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Capítulo 1. Bolivianos na RMSP: origens e composição de um fluxo urbano

1.2 El Alto na encruzilhada entre Bolívia e São Paulo

1.2.2 Cidade migrante, cidade aimara

Da dupla que forma o conglomerado metropolitano La Paz-El Alto, como vimos, El Alto puxa o crescimento populacional, principalmente a partir da segunda metade da década de 1980. Esse crescimento acelerado esteve relacionado, principalmente, a processos migratórios, já que todos os anos chegam ali cerca de 30 mil pessoas (Flores Vásquez, Herbas Cuevas et al., 2007: 24). De acordo com o Censo de 2000 da Bolívia, 38,8% de sua população, ou seja, 246.267 pessoas que vivem na cidade, nasceram fora do município. De toda a população migrante da cidade, 90% chegaram depois de 1976, e dois terços depois de 1985.

Entender o processo migratório que envolve El Alto desde sua configuração inicial significa acercar-se da expressão que relaciona a cidade como “símbolo indígena”, mas também – retomando a frase com que começamos este item – uma “gran pista migracional de aterrizaje para las provincias del altiplano y el sur del país” (Archondo, 2000). Associando essas duas ideias nos aproximamos da caracterização das origens da população de El Alto, que mescla uma identidade aimara e migrante constantemente e mutuamente reforçadas.

Segundo Mazurek (2007), as migrações internas na Bolívia – fundamentais para entendermos as principais mudanças estruturais e territoriais no país – seguem hoje três elementos principais: (i) são definidas por lógicas de proximidade, sobretudo dentro das

27 mesmas regiões ecológicas (região andina, subandina e a planície amazônica); (ii) os fluxos mais importantes acontecem entre e para as cidades (princípio de gravidade) e (iii) a atração migratória é definida por bases culturais que independem, de maneira geral, da importância econômica dos lugares de destino. Com relação a esse terceiro elemento, apesar da importância dessas lógicas, a nosso ver, não se pode negar a atração econômica de algumas regiões, como é o caso da cidade de Santa Cruz.

O último elemento – que associa as migrações às bases culturais – também é uma das razões pelas quais se mantém forte o esquema das migrações internas dentro das regiões ecológicas, coincidentes, como dissemos, com a predominância de determinados grupos étnicos, como os aimaras no altiplano, embora a composição étnica deva ser entendida como muito mais híbrida e complexa.

Esse esquema da migração por proximidade nos faz questionar a lógica de migração que iria do altiplano para o oriente. Se, a primeira vista, essa configuração nos levaria a pensar que a maior parte da migração interna na Bolívia alimentaria o fluxo com origem no Ocidente mais pobre rumo ao Oriente rico e expansão, Cortes (2008) e Mazureck (2007) mostram que não é bem assim, embora não contestem que Santa Cruz seja o principal foco da migração interna na Bolívia hoje.

As pessoas que chegam a El Alto são provenientes, principalmente, das áreas de influência direta da cidade, ou seja, dos territórios rurais do departamento de La Paz: 80% dos migrantes vêm de localidades próximas da cidade, principalmente do altiplano norte e do sul do departamento (como das que vivem ao redor do lago Titicaca ao norte e oeste), mas também de espaços tropicais interandinos, como Los Yungas (Flores Vásquez, Herbas Cuevas et al., 2007). Também existe um importante movimento com origem na própria cidade de La Paz: a cada ano, 2.500 habitantes desta cidade vão viver em El Alto (Garfías e Mazurek, 2005: 39), em parte incentivados por programas estatais de habitação, sem contar as mobilidades cotidianas que aumentam as intensas trocas entre as duas cidades.

Para entender o caso de El Alto, tomemos como exemplo a lógica migratória que vem estruturando a cidade fronteiriça de Yacuiba no sul da Bolívia, que parece indicar uma tendência comum. Neste caso vemos que o êxodo rural rumo às cidades mais próximas é acompanhado, cada vez mais, por um segundo movimento, de desconcentração populacional nas grandes cidades, que passam a ter um papel redistribuidor dessa

28 população para dentro e fora das fronteiras nacionais (Souchaud e Martin, 2007). O papel de Yacuiba, cidade mediana que nutre seu crescimento com os extremos – campos vizinhos pouco densos e grandes cidades distantes (Idem) –, revela esse fato. Isso acontece por meio de um esquema sequencial no tempo (em função, entre muitos aspectos, da maior taxa de urbanização do país) e de um fenômeno que associa a “concentración del origen de los emigrantes en algunos pólos urbanos mayores del país y dispersión de este archipiélago en el conjunto de la nación boliviana”43 (Idem:78).

A capacidade de atração do município de El Alto revela que, mesmo tendo recebido um enorme contingente rural, o crescimento da cidade está longe de ser um fenômeno exclusivamente campesino (Indaburu Quintana, 2004), sendo que os dados sobre

migração podem nos confundir a esse respeito. Uma forma de ponderar sobre o peso da população rural dos migrantes que chegam ao município é observar a composição dos dados migratórios – com base no lugar de nascimento dos habitantes –, que podem esconder sequências ou correntes migratórias e também etapas (a passagem desses migrantes por cidades, por exemplo). Se não estivermos atentos a essa particularidade, corremos o risco de confundir os migrantes de datas e momentos passados com os migrantes do presente, discernimento que, num país cada vez menos rural e mais urbano, é tarefa essencial.

A migração de El Alto também pode ser percebida pela estrutura etária do município. De acordo com Garfías e Mazurek (2005), as pirâmides etárias, tanto para 1985 (período máximo de expansão da cidade) como para 2001, mostram que os migrantes que chegam em El Alto – perfil compartilhado pela maioria dos sistemas migratórios – são bastante jovens, em idade de trabalhar e com poucos filhos. Essa movimentação migratória de um grande contingente de jovens também tem relação com a especificidade da transição demográfica na Bolívia (Chackiel, 2004).

Em conjunto com Guatemala, Honduras e Haiti, a Bolívia é um dos países da América Latina que iniciaram mais lentamente a transição da fecundidade, apresentando, até hoje, uma das maiores taxas de fecundidade44 da região. Nos anos 1960, quando a

43 “concentração da origem dos emigrantes em alguns pólos urbanos maiores do país e dispersão deste

arquipélago no conjunto da nação boliviana” (Souchaud e Martin, 2007:78).

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As taxas de fecundidade são calculadas pela relação entre o número de filhos (nascidos vivos) e as mulheres em idade reprodutiva (15-49 anos).

29 grande maioria da América Latina apresentava o início da queda na taxa de fecundidade (com exceção de alguns países como a Argentina, Uruguai e Cuba que já apresentavam taxas muito mais baixas), esta caiu pouco na Bolívia, continuando superior a seis filhos por mulher (alta e constante) (Calle Aguirre, 2003). A fecundidade na Bolívia só começa a cair, portanto, a partir do final da década de 1970, mas entre 2000 e 2004 ainda continua superior a 3,9 filhos por mulher (Guzmán, Rodríguez et al., 2006). Essa taxa é próxima a de países como Haiti e Paraguai e mais distante do Brasil e Argentina, por exemplo, que chegam nessas décadas com uma taxa de cerca 2,3 filhos por mulher, embora com uma evolução, ao longo do tempo, muito distinta (cf. Anexo 1).

Tabela 2. Bolívia: taxa de fecundidade estimada, por períodos de 5 anos, 1950-2004

Número médio de filhos por mulher 1950- 1954 1955- 1959 1960- 1964 1965- 1969 1970- 1974 1975- 1979 1980- 1984 1985- 1989 1990- 1994 1995- 1999 2000- 2004 6,7 6,7 6,6 6,6 6,5 5,8 5,3 5,0 4,8 4,3 4,0

Fonte: Guzmán et al, 2006: 589.

Mantendo ainda as fortes disparidades entre zonas ecológicas, contextos socioespaciais e grupos sociais, também em relação à fecundidade (INE, 2003b), a transição demográfica boliviana esteve relacionada às características socioeconômicas e níveis de desenvolvimento, considerando o pouco acesso à contracepção, como ocorreu em outros países com larga população indígena e rural. Em função, sobretudo, da alta fecundidade combinada a quedas nas taxas de mortalidade, que geram também uma alta taxa de crescimento natural, temos hoje na Bolívia uma população pouco envelhecida (a população com 60 anos ou mais representava de 5 a 7% do total em 2000) e ainda em crescimento acelerado (cf. Tabelas 3 e 4).

Tabela 3. Bolívia: taxa de crescimento natural estimada, por períodos de 5 anos, 1950-2004

Taxa de crescimento natural (por mil) 1950- 1954 1955- 1959 1960- 1964 1965- 1969 1970- 1974 1975- 1979 1980- 1984 1985- 1989 1990- 1994 1995- 1999 2000- 2004 22,6 23,8 24,3 25,2 26,2 25,0 25,1 25,5 25,8 23,8 22,4

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Tabela 4. Bolívia: população total (meio do ano), 1950-2005 por mil

População total (meio do ano), por mil

1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005

2.714 3.006 3.351 3.748 4.212 4.759 5.355 5.964 6.669 7.482 8.428 9.427

Fonte: Guzmán et al, 2006: 588.

Nesse sentido, ressaltamos que, em consequência da especificidade da transição na Bolívia, observa-se o crescimento de uma importante população adulta jovem, que, por ser mais propensa à migração, constitui e engrossa esse movimento no país45. Ao mesmo tempo, uma transição demográfica tardia, acompanhado de uma urbanização relativamente recente, processos totalmente imbricados, induz a um crescimento generalizado de cidades intermédias e grandes pólos urbanos, como é o caso de El Alto. Esse processo também vai ser responsável pela expulsão da população de El Alto, em função, entre outros fatores, da dificuldade de inserção no mercado de trabalho local.

Os grandes movimentos migratórios que aportaram em El Alto, principalmente na década de 1980, são atribuídos, também, a dois importantes acontecimentos na Bolívia. O primeiro, de ordem natural, esteve relacionado à devastação agrícola provocada pelo “fenômeno El Niño”, em 1982, levando a secas e inundações (Garfías e Mazurek, 2005). Nesta mesma ocasião, no contexto da crise econômica em toda a América Latina, houve a privatização e também desativação das minas de estanho concentradas principalmente nos departamentos de Potosí, Oruro e La Paz – tais como a Comibol, Corporação Mineira Boliviana (D'andrea e Martin, 2007). Esses processos deixaram desempregados cerca de 23 mil trabalhadores mineiros, aos quais deve-se acrescentar suas famílias e os que se envolviam indiretamente nessa atividade (Ledo García, 2000). Ou seja, toda uma economia que mobilizava cerca de 200 mil pessoas foi desativada, deixando um enorme contingente

45 Não estamos aqui considerando que existem efeitos mecânicos que relacionam, de maneira determinista, a

pressão demográfica e os processos migratórios, mas consideramos que “la fecundidade elevada y el crecimiento demográfico acelerado promueven la migración dentro de un contexto socio-económico específico porque presionan la infra-estructura, los servicios, el mercado de trabajo y, de modo general, reducen el ritmo de progreso social y económico”(Martine, Hakkert et al., 2000). Tradução livre: “a fecundidade elevada e o crescimento demográfico acelerado promovem a migração dentro de um contexto socioeconomico específico porque pressionam a infraestrutura, os serviços e o mercado de trabalho e, de modo geral, reduzem o ritmo de progresso social e econômico”.

31 populacional sem trabalho em lugares que se organizavam basicamente em torno dessa atividade.

A expulsão generalizada dos trabalhadores – chamada, de maneira eufêmica, de “relocalização” (Ledo García, 2000) –, em grande parte, pouco qualificados, desencadeou um forte processo de emigração interno no país, já que não havia alternativas aos mineiros e muito menos qualquer tipo de acompanhamento político das pessoas que foram expulsas das minas.

Se parte desse contingente se dirigiu à região oriental boliviana em pleno desenvolvimento, uma parte importante deslocou-se para El Alto, o que ajudou a definir a origem migratória da cidade, que mescla ex-mineiros, ligados, em grande parte, à cultura quíchua (com relação à cultura dominante em seus departamentos de origem), com as populações oriundas de lugares da cercania da cidade, provenientes, portanto, das mesmas zonas ecológicas (ligados à cultura aimara). Esse fato cria uma espécie de hibridismo cultural, que se verá refletido nas formas de organização social e política de El Alto.

De um lado, portanto, é sempre reforçada em El Alto uma identidade aimara que nos remete a algumas das zonas de origem dos migrantes que chegam à cidade (principalmente de suas áreas mais próximas), predominantemente pertencentes a essa etnia. A questão da identidade aimara – embora muito delicada, principalmente pela dificuldade em traçarmos linhas precisas no que tange à identidade indígena46 – nos parece aqui relacionada com a origem da população ligada a essa etnia, mas também com a criação, em El Alto, de um “sentido de pertencimento coletivo aimara” (Flores Vásquez, Herbas Cuevas et al., 2007: 32), sintetizado na referência de Zibechi (2006) à população da cidade como “aymaras urbanos”. Sendo assim, podemos entender El Alto como uma cidade articuladora dessa identidade.

Além do uso da língua aimara47, a predominância dessa etnia em El Alto pode ser verificada no fato de que 81,3% dos 391.715 habitantes maiores de 15 anos da cidade declaram a identificação com um povo originário (Arbona, 2006), sendo que 75% com

46 Sobre essa questão cf. Albó (2005).

47 De acordo com Baby-Collin (1998): “Si 97% de la population alteña parle espagnol, plus de 60% parle

aussi et avant tout aymara, langue que reste très utilisée dans les familles e sur les lieus publics” (Baby-Collin, 1998:160). Tradução livre: “Se 97% da população alteña fala espanhol, mais de 60% fala também e sobretudo aimara, língua que continua sendo muito utilizada entre as famílias e nos lugares públicos”.

32 aimaras (INE, 2003a). De acordo com Baby-Collin (1998), a cultura aimara é expressa também pela indumentária, hábitos alimentares e nas crenças religiosas48.

A cultura aimara da cidade, evidentemente, não pode ser considerada de maneira pura e essencialista. Ao contrário, sua expressão é fortemente marcada por misturas e hibridismos. De acordo com Rojas e Guaygua (2002):

[El Alto é] Tierra de migrantes aymaras y de expresión bilingüe (aymara- castellano), espacio urbano de prácticas culturales nativas y al mismo tiempo de adopción de costumbres occidentales, escenario que acoge una cultura religiosa sincrética inspirada en el dios exógeno y en la pachamama y achachilas protectores andinos. Una ciudad matizada de polleras, mantas y sombreros como indumentaria predominante de las mujeres migrantes y de vestimentas de ‘chotas’ y ‘birlochas’ como rasgo central de las hijas de migrantes en proceso de desclavamiento y en ensayo de una ‘nueva identidad’(Rojas e Guaygua, 2002: 11).