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Casa Verde Alta: ocupação boliviana num espaço intermediário

Capítulo 2. Padrões de distribuição socioterritorial dos bolivianos na RMSP

2.3 Principais padrões observados de inserção socioterritorial dos bolivianos na RMSP

2.3.3 Casa Verde Alta: ocupação boliviana num espaço intermediário

A região denominada Casa Verde Alta, embora faça parte do distrito Casa Verde, localiza-se na divisa com o distrito de Cachoeirinha (ao norte). Ambos fazem parte da Subprefeitura da Casa Verde/Cachoeirinha/Limão.

O distrito Casa Verde faz fronteira com Barra Funda (ao sul), Limão (a oeste) e Mandaqui e Santana (ao leste). Localiza-se na zona Norte da cidade de São Paulo, região que, até o início do século XX, ficou separada do resto da cidade pelo limite imposto pelo Tietê, razão pela qual foi chamada por muito tempo como as “terras do além-Tietê”, o que fez com que seu processo de urbanização fosse desacelerado. Transpostas as barreiras físicas que impediam sua incorporação à cidade – principalmente após 1930, durante a gestão do então prefeito Prestes Maia, com as obras de retificação do rio, de construção de avenidas marginais e de vinte pontes de concreto fazendo a ligação com o centro –, essa

128 zona, até então bastante rural, começa a se desenvolver também com a ampliação da rede de transportes e com a construção de loteamentos populares (Canaverde, 2007).

O bairro, que se desmembra do então núcleo principal Santana, torna-se, nesse período (1940), um importante reduto negro, com a compra, por parte da Frente Negra Brasileira, de terrenos em lotemamentos recém-abertos nas periferias da cidade para fundar núcleos negros formados por casas próprias (Rolnik, 2007[1989]).

Servindo por muito tempo como bairro-dormitório daqueles que iam trabalhar no centro, a zona Norte manteve-se como bairro popular, embora, ao longo dos anos, tenham se delineado subcentros no seu interior (Canaverde, 2007). A urbanização do bairro começou a se instensificar por volta da década de 1950, por meio da política de troca de infraestrutura por votos, inaugurada por políticos paulistas como Jânio Quadros, o que resultou na urbanização do primeiro anel da periferia de São Paulo (Caldeira, 2000). Assim, faz parte, juntamente com Vila Matilde e outros bairros da zona Leste e Norte, da chamada primeira frente de expansão periférica baseada na compra de lotes populares para autoconstrução.

Mapa 14. Localização da Casa Verde Alta, RMSP

Hoje, a Casa Verde pode ser considerada um distrito de classe média baixa, em área de crescimento lento ou sem crescimento (Marques e Torres, 2005): entre 1991 e 2004, esse distrito apresentou taxa de crescimento médio anual negativa (-1,4%), passando de 96.040 a 79.578 habitantes nesse período (cf. Anexo 4). Já o distrito vizinho Cachoerinha, com o

129 qual a área da Casa Verde Alta faz fronteira, cresceu 1,5% neste mesmo espaço de tempo. A zona parece mesclar, assim, características gerais desses dois distritos, tanto em relação ao crescimento populacional como em relação a às formas de morar, entre outros aspectos.

Nossa observação de campo ficou circunscrita à extensão da Rua Zilda, entre a Avenida Eng. Caetano Alvares de Campos e Rua Benedetto Bonfigli, e algumas ruas que saem desta rua principal. A principal característica dessa área é a mistura, o uso misto do espaço urbano. Entre fábricas, favelas, casas de classe-média, comércios grande e pequenos – de bancos a botecos ou barraquinha de “geladinho” no portão de casa – encontram-se as oficinas e as residências de muitos bolivianos que habitam essa parte específica do bairro.

Não é preciso investigar muito profundamente a região para sentir a presença dos bolivianos. Em horários distintos dos dias da semana – voltamos ali em vários momentos diferentes – vê-se uma circulação intensa dos mesmos pelas ruas: homens e mulheres, saindo para ir ao supermercado, levando os filhos à escola, comprando um remédio na farmácia, indo ao posto de saúde, tomando sorvete na doceria, passando numa loja de “1,99”, numa relação bastante cotidiana com o lugar. Evidentemente, não são somente os bolivianos que circulam, mas, sem dúvida, compõem a cena de amplo movimento da rua. No horário de almoço, por exemplo, a Zilda fica lotada de pessoas e nas ruas adjacentes vemos os empregados das fábricas ou de pequenas firmas sentados na beirada da calçada, as lojas movimentadas, um número grande de carros circulando.

A Zilda é uma rua predominantemente comercial e mescla lojas populares (padarias, farmácias, doces e salgados), caseiras (pequenos bares e lojinhas improvisados nas portas das casas) e também mais “sofisticadas” (como a ponta de estoque de uma marca famosa de roupas), bancos, óticas, supermercados de grandes redes, etc. Em sua parte mais baixa (região próxima à Av. Eng. Caetano) – que é a parte mais movimentada – existe também uma concentração de galpões e fábricas de médio porte (de meias, vidros, embalagens). A diversidade na ocupação da rua e seu entorno se revela também pela existência de uma editora, várias igrejas (em grande parte evangélicas), bares, papelaria, imobiliárias, lojas de concerto (de carros, de eletrodomésticos, de máquinas de costura).

Quanto mais nos afastamos da avenida e mais subimos a rua, mais residencial fica a Zilda e seu entorno, ainda que entre as casas possamos ver diversos equipamentos públicos (escolas, posto de saúde e mais comércios). As casas da região se dividem entre novas –

130 algumas mais pobres como cortiços e auto-construções precárias, em geral em loteamentos provavelmente irregulares pelo tipo de ocupação) e outras mais ricas (sobrados bem pintados com grandes portões de metal que “vedam” a frente das casas, carros na garagem, em lotes bem definidos e padronizados) – e antigas (casas térreas, pequenas, de parede caiada, que não usam todo o espaço do terreno, com jardim). Assim, o cenário mistura um padrão de classe média com de baixa renda. Nas áreas mais degradadas e, especificamente em um cruzamento de ruas – que faz a forma de uma gota (cf. Mapa 15) – essa diferença em relação ao tipo das construções fica mais evidente: são aparentemente loteamentos irregulares, construídos em tempos diferentes, com várias casas em um mesmo lote.

Esse local, que é chamado pelos moradores por “ferradura” – fazendo jus ao entrocamento de ruas onde se localiza – é conhecido pelos moradores como a área mais “perigosa” do bairro. Nos foi apresentado, nas primeiras visitas, como um lugar de concentração de residências de bolivianos (“tá cheio de bolivianos ali”, relatou um informante). Mais tarde, pudemos ver que os bolivianos moradores da Casa Verde Alta não se concentram somente nesse espaço, o que mostramos adiante, mas essa indicação dos moradores revela, em parte a relação que estabelecem com esses “novos” (talvez não tão novos) habitantes. Quem primeiro me levou até a “ferradura”, mas especificamente à casa de uma família boliviana com que fizemos uma entrevista, foi o assistente de uma das igrejas evangélicas locais morador e amigo dessa família.

Nessa primeira conversa, a boliviana oriunda de El Alto, disse que já vivia no bairro há dez anos, tem três filhos e costura em casa, com o marido, para um patrão coreano – uma história típica. Ao longo do relato em torno de suas atividade cotidianas, fica claro que mantém com esse espaço uma forte relação de vizinhança baseada tanto na proximidade e na identificação com o lugar descrito como “tranquilo”, “agradável”, onde se “sente em casa”, como na presença de vários companheiros bolivianos de bairro. Durante a conversa, foi me apontando as casas vizinhas – assim como sua casa, localizadas bem no meio da “gota” – dizendo que em várias delas habitam amigos também bolivianos. De fato pudemos ver que algumas pessoas com o fenótipo boliviano saíam e entravam das casas ao lado da sua. A entrevistada, que na ocasião deste estudo pagava aluguel, disse que comprou um terreno em Itaquaquecetuba (chamado por ela de “Itaquá”), onde também mora uma irmã de seu marido, mas ainda não se mudou para lá por falta de recursos necessários para

131 construir a casa, e sobretudo, porque acha “que vai ser difícil sair daqui” (onde mora) e perder as facilidades e confortos do bairro. Segundo ela, é possível “fazer tudo no bairro”, que possui todos os tipos de serviços necessários para sua organização diária: escola dos filhos, que a ela se digirem à pé, supermercado, pontos de ônibus, posto de saúde.

A relação forte com o espaço também se mostrou pautada, em grande medida, pela relação que essa moradora estabelece com a Igreja Evangélica. Nos encontros religiosos fez amigos e também pode conhecer o bairro durante as “evangelizações” (nos seus termos). Apesar de existir na Casa Verde Alta uma “igreja latina” que promove cultos evangélicos em espanhol voltado aos fiéis bolivianos, a relação forte com a Igreja não parece, no entanto, uma particularidade dessa entrevistada, nem tampouco dos bolivianos, mas dos moradores do bairro como um todo. Isso se percebe, por exemplo, pelo grande número de igrejas localizadas somente na Rua Zilda: são ao menos quatro em poucas quadras.

Além da conhecida Igreja Latina, existem outros espaços no bairro que também têm essa “vocação especializada” ao público boliviano. Nenhum deles, no entanto, é de fácil reconhecimento ou de acesso direto. Localizados em sobrelojas, pequenas casas, somente com a ajuda de entrevistados pudemos reconhecê-los e, mais tarde, perceber que não eram tão escondidos como à primeira vista.

Na Zilda funcionam dois restaurantes bolivianos; existem duas lojas de linhas (uma na própria rua, outra numa travessa) cujos proprietários e também os consumidores são em boa parte bolivianos; algumas oficinas de costura, embora bem mais difíceis de serem identificadas, pois são também resdiências (soubemos de duas por meio do vendedor da loja de sapatos, porque ficam bem em frente ao estabelecimento). Nas redondezas da rua Zilda foi possível identificar também pelo menos uma pequena oficina de costura que aparentemente é de propriedade de brasileiros. Alguns espaços só são ativados no final de semana: em um cabelereiro da rua, por exemplo, aos sábados um barbeiro boliviano aluga uma das cadeiras do estabelecimento e oferece cortes de cabelo para seus conterrâneos.

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Mapa 15. Área de estudo, Casa Verde Alta

Um dos comércios mais importantes entre eles localiza-se numa sobreloja, na rua Zilda, onde além de linhas se vende toda sorte de produtos de origem boliviana (pães, chás, pomadas, batata desidratada, etc.). Trata-se de um lugar escuro, ao qual se tem acesso por uma escada (mas, para entrar, é necessário antes tocar o timbre e obter autorização, que é, no entanto, bastante facilitada). Ao som de uma TV que passava uma programação da Bolívia, conversamos com a vendedora da loja que substituía temporariamente a proprietária, sua irmã. No fundo da loja, funciona uma oficina de costura onde trabalham os membros da família.

Na outra loja de linhas existe o acesso pela rua, mas existe um portão de ferro trancado que separa a parte de dentro da loja da calçada. Não conseguimos conversar muito tempo com a vendedora, principalmente porque não estávamos em busca de linhas, mas a entrada na loja não foi dificultada. Se a presença de duas lojas de linha e a já sabida e verificada ocupação dos bolivianos na confecção de roupas nos faria pensar que a casa que oferece consertos de máquinas de costura (logo ao lado de uma das lojas), seria de

133 propriedade de um boliviano, logo nos enganamos. O atendente, especializado em vários tipos de máquinas de costura disse, no entanto, que têm muitos clientes bolivianos, embora não a maioria. Bem próxima à mecânica, pudemos perceber a presença de uma loja recém- inaugurada que vendia máquinas de costurar novas – na qual, assim como na loja de assistência mecânica, não eram bolivianos a maioria dos seus compradores. Nas últimas vezes que estivemos no local, no entanto, a loja, que era uma filial, havia fechado.

No reconhecimento da área nos dirigimos à UBS Casa Verde Alta, onde, de acordo com uma pesquisa preliminar em andamento155 estão cadastradas, atualmente, 200 famílias bolivianas no Programa de Saúde da Família. Todas as vezes que pudemos entrar no posto encontramos pelo menos uma boliviana (em geral são as mulheres quem mais frequentam) esperando atendimento. O posto, que por fora não tem nenhuma placa ou nenhum sinal que indique sua função, por dentro se mostra bastante acolhedor. Uma conversa com dois agentes de saúde desta unidade, confirma a presença maçica de bolivianos no bairro já que muitas das casas atendidas são de famílias bolivianas156.

Um dos nossos principais informantes, corretor de uma das três imobiliárias presentes na Zilda e que aluga e vende casas para bolivianos, revela que possui um cadastro das famílias bolivianas que o procuram, o que indica que são clientes com características específicas. Segundo ele, o cadastro é feito porque os bolivianos “lucram rapidamente, juntam dinheiro mais rápido, são mais determinados”, o que faz com que já possa ir separando casas para vendê-los, enquanto “juntam o dinheiro necessário”.

Este informante acredita que grande parte dos migrantes moram em casas multifamiliares em que a função de moradia se confunde com o local de produção de costura de roupas, mas também defende que alguns – em geral os que estão há mais tempo no local – procuram casas “somente pra morar”, apresentando melhores condições de vida e sendo mais exigentes na escolha de suas residências. Esse fato nos mostra a importância do fator tempo na inserção dos migrantes na cidade: nesse caso, a acumulação do tempo de estadia pode revelar uma acumulação de capital (não somente em dinheiro) que permite

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Conforme relatamos no Apêndice metodológico, estamos realizando uma pesquisa (ainda em andamento) para diagnosticar o número de famílias bolivianas cadastradas nas UBSs que fazem parte do Programa de Saúde da Família. O número aqui apresentado, relativo à Unidade Casa Verde Alta faz parte dessa coleta e refere-se ao número de famílias bolivianas cadastradas em setembro de 2009.

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No capítulo 3 apresentamos uma seção que trata especificamente da relação dos bolivianos com o sistema público de saúde.

134 uma inserção diferenciada na cidade. No entanto, as casas alugadas para os bolivianos – que segundo ele estão localizadas nos dois lados da Rua Zilda – não diferem das dos outros clientes.

A ideia desse informante de que “eles estão tomando conta da rua” é partilhada por outros moradores e comerciantes do bairro. Nas primeiras entrevistas, todos se referem aos bolivianos de maneira pejorativa, mas, quando se sentem mais livres para conversar, costumam mudar as impressões a respeito dos seus vizinhos. De “sujos” e “escravos” (usando a categoria dos entrevistados), os bolivianos também passaram a ser vistos como “bons pagadores” (no caso de uma imobiliária), “honestos” (na farmácia) e “boa gente” (vizinhos), o que revela que a aproximação entre uns e outros pode ir se consolidando e ultrapassando as barreiras preconceituosas iniciais.

Aos sábados e domingos, o cenário da Rua Zilda passa por uma transformação: os bolivianos deixam de ser uns entre vários transeuntes e passam a dominar a cena. A Rua Zilda fica lotada de barraquinhas vendendo as roupas que costuram, algumas comidas típicas, CDs e toda a sorte de produtos que costumamos encontrar em camelôs comuns.

A sensação geral das idas a este local é a de que os bolivianos mantêm uma relação cotidiana e boa com o espaço, o que nos faz perceber uma integração, inserção. Aparentemente, não faz pouco tempo que se encontram ali: nos percursos pela área pudemos observar que em outras regiões da Casa Verde (próximos ao bairro de Santana, por exemplo) existem alguns lugares que há mais de quinze anos recebem bolivianos, como mostramos anteriormente. Mas é evidente que mais bolivianos estão chegando no bairro. Esse espaço da zona Norte nos parece um lugar intermediário da cidade – não é periferia e tampouco centro – mas, aparentemente, guarda características, ao mesmo tempo, de um lugar antigo e novo em termos dessa ocupação: lugar consolidado e frente de expansão, talvez, para outros lugares mais distantes da cidade.

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2.4 Da heterogeneidade espacial à desconstrução de visões homogêneas sobre os