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SUMÁRIO

4 RELAÇÕES SOCIAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DIMENSÕES ÉTNICO-RACIAIS, CORPORAIS E DE GÊNERO

4.2 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E DIMENSÃO CORPORAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL

4.2.3 Sobre a cor dos/as bonecos/as

De acordo com Fernanda Morais de Souza (2009), brinquedos são considerados artefatos culturais produzidos historicamente e destinados a grupos específicos de pessoas. No que se refere à história de criação dos/as bonecos/as, a autora observou que estes/as são utilizados como objetos de identificação e como forma de representação de modelos corporais consolidados em cada momento histórico. Os corpos e os atributos materiais dos/as bonecos/as podem carregar significados culturais, raciais, sexuais e religiosos pautados num modelo corpóreo tido como “universal”. Sobre os/as bonecos/as oferecidos/as nas instituições educacionais para a utilização das crianças, Leni Dornelles destaca que,

a partir do que venho pesquisando e estudando acerca da produção do sujeito infantil posso inferir que historicamente nossas crianças de Educação Infantil vêm tendo acesso apenas a um tipo de corpo/boneco que são os bonecos/as loiros, magros, brancos de olhos azuis e, isto certamente, produz efeitos na constituição de subjetividades infantis. Esta é a única ‘verdade’ sobre raça e corpo produzidos não só na escola, mas na sociedade em geral. Daí, ser ‘natural’ as crianças e professores aceitarem apenas os sujeitos que apresentam o que é valorizado e tido como ‘o melhor’ e o ‘mais bonito’ dentre outros (DORNELLES, 2004, p. 07).

Reconhecendo o poder e a importância dos brinquedos na construção de identidades, procuramos perceber a relevância e os sentidos atribuídos pelas crianças às/aos bonecas/os que a instituição disponibilizava. Desde os primeiros dias da pesquisa empírica, notamos que os/as bonecos/as eram brinquedos muito utilizados pelas crianças, especialmente entre as meninas. O grupo pesquisado possuía, na sala, cerca de oito bonecos/as, sendo que dentre esses/as, apenas um boneco era negro.

A representação que os corpos dos/as bonecos/as exercem na vida das crianças contribui efetivamente para a produção de um tipo de corpo padronizado veiculado pelas mídias. As crianças, ao relacionar-se com

esses brinquedos, percebem diferenças e semelhanças existentes entre seu corpo, de outras pessoas e dos/as bonecos/as. No caso das crianças negras, ao brincar com os/as bonecos/as oferecidos pela instituição, não se identificam com as características desses/as pela existência de apenas um boneco negro.

Conforme estudos de Souza (2009) os/as bonecos/as negros/as começaram a ser produzidos/as na contemporaneidade, atendendo a uma lógica do mercado que passou a considerar os indivíduos negros como mais um público alvo de produção de consumo. Assim, além dos/as bonecos/as negros/as, os produtos cosméticos, as revistas e alguns eventos surgem especialmente às populações de origem africana, consumidoras em processo de ascensão social.

Pesquisas sobre o cotidiano da Educação Infantil e práticas

pedagógicas69 apontam que as instituições, em sua grande maioria,

oferecem apenas bonecos/as brancos/as para as crianças brincarem, além de revistas e histórias infantis que contemplam somente personagens brancos. Essas ações disseminam um tipo de corpo branco e magro, influenciando efetivamente no processo de construção da identidade de todas as crianças. No caso da presente pesquisa, presenciamos momentos em que as crianças brincavam com os/as bonecos/as e realizavam ligações com os/as colegas do grupo.

As crianças encontravam-se brincando com jogos e brinquedos espalhados pela sala enquanto as outras crianças estavam dormindo na sala multiuso do CEI. Entrei na sala, fui abraçada por algumas crianças e cumprimentada pelas professoras. Sentei-me sobre o tapete e Isabela logo me chamou num canto dizendo:

- Quer brincar comigo Duda? (Isabela) - Claro! (Respondi)

Ela estava com várias bonecas/os e disse que era hora delas/es dormirem. Colocou as/os bonecas/os no chão e eu fui perguntando o nome de cada uma/um delas/es e ela respondeu:

- Essa é a Alice, essa Bruna e essa Belinha. (Apontando para cada boneco/a).

69

Para maiores informações ver Santos (2005), Dias (2007), Souza (2009) e Carvalho (2013).

- E este daqui, quem é? (Apontando para o único boneco negro que a sala possui).

- Esse é preto! (Respondeu Isabela) - O nome dele é preto? (Indaguei)

- É, é o preto! Não, é o André. Igual aquele André. (Apontando para um colega de sua turma negro). (Diário de Campo, 09/08/2012).

Diante da situação exposta, percebemos a relação que Isabela realizou do único boneco negro da sala com seu colega André, também negro. Inicialmente, ela respondeu que o boneco era preto, reconhecendo uma categoria étnico-racial difundida pela sociedade. Assim, analisamos que a presença de apenas um boneco negro na sala é insuficiente para que as crianças possam identificar-se e valorizar as diferenças étnico-raciais existentes no grupo.

Hall (1998) considera que o processo de construção identitária é marcado por um movimento dialético entre aspectos objetivos e subjetivos, que estão em constantes transformações. As instituições de educação infantil, responsáveis pela primeira socialização da criança na educação sistemática, precisam estar atentas às particularidades de meninos e meninas inseridas em cada contexto social, no sentido de problematizar e afirmar as diferentes populações presentes em nosso país. É necessário um trabalho que, além de oferecer bonecos/as negros/as para as crianças, promova situações em que elas possam reconhecer os diversos tipos de pele, cabelos e olhos, no sentido de valorizar as diferenças étnico-raciais existentes em nosso país.

Vale destacar a pesquisa de Aretusa Santos (2005) destacando uma proposta pedagógica que oportunizou momentos de brincadeiras de faz-de-conta com a utilização de materiais que valorizavam as diferenças étnico-raciais, como a disponibilização de bonecos/as negros/as e brancos/as. Os tempos e espaços de brincar são tidos como essenciais para a formação e percepção das crianças acerca da complexidade do mundo, sobretudo no que diz respeito às relações étnico-raciais que permeiam a sociedade brasileira.

No que tange às ações voltadas para a diversidade étnico-racial, mencionamos anteriormente que a Secretaria de Educação do município

investigado desenvolve um Projeto de Biblioteca Itinerante

Multicultural, que consiste em um Baú Multicultural com cerca de 70 livros de literatura e de formação com títulos que promovem o respeito às diferenças (racial, cultural, gênero, social, sexual), além de instrumentos musicais de diferentes culturas, CDs, DVDs, jogos e

brinquedos educativos construídos pelas crianças e professores/as que recebem o baú em sua instituição. O objetivo desse projeto é apresentar às instituições outras histórias, que trabalhem questões referentes às diversidades existentes em nossa realidade social, promovendo discussões e vivências com crianças e adolescentes nas instituições de educação.

A proposta desse projeto, de suma importância para o trabalho com a diversidade étnico-racial, não se faz suficiente para que haja transformações acerca das questões sobre desigualdades raciais presentes nas instituições de educação. Contando que as crianças frequentam o Centro de Educação Infantil por 200 dias no ano e o Baú Multicultural permanece somente por 5 dias desse ano, percebemos a necessidade de criação de outras ações políticas e pedagógicas frequentes capazes de contemplar todas as crianças em suas especificidades.