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Capítulo 2. Padrões de distribuição socioterritorial dos bolivianos na RMSP

2.1 RMSP: a qual espaço urbano nos referimos

Neste item apresentamos uma breve contextualização de alguns elementos do processo de urbanização da RMSP, procurando trazer informações básicas para a discussão acerca da inserção socioterritorial dos bolivianos nesse espaço. Esse pequeno panorama, vale lembrar, não é suficiente para entender a complexidade desse território o que ultrapassaria os limites deste trabalho.

Mapa 6. A Região Metropolitana de São Paulo e seus municípios

85 O estado de São Paulo e sua maior aglomeração metropolitana (RMSP) tiveram historicamente um papel hegemônico em termos econômicos e demográficos no país, seja nas escalas regional ou nacional. Acompanhando o padrão de concentração da população brasileira em cidades cada vez maiores, que marca o processo de urbanização do país entre 1930-1980 (Martine, 1994; Baeninger, 2003), a importância demográfica do estado e da RMSP esteve vinculada ao processo de industrialização via substituição de importações e a políticas que favoreceram a concentração espacial da produção em centros urbanos já existentes.

O maior êxito desse modelo econômico, no que se refere à industrialização e à integração do mercado nacional, esteve baseado, em termos espaciais, no dinamismo da região Sudeste do país, encabeçado pela cidade de São Paulo (Martine, 1994: 23). A espacialização desigual das atividades econômicas resultou em pólos de atração de população (Singer, 1973), especialmente na RMSP, sendo que a migração rural-urbana intra e interestadual – em grande parte oriunda de estados do Nordeste, mas também de outros, como Minas Gerais – teve um papel fundamental nesse processo, principalmente entre os anos 1950-60. A atração migratória da RMSP, no entanto, não se explica somente por meio do incentivo desempenhado pelo processo de desenvolvimento industrial, tendo sido também provocada por fatores de expulsão de população nos espaços de origem, influenciados por “fatores de estagnação”, de acordo com a interpretação do tipo atração- expulsão das migrações internas explorada por Singer (1973).

A expansão da indústria no território metropolitano de São Paulo ocorreu principalmente nos anos 1950, sendo que entre os anos 1960 e 1980 também tem lugar o espraiamento do parque industrial em direção aos municípios que circundam a cidade, que passaram, nos anos 1970, a constituir sua zona metropolitana (Caldeira, 2000).

A formação da RMSP pode ser entendida como resultado de dois processos principais: de metropolização (crescimento das grandes cidades em detrimento dos núcleos urbanos menores) e periferização (expansão da área urbanizada, em grande parte como resultado do deslocamento dos trabalhadores para a periferia) (cf. Anexo 2 e 3 com mapas da evolução da área urbanizada da RMSP e taxas de crescimento populacional da RMSP e do município de São Paulo).

86 A partir, sobretudo, do processo de assentamento industrial para fora do centro, São Paulo sofreu enormes transformações ao longo das últimas décadas, que vieram a estabelecer, em termos espaciais, uma dualidade entre centro e periferia, mais tarde estendendida aos outros municípios da RMSP (Caldeira, 2000). Essa passagem – ancorada em iniciativas sociais e políticas (mudanças no sistema de transporte, fortalecimento do movimento sindical, disseminação do valor da casa própria), associadas ao aumento populacional (migrações internas) – culminou num padrão de segregação centro-periferia que acompanharia a RMSP dos anos 1940 a 1990 (Caldeira, 2000).

A consolidação desse padrão, portanto, acontece com a manutenção do papel da cidade como principal receptor de população. Além de ter sido um importante fator de crescimento populacional a partir dos anos 1950, a migração também é considerada como um dos fatores responsáveis pelo padrão periférico de crescimento (Kowarick, 1975) da RMSP nas décadas seguintes108.

De acordo com Cunha e Baeninger (1994), o município-sede da RMSP começa a perder população para sua periferia com a queda da atratividade migratória regional, que, até os anos 1980, foi uma marca das migrações dirigidas a essa área. Podemos dizer, com base nesses autores, que a RMSP cresceu por meio de um processo urbano de irradiação a partir do seu centro.

Tabela 21. População e taxas anuais de crescimento populacional (%), Estado, Região Metropolitana e Município de São Paulo, 1940-2000

Ano Município de São Paulo Taxa média Região Metropolitana de São Paulo Taxa média Estado de São Paulo Taxa média 1940 1.326.261 5,2 1.568.045 5,5 7.180.316 2,4 1950 2.198.096 5,6 2.688.901 5,9 9.134.423 3,4 1960 3.781.446 4,6 4.791.245 5,4 12.823.806 3,3 1970 5.924.615 3,6 8.139.730 4,4 17.771.948 3,4 1980* 8.475.380 1,1 12.549.856 1,9 24.953.238 2,1 1991* 9.610.659 0,9 15.369.305 1,7 31.436.273 1,8 1996#* 10.044.787 0,9 16.694.651 1,6 34.407.358 1,8 2000* 10.398.576 - 17.807.926 - 36.909.200 - Fonte: Januzzi, 2002: 4.

Nota: * população ajustada para 1 de julho. # população corrigida em função de subenumeração diferencial da contagem # população corrigida em função de subenumeração diferencial da contagem

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Já em 1950 os municípios periféricos da RMSP cresciam a 10% a.a enquanto que a sede a 5.37% a.a, numa zona considerada, já nessa época, 88% urbana (Cunha e Baeninger, 1994).

87 O padrão centro-periferia marcou o desenvolvimento da RMSP tanto no interior do município-sede quanto na sua relação com os municípios circundantes. Baseado em altas disparidades de infraestrutura, de qualidade de vida e toda sorte de indicadores sociais (como a mortalidade infantil, muito maior em algumas zonas periféricas do que nas centrais), possui, de acordo com Caldeira (2000:218), quatro elementos principais: (i) trata- se de um modelo disperso e não concentrado; (ii) as classes sociais vivem longe umas das outras no espaço da cidade, sendo os ricos nas zonas centrais, legalizadas e bem-equipadas, e os pobres nas zonas periféricas, precárias e quase sempre ilegais; (iii) a aquisição da casa própria é um modelo central para pobres e ricos; (iv) o sistema de transporte se baseia em ônibus para os pobres e carro para os ricos.

Esse padrão passa a pautar os estudos sobre a RMSP desde os anos 1970 (principalmente até 1980), com um olhar voltado à compreensão dessas grandes disparidades urbanas. A dualidade inscrita nessa divisão socioespacial marcou a forma de compreender as cidades no Brasil, numa sociologia urbana voltada a processos macrossociais associados ao entendimento dos resultados (perversos) de um capitalismo periférico e dependente (Marques e Torres, 2005). A literatura109 olhava para a periferia110, para a produção de periferia, baseando-se, principalmente, na distância social e física em relação ao resto da cidade, que se supunha operar de maneira homogênea (Marques, 2005).

De acordo com Telles (2006), até os anos 1980 a discussão sobre cidade no Brasil estava pautada nos temas: “produção e consumo, trabalho e reprodução social, exploração e espoliação urbana, classes e conflito social, dominação e política, contradições urbanas e Estado” (Telles, 2006: 37), dialogando com as leituras macroestruturais relatadas. A já então megacidade crescia cada vez mais, e a forma usual e dominante de entendê-la ainda

109 Entre os trabalhos clássicos baseados numa visão macroestrutural da conformação urbana de São Paulo

econtram-se, na sociologia, Kowarick (1975), Oliveira (1982); na geografia Santos (1981); no urbanismo Bonduki e Rolnik (1982) e Camargo (1976); na demografia, entre os trabalhos que orientaram uma discussão sobre a concentração espacial na metrópole via industrialização temos Martine (1994) e Cano, (2007[1997]). Entre os trabalhos que revisitam essa leitura temos, principalmente, Oliveira (1972). Entre os mais recentes que propõem alguns dos olhares aqui sintetizados cf. Rolnik (2003 [1997]); Marques e Torres (2005); Villaça (1998); Caldeira (2000); Telles e Cabanes (2006).

110 De acordo com Marques e Bichir, a sociologia dos anos 1970 e 1980 caracterizavam as periferias como

“territórios sem Estado, quase totalmente intocados pelas políticas públicas, exceto pelos empreendimentos habitacionais dos anos 1960, que teria levado à constituição de espaços de condições de vida bastante precárias. (...) seriam os [espaços] mais distantes e de menor renda diferencial, ocupados pela população de mais baixa renda e inserida de forma mais precária no mercado de trabalho” (Marques e Bichir, 2001).

88 passava por sua organização dual, baseada nas distâncias sociais e físicas entre um centro rico e uma periferia pobre.

A partir dos anos 1970, no entanto, a RMSP já começa a ver diminuído seu crescimento demográfico, em parte pelo fenômeno da desconcentração industrial em todo o estado, num processo que levaria os municípios paulistas do interior passarem, também, a ganhar população nos fluxos migratórios (Baeninger, 2004a). Na década seguinte, a RMSP perde peso no conjunto da população brasileira, num claro processo de redução da metropolização em todo o Brasil111, acompanhado, como vimos, pela periferização do crescimento metropolitano (Martine, 1994), já que a área urbanizada da RMSP continuou se expandindo.

Nos anos 1980 e 1990, portanto, “a cidade que ‘não pode parar’ quase parou” (Caldeira, 2000:233). Mesmo que sua população ainda continuasse a crescer – em 1980 a RMSP ainda concentrava a metade da população do estado de São Paulo, desigualmente distribuída no território –, as taxas de crescimento não se comparam com as anteriores. Essa desaceleração, associada a processos de redistribuição populacional112, atingiria mais fortemente as áreas centrais do município de São Paulo e os primeiros anéis periféricos113. Ao mesmo tempo, algumas áreas da periferia mais distante (como o distrito de Guaianases, por exemplo) e alguns municípios da RMSP, como os localizados nas suas áreas oeste e norte, viram sua população crescer (Caldeira, 2000) (cf. Anexo 4).

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Essa perda de peso demográfico não significou que as regiões metropolitanas brasileiras deixassem de ter importância na redistribuição da população, sendo que ainda são pontos de grandes aglomerações populacionais (Martine, 1994: 33).

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Nesse momento, e mais acentuadamente entre 1991 e 2000 “(...) reforçando uma incipiente tendência anterior de ‘perda’ de população, a Região Metropolitana de São Paulo – e, particularmente, a cidade de São Paulo – teria se transformado agora em área de circulação para uma parcela significativa da população migrante”(Baeninger, 2005), sendo que o interior se apresenta com alto potencial de absorção migratória.

113 A análise por anéis do tecido urbano foi inicialmente desenvolvida por Ernest Burgess, na década de 1930.

Com base na ideia inicial acerca da leitura da cidade por círculos concêntricos, essa teoria urbana tem sido usada como estratégia de diferentes formas. No estudo de Taschner e Bogus, por exemplo, a intenção é “mostrar uma lógica de ocupação da metrópole e da cidade de São Paulo com padrão em círculos concêntricos, onde a pobreza espalha-se por uma periferia cinzenta e sem serviços, e as camadas mais altas ocupam espaços melhor servidos e mais próximos do centro” (Taschner e Bogus, 2001). Não vamos nos aprofundar nesse tipo de análise, mas quando falamos em “primeiro anel periférico” fazemos referência às áreas periféricas que se formaram por volta dos anos 1950 e 1960 e que, atualmente, não apresentam um crescimento demográfico (ou apresentam um crescimento pequeno), em comparação com áreas mais distantes do centro, que ainda hoje crescem. Mais adiante, com o exemplo da Casa Verde Alta, uma zona intermediária, isso pode ficar mais claro.

89 De acordo com Caldeira (2000), no período entre 1980 e 1990 as desigualdades sociais, no entanto, passam a ser inscritas de um modo diferente:

(...) a oposição centro-periferia continua a marcar a cidade, mas os processos que produziram esse padrão mudaram consideravelmente, e novas forças já estão gerando outros tipos de espaços e uma distribuição diferente das classes sociais” (Caldeira, 2000: 231).

A complexidade da conformação territorial e sociodemográfica da RMSP não poderia mais ser mapeada pela oposição ricos versus periferia pobre.

Em relação especificamente aos padrões de habitação, passam a coexistir processos como a mudança dos moradores ricos para fora das áreas centrais em direção a áreas mais distantes114 – os bairros centrais de classe média alta passam a perder população para outros municípios da RMSP e mesmo dentro do município –; enquanto isso, a periferia, em meio a uma profunda crise econômica, vai ficando cada vez mais cara, menos precária e menos acessível aos pobres. Dilui-se o sonho da casa própria, e os pobres vão cada vez mais para favelas, cortiços e áreas mais distantes, para além das periferias “consolidadas” da cidade, que se densificam em um padrão precário.

Assim, apesar de São Paulo ainda manter sua riqueza de forma altamente concentrada e desigual – perpetuando em escalas diversas o modelo centro-periferia como molde do espaço urbano – esse padrão predominante de segregação socioespacial vem se transformando (Caldeira, 2000). Também a forma de conceber esses processos sofre mudanças importantes (Marques e Torres, 2005) à medida que os estudiosos vão revelando que “a cidade é muito mais heterogênea do que se supunha (...)” (Telles, 2006: 60).

A complexidade do olhar e da própria organização das populações e do espaço urbano e metropolitano foi entendida como uma forma de embaralhamento que não permite mais ver a cidade sob suas “polaridades bem referenciadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia, entre mercado formal e mercado informal” (Telles, 2006: 49). Sobre a maneira de estudar essa complexidade, Vilmar Faria, já em 1991 (Faria, 1991), mostrava como era incerto o sentido das evoluções urbanas que não permitiam a visibilidade de um fio condutor explicativo para os fenômenos que se delineavam.

114 Nesses casos, organizados num padrão de segregação que Caldeira (2000) denominou como “enclaves

fortificados” que, por meio do enclausuramento dos ricos por trás de condomínios fechados e altos muros em suas residências, provoca a redução e precarização do espaço público.

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Mapa 7. O município de São Paulo e seus distritos

Fonte: A partir de base cartográfica realizada por Souchaud, 2010 (trata-se da divisão dos distritos proposta pela autora).

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