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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais

Departamento de História e Geografia

MESTRE IRINEU, FUNDADOR DO SANTO DAIME, NAS MEMÓRIAS

DE PADRINHO DANIEL: HISTÓRIA ORAL E RELIGIÃO

JONAS RODRIGO BECKER

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JONAS RODRIGO BECKER

MESTRE IRINEU, FUNDADOR DO SANTO DAIME, NAS MEMÓRIAS DE PADRINHO DANIEL: HISTÓRIA ORAL E RELIGIÃO

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do Grau de Graduado em História – Licenciatura, Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

Jonas Rodrigo Becker

Mestre Irineu, fundador do Santo Daime, nas memórias de Padrinho Daniel: História Oral e Religião

_____________________________________________ Prof. MSc. Rogério de Carvalho Veras – Orientador

(Instituto de Estudos Superiores do Maranhão/Universidade Estadual do Maranhão)

_____________________________________________ Prof. MSc. José Henrique de Paula Borralho

(Universidade Estadual do Maranhão)

____________________________________________ Profa. MSc. Júlia Constança Pereira Camêlo

(Universidade Estadual do Maranhão)

São Luis (MA), 18 de Setembro de 2008.

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Para

Neziran,

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Sou filho desta verdade E neste mundo estou aqui Dou conselho e dou conselho Para aqueles que me ouvir O saber de todo mundo É um saber universal Aqui tem muita ciência Que é preciso se estudar Estudo fino, estudo fino Que é preciso conhecer Para ser bom professor Apresentar o seu saber

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SUMÁRIO

Considerações iniciais ... 08

1. Demarcando o terreno ... 11

1.1 Os campos da história ... 11

1.2 História Oral ... 14

1.3 O conceito de religião e a História das Religiões ... 18

2. Xamanismo e Daime: história e doutrina ... 21

2.1 Xamanismo e uso da ayahuasca ... 21

2.1.1 O xamã ... 21

2.1.2 O vegetalista ... 23

2.1.3 Cultura religiosa amazônica ... 24

2.1.4 O uso ritual da ayahuasca pelos vegetalistas ... 25

2.2 A história do Santo Daime ... 26

2.2.1 Legalidade ... 29

2.3 Rituais e doutrinas do Daime ... 31

3. As memórias de Padrinho Daniel sobre Mestre Irineu ... 39

3.1 Raimundo Irineu Serra ... 39

3.1.1 Os primeiros anos no Acre ... 42

3.1.2 Em Rio Branco ... 46

3.1.3 Juramidã ... 53

3.1.4 A “passagem” de Mestre Irineu ... 55

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3.2 As memórias de Padrinho Daniel ... 58

3.2.1 Padrinho Daniel ... 58

3.2.2 As entrevistas ... 60

3.2.3 Analisando as entrevistas: memórias de Padrinho Daniel ... 61

3.2.3.1 Entrevista 29032008 ... 61 3.2.3.1.1 REC001 ... 61 3.2.3.1.2 REC002 ... 62 3.2.3.1.3 REC003 ... 65 3.2.3.1.4 REC004 ... 66 3.2.3.1.5 REC005 ... 67 3.2.3.1.6 REC006 ... 68 3.2.3.2 Entrevista 05042008 ... 69 3.2.3.2.1 REC007 ... 69 3.2.3.2.2 REC008 ... 69 Considerações finais ... 72 Referências Bibliográficas ... 75 Anexo – CD-ROM ... 80 Monografia – Mestre Irineu nas memórias de Padrinho Daniel

Entrevista 29032008 REC001 REC002 REC003 REC004 REC005 REC006 Entrevista 05042008 REC007 REC008

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Sempre que fazemos algo, ainda que tenhamos alguma obrigação direta na ação, o fazemos de modo livre, seja na escolha, seja na execução, baseado na vontade e/ou desejo pessoal. Assim, somos os responsáveis por tudo o que fazemos.

Ao propor o tema deste trabalho, ainda que ele tenha um fim acadêmico-institucional, o faço segundo o pressuposto acima. Ou seja, ainda que tenha o dever de apresentar uma monografia para obtenção de grau acadêmico, a escolha da temática foi de livre vontade deste pesquisador – como também deseja ser a sua execução.

As primeiras idéias do tema “Mestre Irineu, fundador do Santo Daime, nas memórias do Padrinho Daniel: história oral e religião” surgiram após contato com Padrinho Daniel, em uma palestra sobre o tema “Ética e Santo Daime”, em setembro/2007, no Instituto de Estudos Superiores do Maranhão, em São Luis (MA), oportunidade em que o conheci pessoalmente.

Posteriormente, no mês de outubro, participei de um ritual da referida religião, no bairro Pirâmide, município de São José de Ribamar (MA), quando tive oportunidade de manter o primeiro diálogo com Padrinho Daniel e conhecer um pouco de sua trajetória no Santo Daime, como sobrinho e discípulo do fundador da religião, o maranhense Raimundo Irineu Serra, com quem conviveu por 15 anos.

Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1890, em São Vicente Férrer (MA), onde passou a infância, adolescência e juventude. Por volta de 1912, chega ao Acre, para trabalhar nos seringais. Residiu no interior dos municípios de Xapuri, Brasiléia – onde começou a trabalhar na Comissão de Limites, órgão federal encarregado de delimitar as fronteiras do Brasil com o Peru e a Bolívia – e Sena Madureira. Em 1920, mudou-se para Rio Branco, onde ingressou na Guarda Territorial, corporação a qual pertenceu até 1932. De acordo com os relatos, foi em

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Brasiléia que ele soube da existência da bebida denominada ayahuasca, através de Antonio Costa, que lhe contou sobre um ayahuasqueiro peruano que, ao que tudo indica, o teria instruído e iniciado no uso do chá. (GOULART, 2008a, p. 1ss).

Daniel Serra também nasceu em São Vicente Férrer (MA). Em 1957, aos 17 anos de idade, é levado pelo tio, Raimundo Irineu Serra, para Rio Branco, no Acre. Com o convívio, passa a ver seu tio como pai, amigo, conselheiro e Mestre. Foram 15 anos de convivência e aprendizado, até a morte do Mestre, em 1971. No início do ano de 2006, Padrinho Daniel retornou ao seu estado com a missão de preservar a doutrina do tio e unir a irmandade do Santo Daime na terra onde, tanto ele, quanto o Mestre, nasceram, mas onde sua religião é pouco difundida. (Cf. Daniel Serra em São Luis. In: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=22113949).

Considerando tais informações, é possível perguntar-se sobre o que foi possível ao Padrinho Daniel aprender com Mestre Irineu nestes 15 anos de convivência. Como era o Mestre Irineu? Que lembranças marcantes Padrinho Daniel teria a relatar sobre ele? O que teria ele ensinado, em particular, ao sobrinho? Quais as impressões do sobrinho em relação ao tio, enquanto pessoa comum e enquanto fundador de uma religião? A estas (e outras) interrogações se pretende trazer possíveis respostas – ainda que de forma incompleta, pois elas estarão baseadas na memória e na oralidade de alguém que, por um lado pode testemunhar eventos, e, por outro, foi apre(e)ndendo os eventos, com testemunhas privilegiadas.

Assim, esta é uma pesquisa sui generes, pois, até o momento, não foi localizado nenhum trabalho que verse sobre o tema proposto – qual seja: coletar as memórias do sobrinho do fundador de uma das (poucas) religiões brasileiras, o maranhense Raimundo Irineu Serra, que com ele conviveu por 15 anos, em plena floresta amazônica. Este fato, por si só, justifica este estudo.

Especificamente, no entanto, busca-se aproximar o pesquisador do contexto atual dos estudos sobre o Santo Daime; descrever capítulos da história do Santo Daime em nosso país; registrar e compreender aspectos doutrinários da religião; registrar, promover e analisar as memórias de Daniel Serra sobre o Mestre Irineu, fundador do Santo Daime.

Para tanto, no desenvolvimento da pesquisa propriamente dita, foram usadas principalmente duas diferentes metodologias de pesquisa. A aproximação aos estudos sobre o Santo Daime, o registro de sua história e seus aspectos doutrinários, foram baseados em grande parte em fontes escritas, consultadas em

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livros, teses, dissertações, monografias, artigos, sites da Internet, documentários, reportagens. A História Oral foi usada para registrar e promover as memórias de Padrinho Daniel sobre o Mestre Irineu.

Como resultado da pesquisa, a apresentação da monografia está estruturada em três capítulos. O primeiro faz a demarcação do terreno pelo qual se seguirá, ou seja, apresenta os pressupostos da pesquisa, em termos dos campos da história, a História oral, o conceito de religião e a História das Religiões. O segundo capítulo busca uma compreensão histórico-sistemática do uso da ayahuasca e da religião do Santo Daime, considerando as práticas xamânicas e vegetalistas e o uso ritual da ayahuasca, bem como a história, os rituais e doutrinas do Daime. O terceiro capítulo, por fim, versa sobre a vida e a obra de Raimundo Irineu Serra e as memórias de Padrinho Daniel sobre este.

Ao final do trabalho, além das considerações julgadas mais importantes sobre o tema, se tem as fontes consultadas e, no anexo, um CD-ROM, contendo cópia da monografia em formato eletrônico, bem como das entrevistas realizadas, a fim de se preservar a fonte ouvida, o mais próximo do original. Por outro lado, esta atitude pode subsidiar novas pesquisas e estudos sobre o tema, utilizando as entrevistas realizadas.

Por fim, devo admitir existência de lacunas e imperfeições neste trabalho, pois estas são próprias do ser humano. Por outro lado, devido ao próprio desenvolvimento das ciências, torna-se impossível um trabalho completo e perfeito. Neste sentido, fico satisfeito em contribuir neste desenvolvimento, aguardando os próximos capítulos.

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1. DEMARCANDO O TERRENO

“Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?”, perguntou Alice. “Isto depende muito de onde você quer chegar”, respondeu o gato. Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas.

1.1 Os campos da história

Ainda que isto seja uma redundância é necessário lembrar que uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise de documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Michel de Certeau

Inicialmente, convém esclarecer que, ainda que esta seja uma pesquisa em história, considero de grande valia o conceito de interdisciplinaridade na busca e na interpretação das informações aqui relacionadas. Segundo LEIS (2005, p. 5), “num sentido profundo, a interdisciplinaridade é sempre uma reação alternativa à abordagem disciplinar normalizada (seja no ensino ou na pesquisa) dos diversos objetos de estudo”.

De acordo com GIL (1996, p. 147), a parte mais complexa na elaboração de uma pesquisa acadêmica é, justamente, a especificação da metodologia a ser adotada. Para Edwards (apud ALVES, 2007, p. 150), “o termo ‘método’, que significa literalmente ‘seguindo um caminho’ (do grego méta, ‘junto’, ‘em companhia’, e hodós, ‘caminho’), refere-se à especificação dos passos que devem ser tomados,

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em certa ordem, a fim de se alcançar determinado fim”. Metodologia, portanto, seria simplesmente o caminho que se quer seguir para chegar a um determinado lugar1.

Feita a consideração, passo a expor os procedimentos metodológicos e técnicos do trabalho. Para tanto, utilizo-me das idéias de BARROS (2004), que propõe organizar, no trabalho prático, os campos da história segundo três critérios: dimensões, abordagens e domínios, que correspondem, respectivamente, aos enfoques, métodos e temas. Assim, conforme BARROS (2004, p. 20), tem-se que:

uma dimensão implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em algo que se pretende ver em primeiro plano na observação de uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem implica em um ‘modo de fazer a história’ a partir dos materiais com os quais deve trabalhar o historiador (determinadas fontes, determinados métodos, e determinados campos de observação); um domínio corresponde a uma escolha mais específica, orientada em relação a determinados sujeitos ou objetos para os quais será dirigida a atenção do historiador.

BARROS (2004, p. 15) também nos lembra que “é verdade que não existem fatos que sejam exclusivamente econômicos, políticos ou culturais. Todas as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões separadas. Mas o ser humano, em sua ânsia de melhor compreender o mundo, acaba sendo obrigado a proceder a recortes e a operações simplificadoras, e é neste sentido que devem ser considerados os compartimentos que foram criados pelos próprios historiadores para enquadrar os seus vários tipos de estudos históricos” (p. 15).

No que tange às dimensões, opto pela História Cultural, pois esta “tem se voltado para o estudo da dimensão cultural de uma determinada sociedade historicamente localizada” (BARROS, 2004, p. 56), abarcando um campo dinâmico e controverso de estudos e proposições técnicas e teóricas. Dessa forma, a história cultural possibilita a mais variada gama de estudos: da cultura popular e letrada, das representações, das práticas discursivas, dos sistemas educativos ou de quaisquer

1

Convêm esclarecer, desde já, meus pressupostos científico-metodológicos ao dedicar-me a esta pesquisa. Levando em consideração o exposto por ALVES (2007), percebo que se tem dado à ciência e aos cientistas [historiadores] o status de seres pensantes, que afirmam única e definitiva verdade, enquanto que aos demais se tem atribuído o senso comum, ou seja, uma espécie de pensamento de segunda classe, não verdadeiro, desacreditado. Diante de tal constatação, assumo uma posição crítica diante das ciências (que inclui a história), quer seja da organização das ciências e do pensamento, do poder exercido em seu nome, das regras (muitas vezes inúteis) ditadas. Este trabalho, portanto, assumirá esta condição. Ainda assim, como sou obrigado, utilizo, como referenciais teórico-metodológicos, GIL (1996) e SEVERINO (2002); e, como já exposto, ALVES (2007), como referencial filosófico-metodológico.

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outros campos temáticos atravessados pelo conceito de cultura, entendida da forma mais abrangente possível.

Os estudos culturais teriam surgido “como uma crítica à História Social marxista dos anos 60, à História tradicional das idéias ("desencarnada" dos seres humanos e das relações sociais) e à tendência dos Annales de História quantitativa e sócio-econômica” (BELLOTTI, 2004, p. 97). Diante destas críticas, duas grandes aspirações se fizeram presentes: “os estudos lingüísticos e a Antropologia Cultural, que atentaram para a constituição da narrativa histórica e do papel do narrador/investigador na escrita da História” (BELLOTTI, 2004, p. 97). Neste sentido, foram associados à história cultural, dentre outros, Dominick LaCapra, Michel de Certeau, Hayden White, Roger Chartier, Joan W. Scott, Paul Gilroy, Stuart Hall, Edward Said, Homi Bhabha, Carlo Ginzburg, Michel Foucault, Jacques Derrida.

Apesar das grandes diferenças entre os autores acima, Mark Poster (apud BELLOTTI, 2004, p. 98), sistematizou algumas idéias que caracterizariam a história cultural:

1. A crítica a uma suposta agência humana responsável pela História – isto é, o questionamento da existência de um sujeito racional e consciente que tomaria a História pelas mãos. É a recusa do sujeito universal iluminista ("personagem" da História das idéias tradicional/História positivista); e das classes sociais como sujeito histórico transformador (História Social marxista/História Social da cultura);

2. O papel da linguagem – o reconhecimento de que os documentos históricos não são uma transparência de dados informativos sobre uma realidade concreta, mas sim textos a serem lidos – o que faz da História um discurso e, não, um relato de uma verdade histórica; 3. Recusa de categorias totalizantes e de grandes narrativas – em geral, os historiadores culturais não tomam como naturais categorias, como gênero, classe social, raça, etnicidade, identidade, experiência, e sim, buscam questionar como determinados grupos sociais constroem suas noções de gênero, classe social, raça; qual o sentido dessa construção, e quais as implicações que essas noções possuem para aqueles grupos.

Considerando tais informações, meu interesse vai no sentido de perceber o sujeito, produtor e receptor de uma determinada cultura, e os meios como a mesma é produzida e transmitida, ou seja, as práticas religiosas e os processos de institucionalização de uma determinada religião, a partir da figura do seu líder.

Acerca das abordagens, ou seja, quanto ao modo de fazer a pesquisa, prefiro utilizar, com relação às fontes, principalmente, a História Oral, pois quero registrar as memórias de Padrinho Daniel acerca do Mestre Irineu. Esta metodologia trabalha

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preferencialmente com testemunhos orais, ao invés dos tradicionais documentos escritos. Isto significa que se “irá produzir o essencial dos seus materiais de investigação e reflexão a partir da coleta de depoimentos” (BARROS, 2004, p. 132). No entanto, como é (praticamente) impossível a pesquisa utilizando-se apenas da História Oral, pretendo, ao mesmo tempo, fazer uso de pesquisa bibliográfica, filmes, internet, bibliotecas, arquivos. Abaixo, retomo este tema.

Por fim, quanto aos domínios, fixo este trabalho no âmbito da História das Religiões, que tem uma vasta possibilidade de desdobramentos (história de um sistema religioso, de uma Igreja, de formas de espiritualidade de sentir e/ou crer). A partir das memórias de um dos discípulos, proponho-me a escrever acerca do fundador de uma das poucas religiões brasileiras, o Santo Daime, bem como da gênese e desenvolvimento desta.

1.2 História Oral

Considerando que esta monografia usa o método de pesquisa da história oral em sua abordagem, faz-se necessário conceituá-la, bem como abordar a questão da oralidade e da memória, visto que andam juntas daquela.

História oral, segundo BOM MEIHY (2005, p. 17), é “um recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. Ela é sempre uma história do ‘tempo presente’ e também reconhecida como ‘história viva’”2. De modo semelhante, definem os pesquisadores do CPDOC (O que é História Oral. In:

http://www.cpdoc.fgv.br/historal/htm/ho_oqueehistoria.htm): “uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea”. É usada especialmente para “cobrir as

2

“A história oral implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. É isso que marca a história oral como ‘história viva’” (BOM MEIHY, 2005, p. 19). Às p. 17-18 são apresentas mais cinco definições de história oral, das quais destaco a quarta: “História oral é uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com o uso de depoimentos gravados em aparelhos eletrônicos e transformados em textos escritos” (p. 18, grifo meu).

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lacunas” que os documentos não permitem perscrutar3, bem como para refletir na relação presente-passado4, registrando a experiência de pessoas vivas.

A história oral como tal, é a forma mais antiga de produção da história, pois é praticada desde que se começou a fazer história. Como metodologia moderna, no entanto, foi utilizada pela primeira vez em 1947, na Universidade de Columbia, em Nova York, a partir da organização sistemática e diferenciada de um arquivo, desenvolvido por Allan Nevins, dando início a uma nova forma de tratamento de entrevistas.

A partir da década de 1950, começou a ser utilizada especialmente nos Estados Unidos, na Europa e no México. A década de 1960 deu-se o boom da história oral em todo o mundo, aumentando o interesse pela mesma. Na década seguinte, com os movimentos de contestação, é usada para se contar “a outra história”. Desde então, difundiu-se por todo o mundo, ganhando cada vez mais adeptos, em várias áreas do conhecimento, como a história, a antropologia, a sociologia, a ciência política, a pedagogia, a literatura, a psicologia, a enfermagem.

No Brasil, a metodologia foi introduzida na década de 1970, com a criação, na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, do Programa de História Oral do

CPDOC (O que é História Oral. In:

http://www.cpdoc.fgv.br/historal/htm/ho_oqueehistoria.htm; BOM MEIHY, 2005, p. 78ss)5. O movimento cresceu tanto que, em 1994, foi criada a Associação Brasileira de História Oral e, em 1996, a Associação Internacional de História Oral.

Na utilização prática, há três elementos que constituem a relação mínima da história oral, não havendo sentido em um sem o outro (BOM MEIHY, 2005, p.18-19): 1. O(s) entrevistador(es): é o diretor ou coordenador e pode também ser o

executante do projeto.

2. O(s) entrevistado(s): pessoa(s) a ser ouvida, de acordo com o projeto, que deve(m) ser reconhecida(s) como colaborador(es).

3. A aparelhagem de gravação: meios eletrônicos de gravação e preservação da(s) entrevista(s).

3

Cf. BOM MEIHY (2005, p. 28), “há, comumente, três possibilidades para se explicar a fundamentação documental da história oral: 1. quando não existem documentos; 2. quando existem versões diferentes da história oficial; e, 3. quando se elabora uma ‘outra história’”.

4

“A presença do passado no presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nessa medida, a história oral não só oferece uma mudança do conceito de história, mas, mais do que isso, garante sentido social à vida de depoentes e leitores, que passam a entender a seqüência histórica e se sentir parte do contexto em que vivem” (BOM MEIHY, 2005, p. 19).

5

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O componente central da história oral é a oralidade6, ou seja, “a maneira pela qual se transmite a memória” (ZANNONI, 2004, p. 116). A história se interessou pela oralidade, pois, a partir dela, é possível obter e desenvolver análises e conhecimentos novos, bem como fontes novas e/ou inéditas. A história oral coloca no centro de sua análise a visão e a versão das experiências dos agentes históricos, muitas vezes pessoas simples do povo, dando-lhes voz e vez.

Memória, por sua vez, pode ser tanto um fenômeno individual, quanto coletivo e social. Pollak (apud ZANNONI, 2004, p. 117) define:

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. (...) podemos finalmente arrolar os lugares. Existem lugares da memória, lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal, mas também podem não ter apoio no tempo cronológico.

Assim, a memória (e, conseqüentemente, a história oral) teria as seguintes características: “seletiva (escolhe o que deve ser lembrado ou não), um fenômeno construído (consciente ou inconscientemente), um elemento constituinte do sentimento de identidade, um valor que, junto à identidade, é disputado em conflitos sociais e intergrupais” (Pollak apud ZANNONI, 2004, p. 117). Ou seja, o resgate da memória7 também traz consigo a subjetividade, a construção/elaboração de uma narração, a seleção de fatos e impressões, a nostalgia, o saudosismo, o passadismo, as mentiras, os esquecimentos, as deformações, o que alguns críticos enxergam como problema, mas que não invalida o uso da metodologia:

Por ser uma construção baseada em referentes do passado, a história oral sempre abrigará uma visão redentora e passional do passado ou dos fatos. O teor nostálgico transparente nas palavras do

6

BOM MEIHY (2005) faz distinção entre oralidade e fontes orais. Enquanto estas se referem a “diversas manifestações sonoras, gravadas, decorrentes da voz humana e que se destinam a algum tipo de registro de arquivamento ou de estudos” (p. 21), aquela é “o conjunto amplo de expressões verbais e compreende a mais larga gama de manifestações sonoras humanas” (p. 20). A distinção estaria no fato de que “a primeira é manifestação espontânea, sem intenção de registro; a segunda só é ‘fonte’ porque foi registrada mecanicamente com intenção de registro” (p. 20). A oralidade, no entanto, pode também se tornar uma fonte, “desde que seja materializada em gravações e usada intencionalmente” (p. 21).

7

BOM MEIHY (2005, p. 56), observa: “A rigor, não existe resgate de memória, até porque memória não é uma coisa ou objeto concreto e, por isso, resgatável”.

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narrador faz parte do comportamento social e nele se explica. Em vez de ser preterido, exatamente por isso deve ser considerado fator de análise.

(...)

Mentiras, esquecimentos e deformações são matéria da boa história oral, que, mais que identificá-los (os entrevistados), deve também explicar suas razões.

(...)

A história oral se apresenta como forma de captação de experiências e pessoas dispostas a falar sobre aspectos de sua vida – quanto mais elas contarem a seu modo, mais eficiente será seu depoimento (BOM MEIHY, 2005, p. 56-57).

A metodologia de pesquisa em história oral, no entanto, segundo os pesquisadores do CPDOC (O que é História Oral. In:

http://www.cpdoc.fgv.br/historal/htm/ho_oqueehistoria.htm), não deveria ser a única utilizada em determinada pesquisa, mas deveria estar conjugada com outras, pois, “as entrevistas em história oral são tomadas como fontes para a compreensão do passado, ao lado de documentos escritos, imagens e outros tipos de registro”.

BOM MEIHY (2005, p. 46-52), no entanto, faz uma longa discussão sobre esta questão. Segundo ele, a história oral pode ser usada como uma ferramenta, quando os depoimentos serviriam como simples exemplos – e, neste caso, “nem merecem ser reconhecidos como história oral” (p. 51). Ao usá-la como técnica, supõem-se a existência de uma documentação paralela, escrita ou iconográfica, sendo que os depoimentos seriam uma espécie de complementos a tais documentos. E, finalmente, como método, “a história oral se ergue segundo alternativas que privilegiam os depoimentos como atenção central dos estudos. Trata-se de focalizar as entrevistas como o ponto central e de partida para as análises” (p. 49).

Considerando a discussão, penso que o trabalho com história oral (como com qualquer outra metodologia) exige um conhecimento anterior, ou seja, pesquisa e levantamento de dados prévios, para posterior preparação das entrevistas, transcrição e, por fim, utilização nos trabalhos – porém, estes últimos é que darão tempero ao projeto, modificando seu gosto.

Note-se, por fim, que as entrevistas “caracterizam-se por serem produzidas a partir de um estímulo, pois o pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas, geralmente depois de consumado o fato ou a conjuntura que se quer investigar” (O que é História Oral. In: http://www.cpdoc.fgv.br/historal/htm/ho_oqueehistoria.htm). Isso torna o estudo da história mais concreto e próximo, facilitando a apreensão do

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passado pelas gerações futuras e a compreensão das experiências vividas pelos outros.

Considerando o exposto até aqui, penso que já é possível ao leitor ter um prévio conhecimento teórico em história oral, seus benefícios e suas dificuldades – até porque é impossível sistematizar tudo o que é relevante ao tema8. Neste sentido, BOM MEIHY (2005, p. 45) adverte: “Reclama-se com razão que a maioria dos trabalhos de história oral insiste na fundamentação teórica. O reconhecimento deste fato leva a crer que o lado acadêmico desta manifestação de conhecimento ainda exija fortes justificativas que amparem os casos analisados”.

1.3 O conceito de religião e a História das Religiões

Considerando a diversidade de conceitos e definições sistematizados pelos mais diversos estudiosos e correntes de pensamentos9, atualmente em voga nos meios acadêmicos, torna-se necessário clarear a idéia de religião.

A religião, segundo meu entendimento, se põe no terreno da sociedade e da cultura10. Ela é parte do sistema de vida de um povo. Enquanto cultura, a religião envolve tanto as crenças como as condutas dos indivíduos que vivem em determinada sociedade – entendendo cultura como “o conjunto de modos de fazer, interagir e representar desenvolvido pelos homens como uma solução ou resposta para as necessidades de sua vida em comum” (MACEDO, 1989, p. 11). Ou seja, em todas as sociedades, os seres humanos não só elaboram formas variadas de compreender e explicar a sua vida, como também agem de acordo com o que elaboraram – e a religião é uma dessas formas.

Neste sentido, ao adentrar o campo das religiões, não se pretende discutir certo e errado; verdade acerca de determinada religião; a existência real ou não de Deus. “O que nos interessa é tentar compreender melhor a maneira de os homens

8

BOM MEIHY (2005, p. 53ss), discute, por exemplo, acerca da cientificidade da história oral. Considerando minha observação à nota 1, acima, não reproduzo a discussão. Mas, ao leitor interessado, deixo a indicação.

9

Para uma breve história da História das Religiões, ver ALBUQUERQUE (2008) e GEERTZ (2003).

10

Segundo ALBUQUERQUE (2008, p. 8), “Atualmente as abordagens históricas da religião se ancoram, de um lado, na história cultural e, de outro, na história do imaginário. Tanto uma como outra, fundadas em noções ambíguas: a história do imaginário contempla tanto as imagens quanto a fantasia; a história cultural é tomada como sinônimo das altas produções de sentimentos estéticos e, também, de qualquer transformação que o homem realize na natureza e suas criações espirituais, constituindo um mundo próprio, o da cultura”.

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organizarem sua experiência a partir do momento em que acreditam na existência da divindade” (MACEDO, 1989, p. 12). E aqui está a importância do estudo acerca da religião:

A religião é parte fundamental do sistema de vida de um povo exatamente porque fornece o quadro de representações que funda ou sobre o qual se assenta a noção de verdade original desse sistema. Ela fornece uma explicação última para o fato de a vida social humana ser como é. Ao mesmo tempo, fornece aos homens uma perspectiva de como o mundo deveria ser. Dessa maneira, a religião faz parecerem verdadeiras e corretas as concepções que moldam o modo de ser coletivo porque estas são vistas como algo que emana de uma ordem sobre-natural (MACEDO, 1989, p. 13).

Rubem ALVES vai além. Para ele, a religião “fala sobre o sentido da vida. Ela declara que vale a pena viver. Que é possível ser feliz e sorrir” (2005, p. 119). Ou seja, que ainda há esperança para as crises e incertezas da vida humana. Portanto, para ele, o fundamental da religião é que ela possibilita ao ser humano viver em meio à esperança, num mundo desesperançado.

Karina BELLOTTI segue nesta mesma trilha, porém, aproxima história das religiões e cultura, do ponto de vista do historiador. Neste sentido, para ela, é necessário se compreender religião de forma ampla, possibilitando

o estudo de diferentes tradições e manifestações religiosas sem que se projete sobre elas os símbolos e discursos da tradição ocidental judaico-cristã. E nem que se enxergue uma "essência" primordial que ligaria todas as "religiões" de todos os tempos e lugares. Além disso, um conceito amplo de religião permitiria o estudo de assuntos ignorados pela História eclesiástica e pela História das idéias, como as manifestações populares e as religiosidades de pessoas não filiadas a nenhuma instituição religiosa. Esse conceito existe e é bastante utilizado pelos historiadores, por influência da Antropologia e da História Cultural: "religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres sobre-humanos dentro de universos históricos e culturais específicos." (2004, p. 99-100).

Então, ao se entender a religião não mais como apenas uma sistematização teológica, mas como um sistema de crenças e práticas,

constatamos que religião não é somente Teologia, pois é necessário compreender as relações de poder que definem o que é correto e o que é errado dentro de uma tradição institucionalizada. Do mesmo modo é importante ter em mente que, além desses lugares de poder, há práticas religiosas não institucionalizadas, tanto comunitárias quanto individuais – estas, mais conhecidas como religiosidades11 (BELLOTTI, 2004, p. 100).

11

Por religiosidade, BELLOTTI (2004, p. 115) entende: “a forma e o sentimento com que cada indivíduo vive suas crenças e práticas religiosas, independente de ele estar filiado a uma instituição religiosa. Tal qual a

(20)

Portanto, ao estudar a história das religiões sob o ponto de vista da cultura, torna-se importante compreender como diferentes crenças e práticas fazem sentido para as pessoas e os grupos que as adotam, em contextos históricos específicos, bem como a maneira segundo a qual elas surge(ira)m e se desenvolve(ra)m, como processo histórico, pois, “a religião é algo intrínseco à vida de um povo e como tal deve ser estudada” (MACEDO, 1989, p. 13).

Considerando a diversidade de possibilidades de estudos em história das religiões, GEERTZ (2003, p. 31-35) exemplifica com os seguintes temas e tópicos: 1. Religião e sociedade: refere-se ao inter-relacionamento entre religião e

sociedade, destacando-se ensaios sobre globalização, secularização, autoridade, violência, política, pluralismo, lei, estado, ecoturismo, guerras e direitos humanos, sincretismo, diáspora, identidade étnica.

2. Religião e cognição: refere-se à introdução da teoria cognitiva no estudo da religião, segundo o pensamento de filósofos, antropólogos psicológicos, psicólogos e outros estudiosos que buscam explicar a existência social por meio de mecanismos cognitivos. Estuda-se: mente, consciência, cérebro, categorização, representação, simbolização, cura, tradição, metáfora, processamento de informações, memória, conhecimento, estruturas de linguagem, processos de linguagem e pensamento, linguagem religiosa, comportamento, percepções, construção social da realidade, visões, alucinações, mística, possessões.

3. Novos recursos, como a televisão, filmes, vídeos, Internet; e, outros recursos nem tão novos, como a iconografia, dança, música, arte, teatro, estética.

4. Fenômenos religiosos, como a magia, a cura ocultista, o simbolismo, o papel do corpo, as peregrinações em perspectiva local e global – ou mesmo o fenômeno religioso em si.

5. Religiões diversas: relaciona-se à religiões específicas, como “as igrejas autóctones africanas, o cristianismo, o islamismo, as religiões em determinadas áreas, as religiões na Índia e na Ásia, e assim por diante” (GEERTZ, 2003, p. 35).

identidade, a religiosidade pode ser inconstante, sujeita a questionamentos existenciais, a pressões e incentivos de um grupo, a circunstâncias”.

(21)

2. XAMANISMO E DAIME: HISTÓRIA E DOUTRINA

...após conhecer o uso da ayahusca... Mestre Irineu passou a ter mirações, onde uma figura feminina identificada como a Rainha da Floresta ou Nossa Senhora da Conceição lhe fazia uma série de revelações. Foi assim que aprendeu a chamar a bebida de Daime, relacionando-a ao verbo dar e às invocações “Dai-me amor”, “Dai-me luz” e “Dai-me força”, que seriam características da doutrina que surgia. Edward MacRae, Guiado pela lua: xamanismo e uso ritual da ayahusca no culto do Santo Daime

2.1 Xamanismo e uso da ayahuasca

Antes de falar do Santo Daime propriamente dito, é conveniente verificar os antecedentes do uso da ayahuasca na Amazônia12, região de seu desenvolvimento. Lá, ela vem sendo usada cerimonialmente há muito tempo13 pela população local, sejam indígenas ou mestiços/cablocos.

2.1.1 O xamã

12

Como fonte principal deste subtítulo, utilizo MACRAE (1992, p. 27ss), salvo indicação contrária.

13

Segundo MACRAE (1992, p. 35), “o uso de psicoativos para variados fins, mas principalmente na busca de cura e contato com o divino, ocorre historicamente em muitas regiões do mundo. Os textos sagrados da Índia e os poemas épicos de Homero, na Grécia, trazem relatos sobre o uso de plantas e outras substâncias naturais para provocar alterações de consciência. Até em regiões tão ermas quanto a Sibéria usou-se cogumelos alucinógenos para fins xamânicos.

Entretanto, é nas Américas que se concentra o maior número dessas substâncias, e onde até hoje mais freqüentemente se faz uso delas. Seu emprego nesta região do mundo está mais ligado a fins sagrados, não recreacionais, para validar ou reificar a cultura, e não como uma maneira de temporariamente escapar dela. É possível que a maioria das tribos indígenas da região das bacias do Amazonas e do Orenoco use preparados feitos de uma ou mais plantas psicotrópicas em funções centrais da sua vida religiosa e cultural”.

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Dentre os indígenas amazônicos há uma figura com funções, técnicas e atributos especiais: o xamã, responsável por “estabelecer contato com o mundo sobrenatural, buscando influir na cura de doenças, servir de oráculo, proporcionar bons resultados em caçadas, evitar catástrofes naturais e organizar cerimônias religiosas” (MACRAE, 1992, p. 28)14. Geralmente são homens com poderes adquiridos por vocação pessoal, a partir de contato com espíritos, através de inspiração ou após iniciação15, sob a orientação de um mestre. Seu poder é concebido como uma substância mágica, que pode estar contida em objetos (espinhos, setas, cristais). Por vezes, é visto com ambivalência, ou seja, atribui-se-lhe o poder de curar e o de fazer o mal.

Os xamãs são grandes conhecedores da floresta, das propriedades das plantas, usadas especialmente para curas, e da utilização dos enteógenos16, usados para entrar em contato com o mundo espiritual. Interessante notar que, na Amazônia legal,

uma das substâncias usadas com mais freqüência é o chá produzido a partir da combinação do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria viridis, ao qual podem ser adicionadas várias outras plantas. Este preparado recebe uma gama de nomes, como natema, yajé, nepe, kahi, caapi. Mas é genericamente conhecido pelo termo quíchua ayahuasca, que significa “cipó dos espíritos” (MACRAE, 1992, p. 28).

Tal preparo, conforme MACRAE (1992, p. 29) pode ter diferentes usos: • Sobrenatural:

o Rituais mágicos e religiosos: receber orientação divina, se comunicar com os espíritos que animam as plantas, receber um espírito protetor.

o Adivinhação: saber se estranhos estão vindo, descobrir o paradeiro e os planos dos inimigos, infidelidade conjugal, prever o futuro.

• Tratamento de doenças: determinar a causa de uma moléstia e/ou curá-la.

14

Segundo MACRAE (1992, p. 18), “para se entender o conceito antropológico de xamã, é preciso lembrar que a palavra teve origem na tribo dos Tungs da Sibéria, mas denota práticas largamente difundidas em todo o planeta. Durante um rito xamanístico, um visionário inspirado, o xamã, entra em transe profundo e, em nome da sociedade à qual serve e com a ajuda de espíritos protetores, estabelece relações com as entidades espirituais. O xamã, então, viaja em direção a uma realidade extraordinária para ajudar os membros de sua comunidade. Isso pode ser feito com a intenção de diagnosticar/tratar certos males ou com o propósito de adivinhação/profecia, ou ainda com o objetivo de conseguir força através do contato com espíritos, animais de poder, aliados tutelares e outras entidades espirituais”.

15

Conforme MACRAE (1992, p. 28), “esta iniciação consiste em um período de isolamento, com dieta especial e abstinência sexual”.

16

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• Prazer e interação social: produzir estados prazerosos, reforçar a atividade sexual, atingir o êxtase, facilitar a interação social.

Atualmente, mesmo com as mudanças sociais que a região [amazônica] passou nos últimos séculos e o êxodo dos habitantes da floresta em direção às cidades, as práticas xamanísticas continuam vivas na mentalidade e no dia-a-dia das pessoas, ainda que tenham recebido influências diversas. O conhecimento indígena sobre as plantas, seu uso e sua relação com o mundo espiritual, sobrevive graças aos curandeiros, também chamados de vegetalistas (em virtude da origem dos seus conhecimentos, atribuída aos espíritos de certas plantas [vegetais]), que seriam as verdadeiras professoras dos xamãs.

Estas plantas são chamadas de doutoras17, e a elas são atribuídos os conhecimentos de medicina e os elementos mágicos – cantos, melodias e a baba –, ferramenta de trabalho dos xamãs. O professor vegetal mais importante é a ayahuasca18, mas vários outros são utilizados, geralmente adicionados à mistura básica do cipó e da folha, pois acredita-se que através dela pode-se alcançar o espírito das plantas para usufruir de seus poderes curadores (MACRAE, 1992, p. 30).

Tal conhecimento passou dos xamãs indígenas aos mestiços, sobretudo seringueiros, que viviam isolados na floresta e dele necessitavam para cura. Por esse motivo também são conhecidos como curandeiros, vegetalistas, mestres, doutores, médicos, velhinhos, vovozinhos, bancos, bruxos, feiticeiros...

2.1.2 O vegetalista

O vegetalista não se identifica com alguma tribo ou comunidade específica, nem é reconhecido como tal em ritual público, como acontece com o xamã. Sua

17

Para MACRAE (1992, p. 36), “As plantas ‘doutoras’ ou ‘plantas que ensinam’ são aquelas que: 1. produzem estados alterados de consciência;

2. alteram o efeito da ayahuasca, de alguma forma, quando cozidas com ela; 3. produzem tontura;

4. têm fortes qualidades eméticas ou catárticas; 5. provocam sonhos especialmente vívidos.”

18

“Os índios da Amazônia dizem tomar ayahuasca para conhecer o ‘mundo verdadeiro’, o mundo dos espíritos de onde vem todo conhecimento. Os vegetalistas consideram-na uma ‘doutora’, um ser inteligente, de espírito forte, com o qual é possível estabelecer relações. Acredita-se que dela pode-se aprender muito, uma vez seguidos seus preceitos.

A ayahuasca pertence à classe de plantas que têm ‘mães’ ou espíritos protetores, uma idéia comum entre vários grupos indígenas da região”. (MACRAE, 1992, p. 36).

(24)

aceitação pela comunidade é um processo gradual e individual. Sua iniciação é questão de escolha pessoal ou vocação, geralmente através do uso do tabaco e da ayahuasca – é a própria planta quem ensina o aprendiz: “as plantas comunicam-se com ele através de visões e sonhos e, além de ‘sabedoria’, transmitem-lhe também ‘força’, ou seja, qualidades físicas como resistência a ventos, chuvas e inundações” (MACRAE, 1992, p. 32).

No período de aprendizagem/iniciação, um dos principais aspectos a serem observados são os preceitos dietéticos e sexuais, que teriam função purificadora, essencial para que as plantas revelem suas lições. O tempo de observância pode variar de alguns dias a alguns anos.

Os vegetalistas tendem a ser marginalizados e desprezados pelas classes dominantes, porém, respeitados em sua comunidade. Os de idade avançada geralmente dispõem de invejável força física, saúde, lucidez, conhecimento, talento artístico, memória extraordinária. Os mais novos, por sua vez, são mais voltados para a vida urbana, substituindo o conhecimento das plantas pelas práticas exotéricas, sobretudo de origem européia.

2.1.3 Cultura religiosa amazônica

Convêm considerar, aqui, também, um pouco da cultura religiosa do ribeirinho caboclo amazônico (Cf. MACRAE, 1992, p. 37-44). Em sua mente persistem crenças de origem indígena, segundo as quais seres espirituais habitam a floresta, a água, o ar, bem como idéias sincréticas advindas do catolicismo, espiritismo, esoterismo e de religiões africanas. Sua vida é influenciada para o bem ou para o mal por entidades super-naturais, sob a forma de animais, xamãs índios ou mestiços, negros, empresários estrangeiros brancos, seringalistas, princesas, anjos, oficiais do exército, médicos, extraterrestres, seres que vivem em reinos encantados. Cada espécie animal teria uma “mãe” como entidade protetora (que seria capaz de castigar), como também os rios, igarapés, poços, portos, plantas.

Geralmente o ribeirinho amazônico se considera católico, porém, na região, há a presença de religiões africanas, espiritismo e, mais recentemente, protestantismo. “Em geral, a religiosidade amazônica se manifesta sobretudo no

(25)

culto dos santos ou, mais propriamente, de suas imagens locais, que são investidas com caráter de divindade com poderes de ação imediata” (MACRAE, 1992, p. 38).

2.1.4 O uso ritual da ayahuasca pelos vegetalistas

Na Amazônia Ocidental a ayahuasca é utilizada, usualmente, pelo vegetalista, em sessões de cura, nas quais reinam um clima de encantamento, “próprio ao manuseio de substâncias sagradas e à preparação do espírito para experiências transcendentes” (MACRAE, 1992, p. 50). Tais sessões, também conhecidas como trabalho, não são somente para cura. Segundo MacRae, “é comum vegetalistas se reunirem entre si de duas a quatro vezes por mês, para beber ayahuasca juntos, aprenderem com suas visões e renovarem suas forças” (1992, p. 50).

O início do ritual pode ser considerado já no momento do preparo da bebida. Geralmente o próprio vegetalista, no dia anterior à sessão, coleta o cipó e as folha com todo cuidado e respeito e, no dia seguinte, os prepara em local próprio, reservado unicamente para tal fim, de forma cerimonial19.

A cerimônia, dirigida pelo vegetalista, é realizada à noite. Dela participam pacientes em busca de cura, pessoas em busca de contatos transcendentes e acompanhantes e observadores/curiosos. Os que tomam ayahuasca devem ter cumprido medidas dietéticas.

O trabalho começa com a fala do dirigente, que pode se alongar. Sentados ao chão, começam uma série de orações. O vegetalista, então, “pega... a garrafa com a bebida, assopra fumaça de tabaco dentro e sobre ela e invoca o espírito da ayahuasca, pedindo que envie determinadas visões aos participantes” (MACRAE, 1992, p. 53). A bebida é tomada e as luzes são apagadas (não totalmente) ou diminuídas. Todos ficam em silêncio num período de 20 a 30 minutos. Sentindo a chegada da mareação20, o dirigente começa a tocar maracá e assobiar ou cantar

19

MACRAE (1992, p. 50ss), descreve em pormenores o processo.

20

(26)

ícaros21, que podem ser em línguas européias ou indígenas, para aumentar os efeitos da mistura.

O efeito da bebida parece vir em ondas, a cada intervalo de 40 a 60 minutos, podendo haver um intervalo entre elas. Após quatro ou cinco horas o efeito da bebida começa a cessar.

Tomar a ayahuasca “é concebido como uma maneira de ‘pôr para fora’ as doenças, estados de espírito negativos e outras fontes de problemas e infortúnios” (MACRAE, 1992, p. 54). O ayahuasquero, inclusive, é julgado pela força da bebida que serve. Esta deve produzir uma “limpeza interna”, seja através do vômito ou da diarréia, e conduzir a visões nítidas e boas. Além disso, ele também deve ser capaz de controlar as visões dos demais participantes, fazendo com que cada um responda aos seus questionamentos e afastando as experiências desagradáveis.

2.2 A história do Santo Daime

O movimento religioso do Santo Daime começou no interior da floresta amazônica, nas primeiras décadas do século XX, com o maranhense Raimundo Irineu Serra. Foi ele que recebeu a revelação de uma doutrina de cunho fortemente cristão/sincrética, a partir da bebida ayahuasca, posteriormente denominada Santo Daime.

A bebida, de uso bastante difundido pelos povos indígenas da região, é obtida pela cocção de duas plantas, o cipó “jagube” ou “mariri” (banesteriopsis caapi) e a folha “rainha” ou “chacrona” (psicotrya viridis), ambas nativas da floresta tropical. Os princípios ativos contidos na bebida são os alcalóides hormina, harmalina, d-leptaflorina, presentes no cipó, e a dimetiltripamina, na folha. MACRAE (2000, p. 12), afirma que,

estudos farmacológicos sugerem que a harmina e a d-leptaflorina (ambas beta-carbolinas) inibem a produção da enzima monoamina oxidase. Esta, presente normalmente no sistema digestivo, tem a função de decompor ou oxidar compostos do tipo da triptamina. Em

21

Melodias ou cânticos mágicos que servem para evocar o espírito de uma planta professora ou um xamã morto, viajar por outros mundos, curar, caçar, pescar, apurar ou modificar as visões produzidas pelos enteógenos.

(27)

sua ausência, esse alcalóide chega ao cérebro e é responsável pelos efeitos psicoativos da bebida.22

Sob o efeito da bebida, em contextos rituais, pode-se ter uma grande variedade de experiências visionárias23, auditivas, insights, emoções, sentimento da presença do Absoluto24. Por esse motivo, a ayahuasca, costumeiramente chamada de alucinógena (que provoca alucinação, ilusão, falsidade), tem sido recentemente denominada por estudiosos como de propriedade enteógena, termo provindo do grego entheos, que significa deus dentro. Entre os gregos, era usado para designar a inspiração profética ou poética. Neste sentido, como termo cultural, “enteógeno significa aquilo que leva a alguém a ter o divino dentro de si” (MACRAE, 1992, p. 16).

No início do século passado, o costume ritual da bebida chegou às capitais do Acre e Rondônia, assimiladas na vida religiosa da população, num processo sincrético com catolicismo, espiritismo, esoterismo e religiões africanas. Segundo LABATE (2008, p. 3-4), a partir dos anos de 1930, na região de Rio Branco, desenvolveu-se o culto do Santo Daime propriamente dito, organizado por Raimundo Irineu Serra. Este preserva o caráter sagrado de festa e de dança, herança do catolicismo popular. Em seu panteão mítico convivem Deus, Jesus, A Virgem Maria, os santos católicos, entidades oriundas do universo afro-brasileiro e seres da natureza (sol, lua, estrelas). O ritual consiste, basicamente, no cântico coletivo de hinos, considerados revelações do Astral. Os trabalhos realizados pelos daimistas podem ser de “concentração” (com períodos de meditação e silêncio) ou de “bailado” (execução de uma coreografia simples). Em tais ocasiões pode haver também um êxtase coletivo, movido pela ação do daime.

Para os daimistas, as pessoas possuiriam, dentro de si, elementos de uma “Memória Divina”; ao mesmo tempo, podem, através do seu comportamento, alterar seu carma, evoluindo espiritualmente. Em consonância com os sistemas xamânicos, existiria uma espécie de “guerra mística” entre as pessoas e os seres espirituais. Os

22

Uma revisão sobre as bases neuroquímicas e farmacológicas da ayahuasca pode ser visto em SANTOS (2007).

23

Tais experiências, cf. ARAUJO (2008, p. 5), são denominadas de miração, ou seja, “o estado alterado de consciência propiciado pela ingestão do daime. A miração traz acesso a conteúdos da psique do indivíduo, não só de seu consciente e inconsciente pessoal, mas muitas vezes também a aspectos que podem ser considerados pertencentes a uma ‘inteligência coletiva’ (...). Ou seja, a miração abre espaço para a ‘comunicação’, a ligação com entidades que fazem parte dos mitos cristãos, indígenas e afro-brasileiros, o que os torna muito presentes na vida destas pessoas e gera propósitos de estruturação social”.

24

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daimistas são concebidos como soldados do Exército de Juramidã, empenhados em uma “batalha astral” entre o bem e o mal. Todo corpo ritual do culto é organizado seguindo uma concepção militar: utilização de uniforme (“farda”), maracás (“arma do guerreiro”), ordem, disciplina.

Considerando que a história desta nova religião se confunde com a própria história do Mestre Irineu, este tema será aprofundado no próximo capítulo.

Na década de 1940, como dissidência daquele culto, surgiu a Barquinha, liderada por Daniel Pereira Matos (cf. LABATE, 2008, p. 4-5). Esta, talvez, seja a linha dos atuais usuários da ayahuasca mais eclética25, recebendo influências, inclusive, da Umbanda. Nela, pratica-se tranquilamente a ingestão do daime e a incorporação de entidades espirituais, expressando os três planos cosmológicos: o astral, o terreno e o marinho. O plano astral é considerado o mais elevado, povoado por entidades com maior grau de luz. Os planos terreno e marinho são entidades com um menor grau de luz: seres encantados, pretos velhos, indígenas, sereias, golfinhos, serpentes aquáticas, príncipes, fadas.

A “Barca” pode ter dois significados: por um lado, a missão deixada por seu fundador, Daniel Pereira Matos, e, por outro, a viajem que cada um dentro da grande viagem de suas vidas. O movimento se define como a própria igreja do grupo, enquanto seus adeptos seriam “os marinheiros do mar sagrado”. Seu calendário ritual é extenso e a diversidade de seus “trabalhos” é mais ampla. Além disso, há trabalhos de aplicação de passes, doutrinação de almas, batismo de entidades, bailado e concentração.

E, finalmente, em 1962, apareceu a União do Vegetal (UDV), em Porto Velho, fundada por José Gabriel da Costa, o “Mestre Gabriel” (cf. LABATE, 2008, p. 5-7). Este grupo, onde a influência cristã é a menor, se dedica, além da devoção, hinos e orações, especialmente aos trabalhos de “concentração mental” e “evolução espiritual”. Possui uma forte relação com o espiritismo kardecista, através das noções de evolução espiritual, reencarnação e cientificação (estado de perfeição total, que pode ser alcançado pelo espírito). Em suas sessões, apenas os dirigentes cantam as “chamadas” (cânticos que chamam as forças da natureza), deixadas pelo Mestre Gabriel. Sua cosmologia é composta por uma série de histórias (espécie de parábolas), que incluem figuras de distintos universos religiosos, como a Princesa

25

Um estudo comparativo entre os cultos do Santo Daime e da Barquinha, destacando conflitos, diferenças e semelhanças, é apresentado por GOULART (2008b, p. 1-13).

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Samaúma, a Rainha da Floresta, Iemanjá, Salomão (o autor de toda a ciência), Tiauco y Caiano (o primeiro ayahuasqueiro).

A UDV está organizada segundo uma estrutura hierárquica secreta. Há quatro níveis de iniciação: discípulos, corpo instrutivo, corpo do conselho e quadro de mestres. A transmissão do conhecimento acontece via oral. Os rituais são realizados duas vezes ao mês (com exceção de algumas datas anuais especiais e das sessões instrutivas, restritas ao nível hierárquico superior) e duram quatro horas. Durante as sessões, além do cântico das “chamadas” e das histórias, existe o silêncio, as músicas e a formulação de perguntas por parte dos fiéis e de respostas por parte dos mestres.

Como o objeto deste estudo diz respeito especificamente ao Santo Daime, não se abordará o culto da Barquinha e da União do Vegetal. Sugere-se ao leitor interessado verificar a bibliografia a respeito dos mesmos26. Atualmente, estas são as três [principais] correntes religiosas que fazem uso ritual da ayahuasca no Brasil.

2.2.1 Legalidade27

A partir da década de 1980, devido principalmente ao movimento expansivo do Santo Daime, várias foram as iniciativas em busca da legitimidade e da legalidade do uso religioso do daime. Em final de setembro de 1981, um rapaz, que vivia na Colônia 5 Mil, comunidade original do Padrinho Sebastião, foi preso pela polícia de Rio Branco por portar maconha. Segundo LABATE (2008, p. 20), “este pode ser definido como o marco inicial dos conflitos entre a polícia e a vertente religiosa liderada pelo P. Sebastião”. Como resultado, em 1982, nos momentos finais da ditadura no Brasil, o Ministério da Justiça formou uma Comissão, composta por estudiosos de diversas áreas (médica, antropóloga, sociológica, histórica, psicóloga) e representantes da Polícia Federal e Exército, a fim de averiguar denúncias de

26

Uma farta pesquisa foi desenvolvida por GOULART (2004). O capítulo II (p. 113-180) é dedicado a Barquinha e o seguinte (p. 181-253) a União do Vegetal, onde se faz referência às inúmeras obras sobre os cultos, além de entrevistas e fontes orais.

27

Este subtítulo está baseado, principalmente, em LABATE (2008, p. 19-25) e no blog de André DAMÁZIO, Santo Daime: legalidade do Santo Daime. Disponível na Internet. In: http://oqueesantodaime.blogspot.com/.

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abusos e ilegalidades. A Comissão visitou comunidades daimistas na Amazônia, para conhecer in loco as práticas religiosas e o vegetal.

Porém, em fevereiro de 1985, a Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde incluiu, através da Norma 02/85, a Banisteriopsis Caapi entre as drogas integrantes da lista de produtos proibidos. Tal inclusão, no entanto, foi feita segundo seus próprios critérios e responsabilidades, sem o parecer do Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), seu órgão superior. A União do Vegetal, então, encaminhou pedido de anulação da medida ao CONFEN, que determinou a formação de um novo grupo interdisciplinar para estudar o tema.

O uso do chá continuou proibido até o início de 1986, quando o referido grupo emitiu um parecer sugerindo a suspensão provisória da inclusão da ayahuasca na lista de entorpecentes, até a conclusão dos seus trabalhos.

Em 26 de agosto de 1987, o Grupo de Trabalho do CONFEN dá parecer favorável ao uso ritual da ayahuasca, não o definindo mais como crime, concluindo que “os rituais religiosos realizados com a bebida sacramental Santo Daime/Ayahuasca não traziam prejuízos à vida social e sim, contribuíam para a sua maior integração, sendo notórios os benefícios testemunhados pelos membros dos grupos religiosos usuários” (cf. blog de André DAMÁZIO, Santo Daime: legalidade do Santo Daime. Disponível na Internet. In: http://oqueesantodaime.blogspot.com/). O parecer, no entanto, desaprovou o uso experimental e de natureza científica da ayahuasca28. Posteriormente, também foram divulgados os resultados de pesquisas farmacológicas e psicossociais que concluíram pela inexistência de riscos de dependência no uso da ayahuasca em contexto ritual.

Em novembro de 1991, foi elaborada, por parte de algumas entidades usuárias da ayahuasca, uma Carta de Princípios29, que estabeleceu princípios éticos para sua utilização. Um ano depois, aconteceu, em Rio Branco (AC), a Reunião das Entidades Religiosas Usuárias da Ayahuasca, a fim de atualizar a Carta de Princípios. Diferentes linhas e segmentos de uso ritual da ayahuasca se comprometeram e firmaram compromisso de seguir os seguintes princípios:

se proíbe a associação da bebida ao uso de substâncias proibidas; as entidades não devem comercializar a ayahuasca, nem sequer para seus próprios adeptos; se deve evitar a prática de

28

Porém, cf. ARAUJO (2008, p. 4), haveria, atualmente, uma resolução do CONAD regulamentando e liberando o uso do chá para fins rituais e de pesquisa.

29

Carta de Princípios das entidades religiosas usuárias do Chá Hoasca. Disponível na Internet. In:

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“curandeirismo” e a publicidade; os participantes do ritual se comprometem a permanecer no lugar do culto até o final do mesmo; é necessário, por parte das entidades usuárias, uma preocupação com a sobra das plantas que compõem o preparo; se proíbe a participação nos rituais de pessoas ébrias ou sob efeito de sustâncias proibidas; a participação de menores de idade somente será permitida com a autorização dos pais. Inclusive se sublinhou a importância do cuidado em relação às informações que são veiculadas publicamente sobre cada grupo, através de mecanismos como: cada instituição deve esclarecer que fala somente em seu nome e somente pessoas hierarquicamente bem situadas dentro de cada uma delas devem falar em nome da instituição, etc. Por último, a carta estabelece como principal objetivo das entidades a regulamentação do uso da ayahuasca através de lei (LABATE, 2008, p. 21-22).

Em 1992, foi implantada uma nova Comissão para realização de novos estudos e visitas às principais entidades ayahuasqueiras/daimistas, devido a uma denúncia de abuso. Em junho deste mesmo ano, o CONFEN confirma sua decisão anterior, posicionando-se pelo acompanhamento do uso ritual da bebida, sem nenhuma orientação proibicionista. Somente em 2004, após dezoito anos de estudos, a Comissão Nacional Anti-Drogas (CONAD), órgão do Ministério da Justiça brasileiro, reconheceu a legitimidade do uso religioso da ayahuasca e a legalidade de sua prática ritual.

2.3 Rituais e doutrinas do Daime

Os rituais e as doutrinas do Santo Daime30 também se confundem com o desenvolvimento da própria religião, além de acontecer “num momento caracterizado pela decadência da cultura da borracha e pela migração para as áreas urbanas dos antigos moradores da floresta” (MACRAE, 1992, p. 95), especialmente os seringueiros.

Antes de chegar a Rio Branco, por volta de 1930, Raimundo Serra já era conhecido como um grande curandeiro. Sua fama corria em toda região. Até mesmo pessoas de alta classe social o procuravam em busca de cura. Tinha apenas um pequeno grupo de seguidores. Neste contexto, a doutrina daimista estava em processo de construção e o culto, de institucionalização. O “tronco básico” da

30

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formação da nova religião, como afirma MACRAE (2000, p. 33), foi o hinário31 O Cruzeiro, neste momento inicial, uma junção de apenas três hinos recebidos pelo Mestre Irineu, que ganhou corpo entre 1935 e 1940. Tais hinos

são versos musicados simples, considerados como “recebidos” por uma pessoa através de captação divina. Apesar de inicialmente receber chamadas, melodias sem letras que executava assobiando, depois de certo tempo Mestre Irineu começou a receber os hinos que iriam compor o seu Hinário do Cruzeiro, considerado a formulação básica da doutrina do Santo Daime. Lá são descritas as mirações de Mestre Irineu, onde estariam presentes “seres divinos” da “corte celestial”, englobando entidades cristãs, indígenas e africanas. (MACRAE, 1992, p. 37)

Com o tempo, foi aumentando gradativamente o número de seguidores, requerendo maior e melhor organização. Logo o grupo passou a ser visto como uma irmandade, apoiando-se na ideologia do parentesco, destacando-se os termos pai, mãe e filho. Um parentesco simbólico é estendido aos elementos da natureza e aos seres espirituais da floresta, das águas, do sol, lua e estrelas, enfatizando-se o princípio da dualidade (sol-lua, pai-mãe, homem-mulher):

Esse dualismo serve como o eixo em torno do qual gravitam as principais idéias e ritos do culto do Santo Daime. Assim, considera-se que durante os trabalhos circula entre os participantes uma “energia” dotada de polaridade masculina e feminina, suscetível a alterações em sua força ou em seu fluxo, dependendo do estado de equilíbrio existente entre a parcela masculina e feminina do grupo presente. Coerente com essa visão, há uma tendência a estimular a adoção dos papéis de gênero tradicionais, enfatizando-se a responsabilidade das mulheres por atividades como cozinhar, costurar, cuidar das crianças, enquanto cabe aos homens os trabalhos que exigem mais força física e grande parte das posições de maior poder de decisão e prestígio. (MACRAE, 1992, p. 69-70)

Semelhantemente, o ser humano seria composto de um “Eu Inferior” e um “Eu Superior”. O primeiro, transitório, estaria relacionado à matéria; porém, importante para o aperfeiçoamento do segundo – e, neste sentido, outro item importante na doutrina daimista diz respeito à idéia de limpeza/purificação32, ou seja, a busca de ordem e harmonia na forma de rituais de transcendência e despoluição do ser.

Ainda quanto à organização, gradativamente foram instituídos os dias de trabalhos de curas, dias de concentração e estudo e dias dedicados ao louvor e ao canto do hinário. Inicialmente, os rituais eram realizados na própria casa do

31

REHEN (2008) escreve acerca da importância e do papel dos hinos e hinários no culto do Santo Daime, olhando-os a partir das Ciências Sociais, dedicando-se especialmente ao período após a morte do Mestre Irineu.

32

(33)

Mestre Irineu. Então, passou a ser realizados nas casas dos seguidores, aos domingos, entre 14:00 e 16:00 horas.

Os rituais de cura33 eram/são realizados em sessões muito simples. Quando alguém pede auxílio, avalia-se a gravidade do caso e se marca o dia e a quantidade de sessões a ser realizadas – no entanto, deve sempre ser um número impar, como também o número de participantes, geralmente entre três e nove. O daime é servido aos participantes, que buscam manter pensamentos positivos durante um período de concentração de aproximadamente uma hora, podendo estender-se por mais tempo, inclusive cantando-se hinos. A sessão termina quando ninguém mais está mirando, rezando-se três vezes o Pai Nosso e a Ave Maria e uma vez o Salve Rainha, seguindo-se da recitação de uma fórmula de encerramento definitivo34.

Raimundo Serra também instituiu o hinário35, ou seja, a celebração de determinados dias consagrados, em homenagem a alguns santos de maior devoção popular. Atualmente, também se comemoram as datas importantes do próprio Daime, como, por exemplo, o aniversário dos padrinhos e madrinhas36. Em tais ocasiões, os seguidores, geralmente vestidos com a roupa de gala, a farda branca, bebem várias vezes o Daime e cantam hinos durante toda a noite, acompanhados por maracás37 e, em havendo, outros instrumentos musicais, embalados numa coreografia simples e repetitiva, o bailado, assim descrito por GOULART (2004, p. 46):

O bailado daimista possui um padrão no qual os participantes são dispostos segundo uma divisão principal entre homens e mulheres, que devem ficar separados em dois blocos. Formam-se, no salão ou igreja onde se realizam os rituais, fileiras de homens e mulheres que se posicionam umas diante das outras. Todo o conjunto de participantes constitui uma espécie de quadrilátero ou retângulo, no qual os lados maiores são ocupados por fileiras de homens e mulheres casados, enquanto os menores por rapazes e moças. As

33

Acerca da concepção daimista de enfermidade, veja MACRAE (2000, p. 36-37).

34

Descrição pormenorizada dos trabalhos de cura pode ser vista em MACRAE (1992, p. 103-107) e GOULART (2004, p. 52-58). ROSE (2006, p. 35-46), estuda as relações entre espiritualidade, terapia e cura, segundo a comunidade daimista de Céu de Mantiqueira, no sul do estado de Minas Gerais.

35

Hinário pode se referir tanto ao conjunto de hinos recebidos por um daimista, quanto ao evento ritual de sua execução, ou seja, o momento em que eles são cantados e bailados.

36

As principais datas do calendário daimista são: Nossa Senhora da Conceição, dia 08 de dezembro (porém, comemorado na véspera); São João, dia 24 de junho; nascimento de Jesus Cristo, dia 25 de dezembro; Reis Magos, dia 06 de janeiro; 15 de dezembro, aniversário do Mestre Irineu.

37

Segundo GOULART (2004, p. 46-47), “durante todo o bailado é imprescindível o uso do maracá, um instrumento de percussão, feito em geral com uma lata que possui pedras ou substâncias metálicas no seu interior. Os hinos são marcados pelo som cadente do maracá. No bailado criado pelo Mestre Irineu todo o participante deve portá-lo. Ele é entendido como uma espécie de ‘arma’ para se ingressar numa ‘batalha’ espiritual”.

Referências

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