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3. As memórias de Padrinho Daniel sobre Mestre Irineu

3.1 Raimundo Irineu Serra

3.1.2 Em Rio Branco

Por volta de 1920, Raimundo Irineu Seria teria se mudado para Rio Branco, continuando a trabalhar na Guarda Territorial, corporação a qual pertenceu até 1932. Desta época, segundo apurado, não se dispõe de informações mais detalhadas. Somente a partir de 1930 é que se dispõe de dados mais precisos. A partir do início da década, Mestre Irineu já residia no bairro de Vila Ivonete, zona rural da capital acreana. Segundo GOULART (2004, p. 38):

Ele possuía, aí, uma colônia, que foi conseguida, segundo se conta, a partir de seus contatos com políticos e pessoas de prestígio local. Notaremos (...) que esse tipo de relações marcou a atuação religiosa do Mestre Irineu em Rio Branco, ocorrendo ao mesmo tempo em que ele e seu culto eram alvo de estigmas na região. Na ocasião, a Vila Ivonete abrigava seringais e pequenas colônias agrícolas, as quais em geral eram arrendadas pelo governo estadual. Os locatários ou proprietários destas colônias eram, em boa parte dos casos,

seringueiros que se voltaram para a atividade agrícola no momento de declínio do extrativismo da borracha. Esta era a situação do próprio Mestre Irineu e (...) de vários dos primeiros membros do culto do Santo Daime.49

Foi lá que começou a trabalhar com um pequeno círculo de discípulos, geralmente com um histórico parecido com o seu: nordestinos que vieram trabalhar nos seringais amazonenses e, agora, se encontravam em difícil situação econômica, familiar, social, de saúde.

Entre os adeptos desta religião, entende-se que, oficialmente, o primeiro ritual do Santo Daime, ou melhor, “trabalho”, para utilizarmos a terminologia daimista, ocorreu na Vila Ivonete, na casa do Mestre Irineu, em vinte e seis de maio de 1930. Estavam presentes, na ocasião, além do próprio Mestre Irineu, mais duas pessoas. Uma destas era José das Neves, já falecido, considerado o primeiro discípulo do Mestre Irineu. O “trabalho”, como relatou Neves (...) era de “concentração” com Daime. (GOULART, 2004, p. 39)

Principalmente graças as suas “propriedades medicinais”, a fama do Daime – e, conseqüentemente, do Mestre Irineu – correu célebre entre a população local, em grande parte excluída de quaisquer cuidados médico-hospitalares. Porém, ao final da década de 1930, apenas cerca de vinte pessoas freqüentavam regularmente os trabalhos de Daime com o Mestre Irineu.

Percília Ribeiro (apud GOULART, 2004, p. 40), relata acerca do crescimento do culto:

E assim foi crescendo. Muitos chegavam aqui desenganados pelos médicos, sem esperança, e encontravam a cura (...). E o povo ficava, ia se estabelecendo perto do Mestre, porque ele era como um pai, que acolhe seus filhos, que orienta... protege (...). O povo chegava até ele pedindo ajuda, conselho para um filho que não tomava jeito, um marido que vivia na bebida, e ele tinha aquela sabedoria, aquele poder de orientar a todos nós.

Ou seja, os primeiros discípulos do Mestre Irineu e do novo culto, o reconheciam como um líder forte, capaz de guiá-los não apenas em questões religiosas e espirituais, mas também morais, materiais, de trabalho. Era visto como um “pai”, um

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GOULART (2004, p. 38), também lembra que “de 1920 a 1940 a exploração gumífera na Amazônia brasileira decaiu consideravelmente, principalmente devido a concorrência da borracha produzida na Malásia e Ceilão, onde se desenvolveram plantações e um tratamento muito mais racional do produto. Na década de quarenta, em função da Segunda Guerra, a produção da borracha brasileira é recuperada. É o período em que os migrantes nordestinos trazidos para trabalhar nos seringais da Amazônia são chamados de ‘soldados da borracha’. Contudo, esta recuperação foi circunstancial, só durando durante a guerra. Nos períodos em que a produção da borracha brasileira incrementou-se, a atividade agrícola era desencorajada ou mesmo proibida nos seringais. Ao contrário, nos momentos de seu refluxo, incentiva-se o trabalho com a agricultura”.

“protetor”, um “padrinho”. Neste sentido, Cecília Gomes (apud GOULART, 2004, p. 41), testemunha:

Ele sempre foi o nosso Mestre (...). Ele dizia que remédio era bom para gente. Ás vezes mesmo sem consultar o Daime, ele já sabia (...). Ele era o nosso médico (...). Ele decidia tudo, resolvia os conflitos, as brigas... Todo mundo respeitava ele (...). Assim era o padrinho Irineu. Para mim, ele era tudo, meu pai, meu Mestre, meu padrinho. Ele me criou, morei muitos anos na casa dele (..). Depois, me casei com o Germano, com a orientação dele. Eu tinha dezesseis anos e o Germano quarenta e dois. Mas o padrinho Irineu viu que aquele casamento ia ser bom para nós. Então, nós casamos (...), sempre seguindo a orientação dele.

Outro fator importante no desenvolvimento do culto foi o fortalecimento das redes de compadresco, que auxiliaram tanto no processo de conversão de novos adeptos, quanto em um meio de intensificar as relações de proximidade e cooperação do novo grupo religioso. Alias,

as relações de parentesco50 e afinidade são elementos importantes na constituição da comunidade daimista ao longo de sua história. Num primeiro momento, é basicamente uma família ⎯ os Gomes ⎯ que irá cumprir este papel. Posteriormente, outros grupos familiares vão se juntar ao primeiro no movimento de formação da comunidade do Santo Daime. (GOULART, 2004, p. 41)

Tal prática foi tão importante que o próprio Mestre, em 1956, se casou com uma neta de Antônio Gomes, de nome Peregrina, filha de Zulmira. O enlace durou até a morte de Serra.

No entanto, a posição de liderança assumida por Raimundo Serra nem sempre era bem vista pelas autoridades e classes sociais mais altas. Por outro lado, o uso de uma bebida “ligada aos índios” e todo o processo imagético gerado,

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GOULART (2004, p. 78), apresenta um gráfico de parentesco do Alto Santo, o segundo local de instalação da comunidade.

Figura 10 - Raimundo Irineu Serra. Extraído de www.mestreirineu.org

despertava desconfiança e, por vezes, até perseguição ao culto. GOULART (2004, p. 42), narra o seguinte depoimento, colhido de uma ex-seguidora do Santo Daime, dos anos de 1930:

Ah, naquela época era difícil! (...). Tinha muita perseguição! Nós éramos incompreendidos. O povo falava muita coisa do Mestre, do Daime. Eu mesma, antes de conhecer o Mestre... antes de conhecer o Daime, tinha muito medo (...). A gente tinha medo porque falavam que deixava a gente doido, enfeitiçado (...). Diziam que era só tomar o Daime para a gente ficar que nem doido, que a gente perdia o controle... e que ficava nas mãos dele, do Mestre (...). Diziam que ele fazia todo tipo de trabalho.

O medo seria tanto do Daime, quanto “dos poderes” do Mestre Irineu, chegando a ser temido por inúmeras pessoas, bem como pelas religiões estabelecidas em Rio Branco. Assim, como medida preventiva contra repressões da sociedade, “Serra não realizava sacramentos, como casamentos e batizados, e ordenava que as pessoas fossem procurar a igreja católica para tanto” (GABRICH, 2008, p. 6). Porém, os que conheciam o trabalho, reconheciam nele bondade e orientação. Neste sentido, outra antiga adepta do Daime prestou o seguinte depoimento sobre Irineu Serra e o início do trabalho:

Havia os que falavam mal, muito mal do Mestre. Por ignorância, ou por maldade. Mas falavam sem saber, porque o Mestre era a bondade em pessoa, um homem que nunca fez mal a ninguém, só fazia ajudar os que precisavam, os que batiam na casa dele (...). Mas, até por isso mesmo, tinham os que falavam mal, que chamavam ele de agitador (...). Falavam que ele usava o Daime para fazer trabalho contra as pessoas, para mandar e desmandar nelas (...). Porque muitos não entendiam como aquele homem... tão simples que ele era... tinha aquele poder, que ia juntando as pessoas em volta dele (...). Porque, quando ele falava, todo mundo parava para escutar. E o que ele dizia a gente seguia mesmo, porque sabia que era uma orientação certa (...). E aí falavam mal dele, às vezes até por inveja, tinha gente que não gostava dele (...). Como foi o caso daquele tenente Costa que quis botar o Mestre na cadeia. (GOULART, 2004, p. 42).

O conflito entre o Mestre Irineu e a polícia de Rio Branco é mencionado com freqüência entre os adeptos do Santo Daime. Considerando que o mesmo aconteceu enquanto o Mestre residia na Vila Ivonete, deduz-se que tenha ocorrido ainda na primeira década de organização do culto.

Segundo consta, o tenente Costa era um forte opositor de Serra e do seu grupo. Alguns relatos dizem que ele foi preso, outros, que foi apenas detido. Percília Ribeiro (apud GOULART, 2004, p. 43), contou:

Eu sei que meteram na cabeça do policial que o Mestre estava lá... fazendo e desfazendo... casando e descasando (...). Era um tal de tenente Costa, que não gostava mesmo do Mestre, e que vivia inventando coisa para perseguir o Mestre (...). Aí, mandaram um contingente, mais de trinta homens, para prender o Mestre! Imagine só! (...). Um pessoal indisciplinado, iam entrando, derrubando as coisas (...). Daí, o Mestre estava até descansando nessa hora, sem saber de nada (...). Eles chegaram invadindo, e era o tal de tenente de Costa que ia na frente (...). Iam invadindo... sem consideração... entraram no quarto dele, mexeram na gaveta da mulher dele... Uma falta de respeito! (...). Quando o Mestre acordou, eles estavam com o revólver na cabeça dele já. E o tenente disse assim para o Mestre: ‘Não estremeça’. (...). Aí, eles desceram... Aí, foi que foram dizer que eles tinham uma queixa lá contra o Mestre, e que queriam prender ele (...). Estavam dizendo que o Mestre estava acobertando o Zé das Neves (...). Porque o Zé das Neves estava sempre envolvido com as mulheres (...). E estavam dizendo que ele tinha roubado uma dona, era uma mulher da vida, e que ele tinha escondido a mulher na casa do Mestre, e que o Mestre ia casar os dois e tudo mais (...). O Mestre não sabia dessa história não, nem sabia aonde estava o Zé das Neves (...). Eles já iam prender o Mestre, mas aí chegou uma ordem do coronel Fontenele ⎯ que já sabia o que estava acontecendo ⎯, mandando dizer que se tocassem num fio de cabelo do Mestre iam ter que se ver com ele.

Ainda segundo Percília Ribeiro (apud GOULART, 2004, p. 43), no dia seguinte, Mestre Irineu foi até a delegacia para prestar esclarecimentos, mas, segundo ela, “de livre e espontânea vontade”. Na ocasião, estaria presente o próprio coronel Fontenele, que teria repreendido o tenente Costa na frente de várias pessoas e, inclusive, demitido funcionários em função do episódio.

Coronel Fontenele, homem de grande prestígio no Acre, era amigo pessoal de Mestre Irineu – fruto dos anos de trabalho na Comissão de Limites. O próprio terreno em que Raimundo Serra vivia na Vila Ivonete teria sido conseguido com a ajuda do coronel.

Assim, pode-se perceber que, se por um lado o Mestre Irineu enfrentava oposições e perseguições, por outro, ele usufruía também de boas relações e proteção de representantes das camadas dominantes, o que lhe rendeu prestígio e legitimidade, bem como as suas atividades. Tais relações, ao que tudo indica, foram freqüentes na vida de Irineu Serra. A relação com o coronel Fontenele não deve ser considerado um fato isolado. Outro exemplo é o local onde foi construída sua igreja

e até hoje permanece o centro fundado por ele, chamado pelo próprio Mestre de Alto Santo, por razões topográficas, que também

foi obtido por meio de uma doação feita, em 1945, pelo ex-governador do Acre, Guiomard Santos. Tratava-se da Colônia Custódio Freire, zona rural de Rio Branco. As terras foram doadas ao Mestre Irineu e ele, aos poucos, as distribuiu entre os seus discípulos. Legalmente, entretanto, as terras continuavam sendo do Mestre Irineu51. Ele apenas as havia cedido para alguns de seus discípulos, em mais um esforço para organizar a comunidade daimista. A posse das terras era garantida pela autorização do Mestre Irineu, por seu aval e sua palavra. (GOULART, 2004, p. 43-44)

Outro depoimento que chama atenção foi dado por Mariza (apud GOULART, 2004, p. 45. Grifo meu), acreana que ingressou no culto na década de 1960, porém, que fala do início do Santo Daime no período de sua infância:

Eu era bem pequena, mas já se falava do Mestre Irineu. Ele já era conhecido (...). A gente ouvia muita coisa que dava medo. As pessoas falavam que tinha aquele trabalho lá, com uma bebida que fazia mal para a gente. E contavam que o Mestre fazia muitas coisas, que era um preto macumbeiro, que separava os casais, que ele roubava as mulheres para ele... Eu ficava assim amedrontada. Outros falavam que ele tinha uma história com um ser inferior (...). Falavam muita coisa naquele tempo.

Aqui se percebe mais duas imagens negativas atribuídas ao culto, em virtude do seu fundador. A primeira diz respeito a sua cor, pois Irineu Serra era negro. Provavelmente esta imagem tenha sido muito usada pelos críticos do movimento religioso em formação. Junto a isso, pode-se deduzir, também, a ameaça que ele representava devido ao seu porte físico, pois, segundo testemunhos, ele teria por volta de dois metros de altura. A segunda figura, associada à primeira, seria o fato de ele ser macumbeiro, ou seja, deter e usar poderes mágicos para fazer o mal. Imagine-se, portanto, a ameaça que poderia representar um negro de grande porte físico, detentor de poderes sobrenaturais, liderando um contingente populacional carente. Note-se, no entanto, que o foco das acusações dos críticos, nesta época inicial, não era tanto o psicoativo utilizado, mas a figura do líder.

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GOULART (2004, p. 44), atualiza a informação: “Depois da morte do Mestre Irineu, a sua viúva decidiu lotear as terras e vendê-las para daimistas que já residiam no local, regularizando legalmente a situação de muitos deles. Porém isto acabou por diversificar o perfil da população que aí reside. Atualmente, já é grande o número de habitantes que não são ligados ao Santo Daime, existindo inclusive uma igreja evangélica no local. Constatei que esta última realiza algumas campanhas contra a comunidade daimista e o chá propriamente dito”.

Ladeado por este contexto, a doutrina daimista foi sendo desenvolvida (recebida) paulatinamente. Não vou explicitá-la novamente, pois isto já foi feito do capítulo anterior, mais especificamente no item 2.3 Rituais e doutrinas do Daime.

Outro fato importante a ser registrado acerca da vida do Mestre Irineu, diz respeito a sua viagem ao Maranhão, no ano de 1957, por cerca de dois meses, quando retornou também a São Vicente Férrer, reencontrando muitos parentes e amigos. Foi nesta oportunidade que levou consigo ao Acre o seu sobrinho, Daniel Serra, sobre quem falaremos abaixo.

Segundo os estudos de Labate e Pacheco (apud GOULART, 2004, p. 51), poderia ter sido esta uma oportunidade para a incorporação de algumas práticas e elementos de tradições culturais maranhenses ao culto que ele estava em processo de organização. Citam, como exemplo, a festa de São Gonçalo (embora esta não seja exclusividade do Maranhão) e alguns paralelos entre a festa do Divino Espírito Santo e elementos do imaginário e das práticas da religião daimista:

eles [Labate e Pacheco] chamam a atenção para a presença, nesta última, de uma temática relacionada a um “império”, com a utilização de coroas e de termos como “príncipes”, “princesas”, “reis”, “rainhas”, “imperadores”, os quais poderiam remeter à tradição da festa do Divino, quando um conjunto de crianças recebe a designação de “império”, passando a se comportar e a se vestir

como nobres (...). Os autores

relacionam, também, as cantigas

entoadas pelas “caixeiras”⎯ grupo de mulheres que tocam caixa na festa do Divino ⎯ com alguns hinos daimistas.

Contudo, como se pretendeu demonstrar no capítulo anterior, é possível perceber influências e estabelecer inúmeras relações entre os rituais do Santo Daime e as antigas festas do catolicismo popular, mesmo antes desta viagem. Neste

Figura 11 - Mestre Irineu. Extraído de www.mestreirineu.org

sentido, é importante a afirmação de GABRICH (2008, p. 6): “Segundo relatos, Mestre Irineu afirmava que o Santo Daime era uma doutrina, e não uma religião. Quando alguém lhe perguntava qual era a sua religião, ele dizia ser católico, e orientava seus seguidores a darem a mesma resposta”.

Cabe enfatizar, por fim, que no processo de organização do culto criado pelo Mestre Irineu, primeiramente foram elaborados os rituais e doutrinas e só então veio a organização institucional do mesmo, registrado como CICLU, Centro de Iluminação Cristão Luz Universal. Segundo GOULART (2004, p. 63),

o registro legal do centro demorou a ser feito e, na verdade, uma série de questões burocráticas só foram regularizadas recentemente. O próprio estatuto só foi elaborado após o falecimento do Mestre Irineu. O nome CICLU, Centro de Iluminação Cristã Luz Universal, levou, igualmente, algumas décadas para ser definido. Conta-se que o Mestre Irineu havia proposto a designação “Centro Livre”, mas algumas pessoas discordaram e propuseram o nome CICLU, que acabou sendo escolhido. Centro Livre é o nome de um hino do Mestre Irineu52, e a expressão encontra-se mencionada no único documento deixado por ele, o “Decreto dos Serviços”, o qual afirma que: “o centro é livre”. A designação indica a informalidade do culto daimista e a sua pouca institucionalização até o falecimento do seu fundador.

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO (páginas 46-53)

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