• Nenhum resultado encontrado

Rituais e doutrinas do Daime

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO (páginas 31-39)

2. Xamanismo e Daime: história e doutrina

2.3 Rituais e doutrinas do Daime

Os rituais e as doutrinas do Santo Daime30 também se confundem com o desenvolvimento da própria religião, além de acontecer “num momento caracterizado pela decadência da cultura da borracha e pela migração para as áreas urbanas dos antigos moradores da floresta” (MACRAE, 1992, p. 95), especialmente os seringueiros.

Antes de chegar a Rio Branco, por volta de 1930, Raimundo Serra já era conhecido como um grande curandeiro. Sua fama corria em toda região. Até mesmo pessoas de alta classe social o procuravam em busca de cura. Tinha apenas um pequeno grupo de seguidores. Neste contexto, a doutrina daimista estava em processo de construção e o culto, de institucionalização. O “tronco básico” da

30

formação da nova religião, como afirma MACRAE (2000, p. 33), foi o hinário31 O Cruzeiro, neste momento inicial, uma junção de apenas três hinos recebidos pelo Mestre Irineu, que ganhou corpo entre 1935 e 1940. Tais hinos

são versos musicados simples, considerados como “recebidos” por uma pessoa através de captação divina. Apesar de inicialmente receber chamadas, melodias sem letras que executava assobiando, depois de certo tempo Mestre Irineu começou a receber os hinos que iriam compor o seu Hinário do Cruzeiro, considerado a formulação básica da doutrina do Santo Daime. Lá são descritas as mirações de Mestre Irineu, onde estariam presentes “seres divinos” da “corte celestial”, englobando entidades cristãs, indígenas e africanas. (MACRAE, 1992, p. 37)

Com o tempo, foi aumentando gradativamente o número de seguidores, requerendo maior e melhor organização. Logo o grupo passou a ser visto como uma irmandade, apoiando-se na ideologia do parentesco, destacando-se os termos pai, mãe e filho. Um parentesco simbólico é estendido aos elementos da natureza e aos seres espirituais da floresta, das águas, do sol, lua e estrelas, enfatizando-se o princípio da dualidade (sol-lua, pai-mãe, homem-mulher):

Esse dualismo serve como o eixo em torno do qual gravitam as principais idéias e ritos do culto do Santo Daime. Assim, considera-se que durante os trabalhos circula entre os participantes uma “energia” dotada de polaridade masculina e feminina, suscetível a alterações em sua força ou em seu fluxo, dependendo do estado de equilíbrio existente entre a parcela masculina e feminina do grupo presente. Coerente com essa visão, há uma tendência a estimular a adoção dos papéis de gênero tradicionais, enfatizando-se a responsabilidade das mulheres por atividades como cozinhar, costurar, cuidar das crianças, enquanto cabe aos homens os trabalhos que exigem mais força física e grande parte das posições de maior poder de decisão e prestígio. (MACRAE, 1992, p. 69-70)

Semelhantemente, o ser humano seria composto de um “Eu Inferior” e um “Eu Superior”. O primeiro, transitório, estaria relacionado à matéria; porém, importante para o aperfeiçoamento do segundo – e, neste sentido, outro item importante na doutrina daimista diz respeito à idéia de limpeza/purificação32, ou seja, a busca de ordem e harmonia na forma de rituais de transcendência e despoluição do ser.

Ainda quanto à organização, gradativamente foram instituídos os dias de trabalhos de curas, dias de concentração e estudo e dias dedicados ao louvor e ao canto do hinário. Inicialmente, os rituais eram realizados na própria casa do

31

REHEN (2008) escreve acerca da importância e do papel dos hinos e hinários no culto do Santo Daime, olhando-os a partir das Ciências Sociais, dedicando-se especialmente ao período após a morte do Mestre Irineu.

32

Mestre Irineu. Então, passou a ser realizados nas casas dos seguidores, aos domingos, entre 14:00 e 16:00 horas.

Os rituais de cura33 eram/são realizados em sessões muito simples. Quando alguém pede auxílio, avalia-se a gravidade do caso e se marca o dia e a quantidade de sessões a ser realizadas – no entanto, deve sempre ser um número impar, como também o número de participantes, geralmente entre três e nove. O daime é servido aos participantes, que buscam manter pensamentos positivos durante um período de concentração de aproximadamente uma hora, podendo estender-se por mais tempo, inclusive cantando-se hinos. A sessão termina quando ninguém mais está mirando, rezando-se três vezes o Pai Nosso e a Ave Maria e uma vez o Salve Rainha, seguindo-se da recitação de uma fórmula de encerramento definitivo34.

Raimundo Serra também instituiu o hinário35, ou seja, a celebração de determinados dias consagrados, em homenagem a alguns santos de maior devoção popular. Atualmente, também se comemoram as datas importantes do próprio Daime, como, por exemplo, o aniversário dos padrinhos e madrinhas36. Em tais ocasiões, os seguidores, geralmente vestidos com a roupa de gala, a farda branca, bebem várias vezes o Daime e cantam hinos durante toda a noite, acompanhados por maracás37 e, em havendo, outros instrumentos musicais, embalados numa coreografia simples e repetitiva, o bailado, assim descrito por GOULART (2004, p. 46):

O bailado daimista possui um padrão no qual os participantes são dispostos segundo uma divisão principal entre homens e mulheres, que devem ficar separados em dois blocos. Formam-se, no salão ou igreja onde se realizam os rituais, fileiras de homens e mulheres que se posicionam umas diante das outras. Todo o conjunto de participantes constitui uma espécie de quadrilátero ou retângulo, no qual os lados maiores são ocupados por fileiras de homens e mulheres casados, enquanto os menores por rapazes e moças. As

33

Acerca da concepção daimista de enfermidade, veja MACRAE (2000, p. 36-37).

34

Descrição pormenorizada dos trabalhos de cura pode ser vista em MACRAE (1992, p. 103-107) e GOULART (2004, p. 52-58). ROSE (2006, p. 35-46), estuda as relações entre espiritualidade, terapia e cura, segundo a comunidade daimista de Céu de Mantiqueira, no sul do estado de Minas Gerais.

35

Hinário pode se referir tanto ao conjunto de hinos recebidos por um daimista, quanto ao evento ritual de sua execução, ou seja, o momento em que eles são cantados e bailados.

36

As principais datas do calendário daimista são: Nossa Senhora da Conceição, dia 08 de dezembro (porém, comemorado na véspera); São João, dia 24 de junho; nascimento de Jesus Cristo, dia 25 de dezembro; Reis Magos, dia 06 de janeiro; 15 de dezembro, aniversário do Mestre Irineu.

37

Segundo GOULART (2004, p. 46-47), “durante todo o bailado é imprescindível o uso do maracá, um instrumento de percussão, feito em geral com uma lata que possui pedras ou substâncias metálicas no seu interior. Os hinos são marcados pelo som cadente do maracá. No bailado criado pelo Mestre Irineu todo o participante deve portá-lo. Ele é entendido como uma espécie de ‘arma’ para se ingressar numa ‘batalha’ espiritual”.

fileiras são organizadas segundo um critério que estabelece uma hierarquia entre os presentes. Assim, normalmente, os membros considerados mais importantes, que ocupam posições expressivas no grupo, como os seus dirigentes, são colocados nas primeiras filas. Ao mesmo tempo, há um outro critério que dispõe os participantes segundo sua altura.

A concentração é uma reunião restrita aos fardados, realizada nos dias 15 e 30 de cada mês. É um ritual de desenvolvimento espiritual, realizado em silêncio, com duração de três a quatro horas, sendo o Daime geralmente servido no início (pode ser servido mais que uma vez). Ao final da cerimônia são cantados doze hinos do Mestre Irineu, denominados de “Hinos Novos” ou “Cruzeirinho”.

Figura 1 - Trabalho de Concentração. Extraído de www.mestreirineu.org

A missa para os mortos é

o mais solene dos ritos do Daime... Nessas ocasiões, cantam-se dez hinos do Mestre Irineu, reservados exclusivamente para esse fim. O trabalho é aberto com a reza de um terço e, entre cada hino, recitam-se três Pais-nossos e três Aves-marias. Marcando a gravidade da ocasião, os hinos não são bailados e o canto não é acompanhado por instrumentos. (MACRAE, 1992, p. 103)

Os rituais do Santo Daime seguem um padrão comum de encerramento, podendo haver algumas pequenas variações. Geralmente as sessões são encerradas quando o dirigente pronuncia as seguintes palavras: “Em nome de Deus

Pai Todo Poderoso, da Virgem Soberana Mãe, do Patriarca São José e de todos os Seres Divinos da Corte Celestial e com a ordem do nosso Mestre Império Juramidã está encerrado o nosso trabalho, meus irmãos e minhas irmãs, louvado seja Deus nas alturas e a Nossa Mãe Maria Santíssima sobre toda a humanidade. Amém”. Dependendo da igreja, centro ou segmento, ao invés de Mestre Império Juramidã se diz “Chefe Império Juramidã” ou ainda “Chefe Império Rei Juramidã”.

No entanto, um dos rituais mais importantes do culto é o feitio, o processo de preparo da bebida:

Prescrito nos mínimos detalhes, deve ser executado corretamente para assegurar a eficácia dos ritos subseqüentes, que acontecerão em torno do seu produto, o Daime. Cabe lembrar que a bebida é considerada como um ser divino, algo análogo a hóstia consagrada da Igreja Católica. Portanto, o feitio é acima de tudo um ato de encantamento e consagração, exigindo dos seus participantes um rigoroso preparo anterior físico e espiritual. (MACRAE, 1992, p. 107)

Mas, por outro lado,

o ritual é considerado um momento privilegiado de purificação e desenvolvimento interior, exigindo silêncio e grande compenetração. Este é também o único ritual em que o suprimento de Daime é livre, estando a bebida disponível para os participantes tomarem quantas vezes quiserem. (MACRAE, 1992, p. 108)

O feitio, assim como os demais trabalhos, tem um dirigente – geralmente o padrinho local. Ele é realizado na casa do feitio, uma construção feita especialmente para este fim, onde estão presentes a cruz de Caravaca e uma imagem da Virgem. Homens e mulheres são mantidos separados, com diferentes tarefas. Aos primeiros cabe o trabalho pesado: coleta, transporte, limpeza e macetação do cipó, além do preparo propriamente dito; àquelas, a coleta e limpeza das folhas38.

A macetação do cipó é iniciada, costumeiramente, as duas horas da madrugada, por turmas de 12 homens, que se revezam a cada duas horas. Os pedaços de jagube são colocados sobre troncos de árvores fixas ao chão e macetados com marretas de madeiras, ao ritmo do que está sendo cantando.

38

MACRAE (1992, p. 108), explica: “Quando a igreja tem plantação própria, as mulheres colhem as folhas da Psychotria viridis e as limpam, uma a uma. Caso contrário, os homens colhem as folhas na floresta, mas a limpeza continua sendo uma atribuição das mulheres”.

Para o cozimento, geralmente são usadas três panelas de 60 litros, sendo colocadas camadas alternadas do cipó e da folha, até alcançar a borda, e completadas de água. Aqui há de se ter muita atenção e cuidado no preparo, pois, “da correta dosagem desses ingredientes depende o equilíbrio das propriedades de ‘força’ e de ‘luz’ da bebida preparada” (MACRAE, 1992, p. 109). No cozimento, o líquido de cada panela é reduzido a um terço, ou seja, de 60 litros, obtém-se 20 litros de “cozimento”, que é coado e levado novamente à fervura nas panelas com o jagube e as folhas, sendo de novo reduzido de 60 litros [de cozimento] para 20 litros de Daime – este é chamado de Daime de primeiro grau.

Embora possa haver diferentes formas de se preparar a ayahuasca, com possibilidade até de variar os ingredientes básicos, “os seguidores do Santo Daime costumam seguir à risca as indicações rigorosas que Mestre Irineu deixou sobre o

Figura 2 - Macetação. Extraído de www.santodaime.org Figura 3 - Cozimento. Extraído de www.santodaime.org

Figura 4 - Cozimento. Extraído de www.santodaime.org

Figura 5 - Cozimento. Extraído de www.santodaime.org

assunto. O processo deve ser sempre o mesmo e, além do cipó, da folha da chacrona e da água, nenhum outro ingrediente pode ser acrescentado” (MACRAE, 1992, p. 110).

O uniforme, como hoje usado, foi concebido pelo Mestre somente em 1957, “durante uma longa viajem que realizou até o Maranhão. Se diz que depois de dois dias e duas noites mirando, ele teve a visão do atual uniforme” (MACRAE, 2000, p. 34)39 – qual seja: camisa branca e calça e gravata azuis para os homens; camisa branca e saia longa azul para as mulheres. Os homens também usam, sob a camisa, à altura do peito, um distintivo metálico, com a figura de uma estrela de cinco pontas; o mesmo é gravado à camisa das mulheres, na mesma posição, na cor azul. GOULART (2004, p. 50), porém, complementa a informação:

Atualmente, há duas fardas usadas em diferentes tipos de rituais do Santo Daime. Uma, é a branca, dos trabalhos de hinário oficiais, a qual consiste, para os homens, em: calça, blusa de manga comprida e paletó brancos, gravata preta, e uma estrela de seis pontas, conhecida como estrela de Salomão, colocada no peito direito. A farda branca das mulheres é composta de saia e blusa de mangas

39

No entanto, segundo GOULART (2004, p. 51), “os adeptos do Santo Daime entendem que a sua farda atual é um resultado do aprofundamento dos conhecimentos espirituais do Mestre Irineu, sendo produto das revelações que a Virgem Maria lhe fez”.

compridas brancas (ou um vestido branco), um saiote verde pregueado, mais curto, disposto por cima da parte branca da roupa, uma faixa verde atravessada em diagonal, que vai do ombro à altura da cintura, fitas coloridas que pendem do ombro, denominadas “alegrias”, uma coroa de lantejoulas na cabeça, e no lado direito e esquerdo do peito são colocadas, respectivamente, a estrela de seis pontas e uma rosa bordada para as “mulheres”, e uma palma, para as “moças”. A farda azul é utilizada nos rituais de concentração e nos hinários não oficiais. Ela consiste em saia azul pregueada, com blusa branca de manga curta para as mulheres, na qual estão bordadas as iniciais CRF (Centro da Rainha da Floresta), e gravata azul borboleta; para os homens, esta farda tem calça azul, camisa branca, gravata preta, e estrela de seis pontas disposta no peito direito.

No documento UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO (páginas 31-39)

Documentos relacionados