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Cidade informal, cidade de luta e sua constituição política e produtiva

Capítulo 1. Bolivianos na RMSP: origens e composição de um fluxo urbano

1.2 El Alto na encruzilhada entre Bolívia e São Paulo

1.2.3 Cidade informal, cidade de luta e sua constituição política e produtiva

O grande deslocamento de ex-mineiros em direção a El Alto e a presença de uma forte cultura indígena aimara na cidade contribuíram, também, para a criação de uma intensa tradição sindicalista e política no município. De acordo com Arbona (2006:52):

(…) el ser o identificarse como indígena en El Alto conlleva a múltiples negociaciones entre memorias históricas, expresiones culturales, y formas de construcción y de participación en espacios políticos. Estas negociaciones también se entrelazan con memorias y expresiones de los emigrantes de las zonas mineras (…). Son estos tres ejes: formas de identificaciones minera e indígena en un contexto de precariedad laboral- social que han alimentado la organización de entidades político-sociales49.

48 Sobre a vestimenta, a autora cita a tradição indumentária das cholas bolivianas – vestidas com suas saias

coloridas justapostas umas sobre as outras para se proteger do frio, chales de lã de lhama ou alpaca, e o chapéu de feltro colocado sobre longos cabelos trançados. Sobre as crenças religiosas, há um forte sincretismo entre o catolicismo e as religiões populares tradicionais e cita a devoção à Pachamama – deusa aimara da terra. Para um aprofundamento da questão religiosa em El Alto e principalmente a atual e forte presença da Igreja Evangélica na cidade, cf. Guaygua Ch. e Castillo H. (2008). Em relação aos hábitos alimentares, a autora fala do uso de ingredientes típicos como o chuño, um tipo de batata que se conserva desidratada que é parte importante da alimentação cotidiana nessa cultura. No capítulo 2 deste estudo falamos desse e de outros ingredientes que são encontrados nas feiras de bolivianos na RMSP.

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Tradução livre: Terra de migrantes aimaras e de expressao bilingue (aymara-castellano), espaço urbano de práticas culturais nativas e ao mesmo tempo de adoção de costumes ocidentais, cenário que acolhe uma cultura religiosa sincrética inspirada em um deus exógeno e na pachamama e acachilas protetores andinos. Uma cidade enfeitada de saias, mantas e chapéus como indumentária predominate das mulheres migrantes e de vestimentas de ‘chotas’ e ‘birlochas’ como característica central das filhas de migrantes em processo de despregamento e ensaio de uma nova identidade”.

33 A forte efervescência cultural e política, aliada à sua localização como ponto de convergência de meios de comunicação que unem a região de La Paz ao resto do mundo, fazem de El Alto uma cidade estratégica no espaço político nacional (Arbona, 2006). Para Germán Guaygua, essas características:

(…) han contribuido a definir las estructuras de movilización social de sus pobladores, en las que se puede distinguir dos componentes: una estructura barrial y gremial para la rebelión y unos marcos de construcción del discurso de movilización basados en la identidad indígena, de lo que resulta una cultura política que combina elementos del sindicalismo y formas tradicionales de organización territorial-política50 (Guaygua, S/d: 3).

Os objetivos das lutas urbanas51 estão quase sempre relacionados à conquista de melhores condições de vida e infraestrutura, já que em El Alto somente 7% da população têm suas necessidades básicas satisfeitas. Essa condição espelha, de certa forma, a incapacidade do governo municipal de criar condições físicas e estruturais mínimas diante do tamanho crescimento urbano e populacional da cidade (Arbona e Khol, 2004: 260). A cidade mantém um padrão de ocupação disperso e pouco denso – espalhado em 153 km2 de uma urbanização extensiva e homogênea, e à primeira vista, são dificilmente identificáveis centralidades. A baixa densidade de 4.227 habitantes/km2, refletida no espalhamento das construções da cidade, contribui para uma sensação de homogeneidade, que se completa com a horizontalidade das casas e com o fato de que é possível andar por um bom tempo em uma rua altenha sem encontrar pessoa caminhando ou portão aberto. Se nas partes mais centrais e consolidadas da cidade prevalecem casas de alvenaria sem revestimento, em geral, a paisagem é da cor bege do tijolo de adobe52. O azul brilhante de

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Tradução livre: “(...) contribuíram para definir as estruturas de mobilização social de seus habitantes, das quais se podem distinguir dois componentes: uma estrutura de bairro e de grêmios para a rebelião e marcos de construção do discurso de mobilização baseados na identidade indígena, do que resulta uma cultura política que combina elementos do sindicalismo e formas tradicionais de organização territorial-política”.

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El Alto foi o epicentro de diversas manifestações políticas e teve um papel importante nas Jornadas de

Octubre (Jornadas de Outubro), em torno da agenda de nacionalização dos hidrocarbonetos e a crição de uma

Assembleia Constituinte por meio da Federação de Juntas de Vizinhos (FEJUVE) da cidade. Nesse período, a cidade também foi testemunha das primeiras marchas e bloqueios em reação a uma resolução municipal para estabelecer um sistema de cadastro para regular as transações de bens da população, que encontrou resistência da população que entendeu se tratar de uma estratégia de tirar dinheiro dos pobres (Arbona, 2006). As mobilizações fizeram um bloqueio nas principais vias de El Alto e La Paz durante dois dias e resultaram na revogação da Lei.

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O uso do adobe pode ser considerado uma reminiscência das construções tradicionais rurais andinas (Souchaud e Martin, 2007). Além de ser barato, o adobe é uma boa solução em termos construtivos por

34 janelas chama a atenção como um dos únicos detalhes vistosos nas construções, o que nos remete, por instantes, à ideia de conforto urbano.

Atualmente, trata-se de um município quase exclusivamente urbano (99,6% da população de El Alto vivia em território urbano em 2001) que chama a atenção pela dimensão e extensão da fragilidade e da pobreza, uniformemente distribuídas. O município é composto por oito distritos que possuem características distintas em termos de extensão territorial, acesso a serviços, infra-estrutura, qualidade de vida, tipo de produção, origem cultural, etc., sendo presente a divisão, em termos de desenvolvimento, entre as zonas norte e sul do município, separadas pelo aeroporto. Mesmo diante dessa separação, não há em nenhum dos distritos uma homogeneidade em relação aos indicadores de saúde, educação e emprego, entre outros, o que faz com que em nenhum deles possa existir a “necesaria correlación y simbiosis entre los diferentes elementos que hacen al desarollo”53 (Durán et

al, 2007:12). Existem, portanto, poucos distritos ligeiramente mais consolidados54, que não chegam a constituir uma centralidade regional (pelo menos aos moldes da maioria das cidades bolivianas).

El Alto, muitas vezes descrita na literatura como a “cidade-problema” ou “cidade em emergência” da Bolívia (Indaburu Quintana, 2004), possui distritos cuja qualidade de vida, em termos de acesso a equipamentos públicos, é mais precária do que a da zona rural boliviana, bastante empobrecida. Somente 48 nascimentos de cada 100, por exemplo, são atendidos por médicos e em um estabelecimento de saúde (Flores Vásquez, Herbas Cuevas

et al., 2007). Pouquíssimos habitantes têm a segurança jurídica da posse de suas casas,

sendo que somente 63,4% delas têm sanitários (quando existem, muitas vezes são coletivos) e 34,9% possuem acesso à água potável (Durán Chuquimia, Arias Díaz et al., 2007). Esses fatores fazem com que de cada 100 casas, só 45 sejam adequadas55 (Idem).

proteger as casas do frio (Baby-Collin, 1998). Em relação à La Paz (protegida por sua localização geográfica deprimida), El Alto é bastante fria, sendo que a temperatura média anual é de 8°C (Idem).

53 Tradução livre: “necessária correlação e simbiose entre dois diferentes elementos que compõe o

desenvolvimento”.

54 Entre eles estão os bairros de Villa Dolores, Ciudad Satelite, 1 de Maio e Villa Adela, localizados em uma

região mais central, logo abaixo do aeroporto.

55 Por moradia adequada os autores entendem “viviendas que cuentan con piso de machihembre, parquet y/o

alfombra; paredes de ladrillo, concreto u hormigón; tienen sanitario, agua potable por cañería dentro de la vivienda así como energía eléctrica” (Durán et al, 2007:4). Tradução livre: “casas que contam com piso de

machihembre, taco e/ou carpete de madeira; paredes de tijolos, concreto ou cimento; possuem banheiro, água

35 Além disso, 80% das casas do município foram sendo autoconstruídas, ao longo de muitos anos, à margem da dotação estatal e do mercado imobiliário, contando com a ajuda financeira familiar (Durán Chuquimia, Arias Díaz et al., 2007). De maneira geral, podemos observar dois padrões de construção na cidade: casas de apenas um piso, feitas de adobe, e habitações de mais de um andar (em geral dois ou três), de alvenaria e sem acabamento.

Quando dispõe de recursos, o altenho investe em sua moradia compondo misturas arquitetônicas diversas, com influências de padrões bastante distantes do contexto cultural da cidade, como coberturas de telhados tipo suíças, apropriadas para a neve num estilo que em nada lembraria uma cidade pobre da América Latina. Guaygua (2008) associa tais referências à migração internacional: a maior parte dos recursos para o incremento da moradia viria de remessas provenientes de trabalho fora do país, dando lugar ao que poderia ser denominada “arquitetura de remessas”, originando distinções intraterritoriais a partir de recursos e linguagens vindas de fora, representando riqueza e status adquiridos apenas mediante a emigração.

Grande parte das construções da cidade é de “moradias produtivas” (Durán Chuquimia, Arias Díaz et al., 2007), que sustentam uma economia predominantemente informal e assentada no trabalho familiar, reminiscência da origem rural aimara, em que a produção e as relações de parentesco estão intimamente ligadas56. Nessas moradias produtivas costumam funcionar microempresas familiares (de um a quatro trabalhadores) que amparam a maior parte da produção altenha: 70% da população ocupada trabalham no setor familiar (50%) ou semiempresarial (20%).

Em El Alto não houve, como vimos, crescimento relacionado à industrialização (Rojas e Guaygua, 2002), sendo que a base da economia é o trabalho informal: entre 1992 e 2001, a participação da PEA no trabalho informal cresceu 162% em El Alto (Arbona e Khol, 2004). Essa economia, no entanto, não consegue absorver a população economicamente ativa do município, predominantemente jovem. De acordo com Rojas e Guaygua (2002), entre 1998 e 2000:

(…) la población en edad de trabajar (PET) de El Alto se incrementó en un 130% en virtud del crecimiento vegetativo poblacional y el arribo

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Voltaremos a questão das lógicas de parentesco no capítulo 3. Para uma leitura aprofundada sobre esses assunto, cf. Spedding (2008).

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permanente de flujos migracionales a esta ciudad, teniendo como rasgo significativo una mayor participación de la población joven57 (Rojas e Guaygua, 2002: 13).

A economia informal de El Alto gira em torno, em grande parte, da produção manufatureira, o que faz com que o município “houses most of the manufacturing industries in the Bolivian highlands”58(Arbona e Khol, 2004: 261). Em 2000, ¼ da população ocupada da cidade ganhava a vida nesse setor, em que a participação das unidades familiares e semiempresariais é decisiva (Rojas e Guaygua, 2002).

A produção em pequenas fábricas familiares ou semiempresariais (onde é feita 90% da produção industrial geral da cidade) apresenta uma concentração importante na área de confecção e costura – fator interessante para pensarmos uma das conexões El Alto-São Paulo. De acordo com dados de Durán Chuquimia, Arias Díaz et al (2007), se juntarmos as categorias “fabricação de produtos têxteis” e “fabricação de prendas de vestir e tingimento de peles”, temos que 40% da produção industrial de El Alto estão centrados na produção têxtil. E, ainda, segundo um relatório da Camara de Indústrias do departamento de La Paz:

La ciudad de El Alto cuenta con 5.045 establecimientos industriales, que emplean a 16.959 trabajadores. La mayoría de los establecimientos productivos está dedicada a la fabricación de prendas de vestir, entre las cuales se encuentran tejidos de punto y prendas de materiales sintéticos combinadas con fibras naturales. De las 1546 industrias en este rubro, sólo 1 empresa está clasificada como gran industria y 58 como pequeñas industrias, el resto de los establecimientos está formado por microindustrias59 (Andrade, 2005: 13).

57 Tradução livre: “a população de El Alto em idade de trabalhar aumentou 130% em virtude do crescimento

vegetativo populacional e o aumento permanente de fluxos migratórios para essa cidade, tendo como traço significativo uma maior participação da população jovem”.

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Tradução livre: “a cidade de El Alto conta com 5.045 estabelecimentos industrais, que empregam 16.959 trabalhadores. A maioria dos estabelecimentos produtivos dedica-se à produçao de roupas entre as quais se encontram malhas e peças de materiais sintéticos combinadas com fibras naturais. Das 1546 indústrias deste ramo, apenas uma está qualificada como grande indústria e 58 como pequenas indústrias, o resto dos estabelecimentos são considerados micro-indústrias”.

59 Os autores do texto não definem o que são grandes, médias, pequenas e micro indústrias. Para o caso

brasileiro, com base em Melchior (2010, site Jusnavigandi) e considerando um critério quantitativo, as indústrias consideradas micro empregam de 1 a 10 empregados e lucram até RS400 mil anuais; as indústrias pequenas possuem de 11 a 40 empregados e lucram até R$3,5 milhões e as médias indústrias teriam de 41 a 200 funcionários, lucrando até R$ 20 milhões anuais.

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