Sierra representam, hoje, os maiores expoentes, em cada um dos “lados” bolivianos. Entre os dois últimos censos (1992 e 2001), as duas cidades foram as únicas que apresentaram uma taxa de crescimento médio anual de 5% anuais (INE, 2003a). El Alto é a cidade do altiplano que mais cresceu nesse período, apesar de ainda não ter superado Santa Cruz (em 2001 por volta de 1.135.526 habitantes), com um crescimento fortemente relacionado com as migrações com origem nos departamentos do altiplano40. Tampouco não é, ainda, mais populosa que La Paz, embora, segundo as projeções populacionais, em 2010 é provável que El Alto já tenha superado a capital boliviana (que cresce a apenas 1% ao ano), sendo esperado nessa contagem quase um milhão de habitantes vivendo na cidade altenha (cf. Tabela 1).

Se considerarmos, no entanto, a aglomeração urbana La Paz - El Alto, vemos que as duas cidades juntas constituem o maior pólo urbano do país, acumulando 1.446.935 habitantes (Garfías e Mazurek, 2005: 25)41. De acordo com Garfías e Mazurek:

También si se considera las funciones urbanas, no hay duda que la aglomeración constituya el primer polo nacional: función capital administrativa de La Paz, función industrial y comercial de El Alto, ubicación estratégica en la red de transporte internacional (Perú, Chile y el mar, proyecto de red transoceánica hacia Chile y Brasil), función cultural, como un símbolo indígena42 (Garfías e Mazurek, 2005: 23).

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Uma das expressões desse antagonismo está no uso das expressões collas e cambas. De acordo com Blanchard (2005), a população das terras baixas bolivianas – que se considera uma população marcada por uma “mestissagem branca” e dominada pelos europeus – denominam os andinos (das terras altas) de collas, enquanto que os andinos, chamam de os habitantes das terras baixas (e mais precisamente os habitantes da cidade de Santa Cruz) de cambas, denominação que possui dos dois lados um apelo pejorativo. A autora acredita que a origem mesma dos termos, que pode ser fonte de muitos debates, se relaciona com a dualidade primeira do território boliviano e as especificidades históricas das construções das identidades regionais na Bolívia.

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De acordo com Souchaud e Baeninger (2008:273), “Em 2001, 26,7% dos habitantes de Santa Cruz eram nascidos em outro departamento”. Os mesmos autores indicam que “Ao se considerar o local de nascimento dos residentes, em 2001, no departamento de Santa Cruz, verifica-se que 9,1% (182.765) nasceram nos departamentos andinos de La Paz, Potosí e Oruro” (Souchaud e Baeninger, 2008: 274).

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Os dados de Arbona e Khol apresentados na Tabela 1 são um pouco diferentes, já que esses autores consideram o total populacional da área metropolitana La Paz-El Alto, de 1.373.251 habitantes.

42 Tradução livre: “Também se considerada as funções urbanas, não há duvida de que a aglomeração constitua

o primeiro pólo nacional: função de capital administrativa de La Paz, função industrial e comercial de El Alto, localização estratégica na rede de transporte internacional (Peru, Chile, e o mar, projeto de rede transoceânica em direção ao Chile e Brasil), função como um símbolo indígena”.

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Tabela 1. População de El Alto e La Paz, 1950-2000

La Paz El Alto Área Metropolitana

Ano População Taxa de Crescimento (% a.a) Porcentagem do total População Taxa de Crescimento (% a.a) Porcentagem do total Total Taxa de Crescimento (% a.a) 1950 321.063 - 97 11.000 - 3 332.063 - 1960 363.000 1,3 92 30.000 10,5 8 393.000 1,7 1970 563.020 4,5 90 60.000 7,2 10 623.020 4,7 1976 635.283 2,4 87 95.434 8 13 730.717 2,7 1985 650.000 0,3 74 223.239 9,9 26 873.239 2,3 1992 713.378 1,2 64 405.492 8,9 36 1.118.870 3,6 2001 723.293 0,2 53 649.958 4,8 47 1.373.251 2,1 2010 732.000 0,2 43 962.097 4 57 1.700.097 2,7

Fonte: Arbona e Khol, 2004: 258.