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2 TEORIA ECONÔMICA E DISCRIMINAÇÃO RACIAL

2.6 Efeitos dos pares

A aquisição de capital humano nos artigos supracitados consiste basicamente em um processo individual e autônomo. Nesse sentido, os desdobramentos antecipados pelo trabalhador são cruciais para a decisão de investimento, cujo custo, porém, é exógeno. Essa hipótese é relaxada por Chaudhuri e Sethi (2008), que introduzem por meio de uma extensão do modelo de Coate e Loury (1993) e de Moro e Norman (2004) a existência de complementaridades entre o capital humano individual dos trabalhadores. Com isso, o custo do investimento passa a ser endógeno, sendo um dos componentes do equilíbrio.

O axioma da igualdade inata dos grupos, denominado por Loury (2002) de anti-essencialismo, é mantido supondo-se que o mapeamento entre o espaço das externalidades geradas pelo efeito dos pares no capital humano e a distribuição de custos é idêntico para todos os segmentos da população. Ou seja, um indivíduo exposto a certo conjunto de influências de outras pessoas sofre o mesmo impacto no seu custo de aquisição de qualificação, não importando o grupo a que pertence. Como resultado, o nível de segregação na economia se torna importante. Chaudhuri e Sethi mostram que, havendo um crescimento da integração entre os grupos, com efeitos positivos sobre a acumulação de capital humano, os estereótipos negativos podem se tornar insustentáveis no longo prazo. Uma grande proporção de indivíduos do segmento privilegiado em relação ao total da população intensifica tal fenômeno. Por outro lado, caso a parcela discriminada seja a grande maioria da população, têm-se consequências negativas, decrescendo a acumulação de capital humano na economia, o que torna a interação indesejada por ambos os grupos.

Conforme ilustrado pelo modelo de Coate e Loury, modelos de discriminação estatística explicam as diferenças nos resultados no mercado de trabalho em função da existência de diferentes equilíbrios, no entanto, permanece a necessidade de uma maior compreensão do processo de sua seleção. Nesse sentido, Blume (2006) pesquisa o papel do aprendizado na formação das crenças dos agentes e sua relação com a prevalência de equilíbrios. Usando o instrumental da teoria dos jogos evolucionária, em um modelo com várias rodadas de contratação, o autor supõe a hipótese de que as crenças são revistas com base na experiência, tanto pela firma como pelo trabalhador, demonstrando-se a existência de um equilíbrio estocasticamente estável, ou seja, robusto a alterações de comportamento relativamente pequenas, circunscritas à individualidade dos agentes.

Antonovics (2006), por sua vez, analisa os efeitos intergeracionais da discriminação estatística, em que o papel da tomada da decisão sobre o investimento em qualificação é realizado pelos pais dos trabalhadores. Nesse caso, ainda que a produtividade dos indivíduos seja idêntica, ex-ante, a discriminação em uma geração pode afetar negativamente a inserção em capital humano de um determinado grupo populacional ao longo do tempo. Assim, a discriminação racial e as disparidades salariais se reforçam mutuamente, fazendo com que diferenças iniciais de capital humano sejam suficientes para levar os grupos raciais para equilíbrios distintos no estado estacionário.

Não menos relevante é a contribuição de Fryer (2006), que, através de um modelo dinâmico de discriminação estatística, investiga as consequências da superação da discriminação no momento da contratação, em que um trabalhador pertencente a um grupo com estereótipo negativo recebe uma colocação qualificada. Nesse caso, o autor analisa a possibilidade de que haja uma inversão de papéis, ou seja, o indivíduo antes discriminado passa a ter condições mais favoráveis de promoção, uma vez que o maior rigor exigido no primeiro estágio de contratação induz um efeito habilidade positivo nas próximas etapas da evolução da sua carreira dentro da empresa. Assim, as consequências sobre o investimento são incertas, pois a discriminação sofrida no primeiro estágio pode ser mantida, de sorte que o efeito “habilidade” deverá ser maior para acarretar crescimento no gasto com qualificação, o que definiria o fenômeno do belief flip. No tocante ao bem-estar dos grupos, os resultados são inconclusivos. Finalmente, Kim e Loury (2009) apresentam uma versão dinâmica do modelo de Coate e Loury, em que o comportamento forward-looking dos agentes determina o caminho para a

estabilidade dos equilíbrios existentes. No artigo, os autores investigam a formação das crenças iniciais sobre os grupos, até então exógenas, além do processo de convergência para o estado estacionário. Para tal, é introduzida a distinção entre reputação individual e de grupo, em que a primeira corresponde à probabilidade de que um indivíduo seja qualificado para uma determinada atividade em função de sua identidade grupal e de seu histórico pessoal, avaliado pelo contratante. Por sua vez, a segunda é definida como a média das características dos membros do grupo. Intuitivamente, é clara a relação de interdependência entre a decisão do indivíduo e dos demais elementos do seu grupo, uma vez que a soma das decisões coletivas influencia a reputação grupal e, assim, o retorno esperado do indivíduo. Essa externalidade de reputação implica que a ação coletiva pode melhorar ou piorar a situação do grupo, em um processo “autorrealizável”. Além disso, verifica-se que importância da reputação grupal é inversamente proporcional à força informativa do currículo do trabalhador.

No modelo, o empregador utiliza a informação objetiva sobre a qualidade média do grupo na decisão do rigor a ser utilizado no processo de contratação. Considere-se que i( )

F  seja a fração dos trabalhadores do grupo i que emitem um sinal inferior a  , em que

( ) ( ) (1 ) ( )

i i i

q u

F   F    F  , assumindo-se que Fq( ) e Fu( ) são de conhecimento comum. Dessa forma, redefinindo icomo a reputação grupal, temos que:

( ) ( ) , ( ) ( ) i i u u q F F F F          

De imediato, no momento em que o empregador se defrontar com um candidato cuja identidade grupal seja i e o histórico  , a reputação individual desse candidato será dada por

( , ) fq( ) / fq( ) (1 ) ( )fu

          .

Na dinâmica do modelo, assume-se que os trabalhadores realizam o investimento no início de suas vidas, cuja duração é regida por um processo de Poisson, sendo a população de cada grupo constante. Ademais, trabalhadores e empregadores possuem taxas de desconto distintas. A partir de hipóteses pouco restritivas, Kim e Loury demonstram a existência de dois equilíbrios de estados estacionários: um de alta reputação, Qh, associado ao limite inferior do seu caminho de equilíbrio, 0, e outro de baixa reputação, Ql, em que U

para seu caminho do equilíbrio. Com isso, caso a reputação inicial do grupo i esteja dentro do

overlap, ou seja, i 0 0, U

  , havendo uma visão positiva do investimento em qualificação de seus membros, i convergirá para Qh, caso contrário, o equilíbrio se dará em

l

Q . Por seu turno, se por razões históricas, i 0 0, 0

, o segmento discriminado i estará preso ao equilíbrio inferior. Assim, os autores concluem que as predições do modelo acompanham a evidência empírica de que há a manutenção em patamares elevados das diferenças salariais entre os grupos considerados.

2.7 Conclusão

A breve revisão da literatura teórica, intencionalmente concentrada em modelos de discriminação estatística, buscou apresentar hipóteses pouco restritivas para explicar as diferenças nos resultados econômicos de grupos raciais, baseando-se apenas na existência de assimetria de informação entre os agentes econômicos. Falhas de mercado tornam-se razões suficientes para racionalizar as discrepâncias salariais, superando a necessidade de hipóteses draconianas de preferências preconceituosas.

Muito embora não se tenha esgotado a rica literatura existente sobre discriminação racial, os artigos citados tornam evidente o papel da identidade como um fator de enorme relevância para o sucesso de um indivíduo no mercado de trabalho. Nessa perspectiva, o modelo de Fang (2001) demonstra inclusive a possibilidade de que grupos se formem endogenamente, resultado extremamente sugestivo para o caso brasileiro, em que o histórico de grande miscigenação tornou as fronteiras raciais extremamente fluidas, possibilitando que indivíduos possam ser considerados pertencentes a um grupo ou outro, dependendo das circunstâncias da ocasião.

Retomando a discussão acerca do preconceito de classe e racial, o modelo apresentado por Fang mostra o quanto a distinção arbitrária entre ambas as lógicas de discriminação pode ser ambígua, complementando-se ao invés de se opor. Primeiramente Arrow (1973) e depois Coate e Loury (1993) mostraram como disparidades entre dois grupos podem ser sustentadas em função do desconhecimento da real produtividade de cada trabalhador, havendo, porém

crenças, provavelmente de origem históricas, sobre a produtividade média de um indivíduo em cada grupo. No entanto, a cor da pele, no caso brasileiro, ou a ancestralidade, no caso norte-americano, não se afiguram como motivos únicos para a clivagem social. Em ambientes com assimetria informacional, atividades, hábitos e outros fenômenos sociais podem ser utilizados como instrumento para clivar a população. Por conseguinte, seguindo Loury (2002), do ponto de vista econômico, o conceito de raça refere-se a um conjunto de características corpóreas que são hereditárias, que podem ser observadas pelos outros com facilidade e, ao mesmo tempo, só podem ser escondidas ou disfarçadas com muita dificuldade, sendo investidas com um significado social, dada uma determinada sociedade e seu respectivo momento histórico.

Nesse sentido, a discriminação entre grupos é multidimensional quando analisada sob a perspectiva do espaço dos critérios possíveis para a segmentação da população. No caso brasileiro, como veremos no capítulo a seguir, a cor da pele, religião, modo de se vestir, de falar, são itens necessários para a definição dos grupos, porém, quase nunca suficientes. Indivíduos cuja cútis esteja no meio do espectro entre pretos e brancos, por exemplo, a depender de suas outras características, podem ser considerados brancos, pardos ou mesmo pretos. Apenas nos pontos extremos do contínuo de cores a clivagem social se torna certa e definitiva, embora o grau de discriminação ainda sofrida seja evidentemente incerto, estando diretamente atrelado à posição social do indivíduo, inferida a partir do seu modo de vida.

3 A MULTIDIMENSIONALIDADE DA RAÇA: “AUTOCLASSIFICAÇÃO” E ERRO DE MENSURAÇÃO