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Os primeiros anos no Acre

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO (páginas 42-46)

3. As memórias de Padrinho Daniel sobre Mestre Irineu

3.1 Raimundo Irineu Serra

3.1.1 Os primeiros anos no Acre

Inicialmente, no Acre, Irineu Serra residiu cerca de dois anos em Xapuri e, posteriormente, três anos em Brasiléia, na fronteira com o Peru e a Bolívia, sempre trabalhando como seringueiro. Ao que tudo indica, ainda em Brasiléia, recebeu um convite para trabalhar na Comissão de Limites, também conhecida como Guarda Territorial, órgão federal encarregado de delimitar as fronteiras do Brasil com o Peru e a Bolívia – o convite o fez mudar do município. Teria, então, se dirigido para Sena Madureira, em 1918 ou 1919, onde trabalhou na referida Comissão. Em função do trabalho desenvolvido, Irineu viajou muito, percorrendo várias regiões da Amazônia. Pode ser que, neste período, ele tenha se dedicado concomitantemente ao trabalho com a seringa.

Foi nessa época que Raimundo Serra soube da existência da bebida denominada ayahuasca, através dos irmãos Antonio e André Costa, que lhe contaram sobre um ayahuasquero peruano que o teria instruído e iniciado no uso do chá (cf. GOULART, 2008a, p. 1). “O fato é afirmado em todos os relatos existentes sobre essa época, e vai ser incluído no conjunto de relatos que, miticamente, fundamentam a criação do culto do Santo Daime e a legitimação do Mestre Irineu como seu líder máximo” (GOULART, 2004, p. 29). No entanto, persiste a dúvida sobre onde isso aconteceu: se em Basiléia, Xapuri ou nas florestas peruanas. Outros relatos, ainda, dizem que ele conheceu a ayahuasca em solo peruano, pelas mãos de um caboclo chamado Don Pizango46. Os relatos divergem novamente.

Antônio e André Costa também eram maranhenses, como Serra. As informações, de novo, são desencontradas. Relatos afirmam que eles sequer se conheciam do Maranhão; outros, que eram conhecidos; e, finalmente, outros, que eram parentes47. O fato, no entanto, é que foram os irmãos Costa que apresentaram a ayahuasca a Irineu Serra.

Acerca deste primeiro encontro do Mestre Irineu com a bebida, os relatos [outra vez] divergem. Segundo Luiz Mendes, Antônio Costa e Irineu Serra moravam no mesmo lugar. Este era seringueiro, aquele, comerciante que comprava e vendia borracha. Certo dia, Antônio Costa contou a Irineu que havia uns “caboclos” no Peru que bebiam um chá, de nome ayahuasca, e tinham um pacto satânico “para trazer fortuna e facilitar a vida de cada um” (GOULART, 2004, p. 30. Grifo meu). Serra, mesmo assim, quis experimentar, para ver se conseguia mudar de vida. Mendes (apud GOULART, 2004, p. 30), relata:

Tomou a bebida e quando os outros começaram a trabalhar, botaram a boca no mundo, chamando o demônio. Ele também começou a chamar. Só que proporção que ele chamava o demônio, eram cruzes que iam aparecendo. Ele se sentiu sufocado de tanta cruz que apareceu. O Mestre começou a analisar: ‘O diabo tem medo de cruz e na medida que eu chamo por ele, aparecem as cruzes. Tem coisa ai’... Ele pediu para ver uma série de coisas. Tudo que ele queria, ele pode ver (...). E assim foi a primeira vez.

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GOULART (2004, p. 34-35), descreve alguns desses relatos.

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GOULART (2004, p. 29-30), escreve: “Walcírio Genésio da Silva, filho do Mestre Irineu, do seu segundo casamento, me disse, numa entrevista, que Antônio Costa era seu padrinho. Sebastião Jaccound, um adepto do culto criado pelo Mestre Irineu, no relato publicado a respeito de sua conversão, diz que Antônio e André Costa eram primos do Mestre Irineu, e que este, sabendo que os dois se encontravam na selva peruana, foi ao encontro deles”. GABRICH (2008, p. 2), concorda que os irmãos Costa seriam primos de Raimundo Serra.

O próprio Luiz Mendes também relata outro episódio importante na gênese mítica do culto: a aparição de uma entidade feminina a Raimundo Serra, na primeira vez que ele e Antônio Costa beberam ayahuasca juntos, após Serra tê-la conhecido no Peru. Diz Mendes (apud GOULART, 2004, p. 31-32):

Os dois tomaram e Antônio Costa ficou na sala e o Mestre lá dentro, no quarto. Quando começou a mirar, Antônio Costa lhe disse:

- ‘Tem uma senhora conversando comigo e ela me falou que foi sua companheira desde que você saiu do Maranhão. Ela te acompanhou até aqui’.

O Mestre não entendeu porque ele tinha viajado sozinho. - ‘Perguntou como é o nome dela?’

- ‘Ela está dizendo que se chama Clara. Tu te prepare, pois ela mesma vem conversar contigo’.

(...) Na primeira vez, depois de tomar o Daime, ele armou a rede de modo que a vista dava acesso para a lua. Parece que estava cheia ou quase cheia. Era uma noite clara (...). E quando ele começou a mirar muito deu vontade de olhar para a lua. Quando olhou, ela veio se aproximando, até ficar bem perto dele, na altura do teto da casa. E ficou parada. Dentro da lua, uma Senhora sentada numa poltrona, muito formosa e bela (...). Ela falou para ele:

- ‘Tu tem coragem de me chamar de Satanás?’ - ‘Ave Maria, minha Senhora, de jeito nenhum!’

- ‘Você acha que alguém já viu o que você está vendo agora?’ (...). Você está enganado. O que você está vendo nunca ninguém viu. Só tu. Agora, me diz: quem você acha que eu sou?’

Diante daquela luz, ele disse: - ‘Vós sois a Deusa Universal!’

- ‘Muito bem. Agora, você vai se submeter a uma dieta. Para tu poder perceber o que eu tenho para te dar’.

Os nomes atribuídos a entidade feminina, em outros relatos, também podem divergir: Clara, a Senhora, Nossa Senhora, Virgem, Virgem da Conceição, a Rainha, Rainha da Floresta, Deusa Universal48. Em comum, em todos os relatos, a ordem de praticar uma dieta de oito dias (há divergências, chegando-se a afirmar, também, seis ou onze dias). Este período de purificação marca o início do recebimento das revelações, a começar pelo nome do culto. Percília Ribeiro (apud GOULART, 2004, p. 30), contemporânea de Raimundo Serra e antiga praticante do daime, relata:

Ela disse que ele ia precisar ficar vários dias na mata (...) oito dias, sozinho, sem ver ninguém, afastado de tudo. Ele não podia nem ver saia de mulher... não podia chegar perto de mulher... Era para ficar na dieta, só podia comer macaxeira, sem sal nem nada, tomando Daime (...). Quando foi um dia, o Antônio Costa, que estava por perto, cuidando dele, foi lá e, escondido, botou sal na macaxeira dele (...). Mas o Mestre, quando viu aquela macaxeira, foi logo dizendo pro Antônio Costa: ‘então, quer dizer que você quer me enganar, botando sal na macaxeira?’ O Antônio Costa se assombrou com aquilo, e

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pensou: ‘como ele podia saber?’. Aí, ele viu que o Mestre já estava entendo as coisas (...). O Mestre passou muita provação na mata, viu muita coisa (...). Quando terminou a dieta, a Rainha apareceu para ele (...). Aí, ela disse que ele já estava pronto para receber o que ela tinha para lhe entregar (...). Ela disse para o Mestre que ele poderia pedir o que ele quisesse (...). O Mestre pediu para ser o maior curador do mundo, e para ela colocar tudo que pudesse curar naquela bebida (...). Foi, aí, também, que ela disse que a bebida se chamava Daime. É um pedido, uma prece que a gente faz a Deus... dai-me saúde, dai-me amor (...). A gente pode pedir tudo porque esta bebida é divina mesmo, ela tem tudo o que a gente precisa.

Tais revelações, entregues pela Virgem, por vezes, são associadas a tesouros, pois teriam valor incalculável, reservados para poucos. Assim, teria sido satisfeito o desejo de “facilitar a vida” de Irineu Serra ao buscar a ayahusca – sua riqueza, no entanto, não seria monetária ou palpável, mas doutrinária e espiritual. Em contrapartida, teria ele uma missão: organizar uma [nova] doutrina para aquela bebida, que não mais seria chamada de ayahuasca, mas de daime. Este deveria ser completamente nova, diferente (superior?) das anteriores – por isso também um nome completamente novo.

Após a aparição da Virgem e da dieta, Raimundo Serra deve ter permanecido em torno de cinco anos em Brasiléia, dando continuidade as suas experiências com a bebida, em companhia dos irmãos Costa, desenvolvendo seu conhecimento, recebendo revelações. Segundo GOULART (2004, p. 37):

sabe-se que Antônio e André Costa organizaram um centro em Brasiléia cujos rituais se baseavam na utilização da ayahuasca (...). É certo, também, que Irineu Serra participou deste centro ao menos por um determinado tempo. O centro se chamava CRF – Centro de Regeneração e Fé. Conta-se que, um pouco antes de deixar Brasiléia, Irineu teria se desentendido com Antônio Costa e se desligado do CRF (...). Os motivos apresentados para esse desentendimento divergem. Em muitos depoimentos colhidos por mim afirma-se que Antônio, o qual deveria ser o líder do grupo, estabeleceu alguns graus hierárquicos e “graduações”, determinando categorias de comando, mas excluiu Irineu das mesmas.

Portanto, segundo a tradição mítica daimista, foi no coração das florestas da América do Sul, que Raimundo Irineu Serra, após beber a ayahuasca, teve a visão da Rainha da Floresta, que lhe entregou a doutrina do Santo Daime. Pouco a pouco, foi concebendo (ou recebendo) a doutrina do Santo Daime durante alguns anos, submetendo-se a provações, tornando-se, assim, exemplo aos daimistas. Segundo os próprios seguidores do culto (Santo Daime – a doutrina da floresta. In:

bebida sacramental ayahuasca, conhecida desde antes dos incas e rebatizou-a com o nome de Daime, significando, com isso, a invocação espiritual que deveria ser feita pelo fiel, ao comungar com a bebida: Dai-me amor, Dai-me Luz, etc.”.

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO (páginas 42-46)

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