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4 OS GRUPOS IDENTIFICÁVEIS NA POPULAÇÃO BRASILEIRA

4.1 Brancos, Pardos e Pretos

No Brasil, o sistema de classificação racial tem como principal critério a cor da pele, criando espaço para grande ambiguidade, tendo-se em vista a enorme diversidade de matizes existentes na espécie humana. A própria miscigenação ocorrida no país ao longo de sua história acarretou o surgimento de uma importante categoria, composta por indivíduos descendentes de europeus e africanos, que, possuindo uma tez intermediária entre os estereótipos atribuídos ao branco e ao preto, são classificados como pardos, de acordo com sistema oficial utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Dessa forma, se uma pessoa miscigenada é vista no Brasil de um modo distinto de um indivíduo preto ou branco, a ideia de uma simples dicotomia racial não é válida para descrever a dinâmica da discriminação no país.

Na literatura teórica, a ideia da polarização entre apenas dois grupos raciais disjuntos é dominante, sendo assumida na grande maioria dos modelos. No trabalho seminal de Coate e Loury (1993), por exemplo, a hipótese não é essencial, podendo existir tantos grupos diferentes quanto forem os equilíbrios.48 Quando se assume, porém, a existência de complementaridades entre os grupos, os resultados se tornam sensivelmente mais complexos. Na extensão dinâmica do modelo de Coate e Loury, por exemplo, Kim e Loury (2009) mostram que, em dadas circunstâncias, existem apenas dois equilíbrios estáveis em estado estacionário, de sorte que qualquer grupo sobre o qual recaiam crenças negativas do empregador acabará no pior resultado caso a mesma visão seja compartilhada pelos seus integrantes.49 A bipolaridade seria, nesse caso, inevitável no longo prazo.

Do ponto de vista empírico, a existência de uma clivagem tripartite no Brasil não é uma questão consensual, divergindo de uma concepção “birracial”, semelhante à norte-americana,

48 A principal razão para este resultado é a ausência de complementaridades entre os grupos.

49 Kim e Loury (2009) referem-se à visão que os integrantes de um grupo racial têm sobre o sucesso do

ou de uma visão multirracial, com no mínimo três grupos válidos: pretos, pardos e brancos. Silva (1980), por exemplo, usando 21.861 observações do censo de 1960, restritas ao atual estado do Rio de Janeiro, aponta para a similaridade nos retornos dos fatores entre pardos e pretos, quando comparados com brancos, defendendo assim a hipótese de bipolarização racial. No entanto, em um trabalho mais recente, publicado em 2000, Silva encontra resultados divergentes, com uma situação menos favorável para pretos ou pardos, dependendo dos dados utilizados.50

Com observações das principais regiões metropolitanas brasileiras de uma amostra da PNAD de 1989, Calvalieri e Fernandes (1998) concluem que pardos e pretos possuem diferenças estatisticamente significantes, porém diminutas, sendo a discriminação sofrida menos intensa para o penúltimo grupo. No trabalho, são ainda relatadas importantes assimetrias regionais, com os diferenciais de salários entre pardos e brancos, por exemplo, variando de 51,13% em Salvador para 9,97% em São Paulo. Nessa mesma direção, Arcand e D´Hombres (2004), com uma amostra de 69.956 indivíduos entre 25 e 65 anos da PNAD 1998, controlando para o viés de seleção no mercado de trabalho, observam que a discriminação racial é mais intensa sobre os pretos, sugerindo que parcela substantiva das diferenças entre pardos e brancos seja decorrente de fatores pré-mercado de trabalho, cujo efeito é intensificado pela baixa qualidade dos serviços públicos de saúde e educação.

Por sua vez, Arias, Yamada e Tejerina (2004), estimando os decis da distribuição salarial com uma amostra da PNAD de 1996, composta por 57.000 homens entre 15 e 65 anos, verificam que os retornos de educação variam de acordo com a gradação da cor da pele e também da posição ocupada na escala salarial. Assim, enquanto pardos possuem retornos similares aos brancos no topo da escala salarial, nos quantis inferiores, recebem tratamento idêntico aos pretos. Essa diferença é relevante em virtude do maior retorno da educação no topo da escala salarial. Além disso, nas posições melhor remuneradas, os resultados sugerem que os pretos sofrem maior discriminação do que os pardos.51 Não obstante, Arias, Yamada e Tejerina

50 Explorando dados da PNAD 1986, Silva (2000) estima a diferença de renda entre brancos e pardos, que é

atribuível à discriminação, em 32,9%, ao passo que para os pretos, este valor se reduz para 31,20%. No mesmo artigo, porém, com os dados da PNAD de 1996, o autor encontrou outros valores, respectivamente, de 16,50% e de 23,80%

51 Conclusões similares quanto ao padrão da discriminação ao longo da escala salarial são observadas por

Bartalotti e Leme (2007), que se valem de dados mais recentes, da PNAD de 2004, a partir dos quais inferem que a discriminação racial é positivamente relacionada com o quantil da distribuição, o que também é encontrado no caso das mulheres por Coelho, Veszteg e Soares (2010), que têm por base a PNAD de 2007. No entanto, ambos os estudos trabalham com a hipótese de bipolaridade racial.

notam que, controlando para a educação dos pais e a qualidade da escola,52 o diferencial existente entre os grupos é reduzido, especialmente entre pardos e brancos. Inclusive, dependendo das especificações utilizadas pelos autores, inexiste diferença entre esses dois últimos grupos, enquanto o montante que pretos recebem chega a praticamente 90% do que é auferido por um branco, ajustando-se o hiato salarial paras as diferenças nas características produtivas.

Mais recentemente, Campante, Crespo e Leite (2004) e Leite (2005) mostram a existência de importantes diferenças no perfil da discriminação, dependendo do locus geográfico ocupado, sendo a discriminação maior na parte meridional do país. De fato, do ponto de vista racial, a miscigenação foi um fenômeno mais forte no Norte e Nordeste do Brasil, ao passo que as intensas ondas migratórias europeias, sobretudo, no início do século XX, mantiveram o predomínio da população branca no Sul do país. O Sudeste apresenta uma composição intermediária, tendo recebido importantes levas de migrantes do Nordeste. O Gráfico 4.1, com dados da PNAD 2009, ilustra esse quadro.

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% N NE CO MG, RJ e ES SP S

Branco Preta Amarelo Parda

Desse modo, em função da maior presença branca no Sul e no estado de São Paulo, é possível que os pardos e pretos sofram o mesmo grau de discriminação, sendo vistos como pertencentes a um único grupo, justificando a bipolarização racial. Em contraste, conforme

52 Os autores utilizam como proxy para a qualidade da educação a média da razão aluno professor do estado de

nascimento, calculada para o período de dez anos em que a respectiva coorte esteve na escola. No texto, é feita referência para as especificações 03 e 04. Vide Tabela III.

destacado por Freire (1933), no Nordeste, parcela substantiva da própria elite econômica seria de origem parda, de modo que indivíduos miscigenados podem receber um tratamento distinto, hierarquicamente superior.

Em resumo, a literatura é inconclusiva sobre a polarização, com resultados que não são robustos às mudanças no ano das observações ou aos métodos econométricos utilizados, sendo firme apenas a constatação de significativas diferenças regionais. De fato, um ponto fundamental discutido paralelamente na literatura sociológica brasileira, conforme Telles (2005), é a valorização do moreno, o que poderia caracterizar a existência de um terceiro grupo racial no Brasil, rompendo o antagonismo branco versus negro.

O objetivo deste capítulo é justamente investigar o conceito de bipolaridade racial no Brasil, testando-se a hipótese de que os pardos e pretos formam um grupo homogêneo, além de se inferir a existência ou não de discriminação contra ambos os grupos. Adicionalmente, busca- se avaliar ainda se o impacto de pertencer ao grupo miscigenado é homogêneo ao longo do território nacional. Uma terceira questão a ser investigada, ainda pouco explorada na literatura, é a existência de assimetrias relevantes ao longo da escala dos salários, o que pode ser estimado por meio da decomposição da diferença dos respectivos quantis das distribuições não condicionais de salários de brancos, pardos e pretos. Para isso, na próxima seção, as hipóteses necessárias para a estimação da discriminação econômica serão discutidas, apresentando-se os métodos econométricos a serem utilizados. Como subproduto, busca-se preencher a importante lacuna existente na literatura empírica sobre discriminação racial acerca da identificação dos parâmetros populacionais relevantes para mensurá-la, o que é de fundamental importância para se estabelecer o devido limite para generalização dos resultados obtidos. Em seguida, na seção 4.3, os dados utilizados serão detalhadamente descritos, realçando as principais semelhanças e diferenças entre os potenciais grupos raciais brasileiros. Por fim, os resultados serão discutidos, ao que se seguirá um fechamento do capítulo.