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III.3 Estar aqui: escrita e “crise política”

1 EM BUSCA DA “AUTENTICIDADE”: JORNALISMO INVESTIGATIVO E OS

1.2 As “genealogias consagradas” em três contextos nacionais

1.2.3 Brasil

A bibliografia especializada na temática aponta o desenvolvimento mais sistemático do jornalismo investigativo no Brasil a partir dos anos 1970, com o fim da censura prévia imposta pelo regime militar, com maior intensidade após a redemocratização, período a partir do qual teria se afirmado como uma “tendência54” (NASCIMENTO, 2010, p.41). O processo

de “abertura” marcou rearranjos institucionais importantes, e engendrou novas formas de atuação e mobilização do espaço jornalístico. Com uma suposta maior liberdade no seu trabalho, os jornalistas teriam tido então maiores condições de fugir do noticiário oficial e desenvolver investigações de maior fôlego sobre assuntos variados.

Para Waisbord (2000), a relação entre a consolidação do jornalismo investigativo e a queda de regimes autoritários pode ser observada em praticamente toda a América do Sul, favorecida sobretudo pelo clima de “busca pela verdade” sobre os abusos cometidos pelas respectivas ditaduras militares. Sob esses regimes, a “grande imprensa” se manteve alinhada ao Estado, o que teria dificultado a utilização do modelo do jornalismo investigativo norte-

53 Quanto a este ponto, é importante consultar também os trabalhos de Lemieux (2001a e 2001b).

54 Nos últimos anos, com o Wikileaks e o “caso Snowden”, alguns jornalistas vêem no Brasil um novo “polo de

jornalismo investigativo”, tendo em vista que o jornalista americano responsável pelo “furo de reportagem”, Glenn Greenwald, reside no Rio de Janeiro e recebeu o apoio do governo brasileiro.

americano antes dos processos de abertura política. O início da redemocratização dos países sulamericanos teria possibilitado uma transformação da postura da imprensa, que teria passado de um papel passivo (lapdog) para um papel ativo, de fiscalização e de denúncia (watchdog) (ALVES, 2005, p.200).

No Brasil, a “ascendência simbólica” do “caso Watergate” se fez sentir, segundo a bibliografia, com particular ênfase no início dos anos 1990, à época do impeachment de Fernando Collor de Melo55. Naquele contexto, teria se desenvolvido uma “febre investigatória francamente disseminada na imprensa nacional”, que alimentou a crença de que a imprensa é capaz de “fazer e desfazer” um presidente (LATTMAN-WELTMAN, 1994). Este seria, para alguns autores, o “marco zero” do jornalismo investigativo no Brasil (FORTES, 2005, p.21), influenciando na formação de toda uma geração de jovens jornalistas. A postura do jornalismo na cobertura desse “escândalo” teria sido a primeira grande ruptura no padrão complacente da imprensa brasileira (KUCINSKI, 1998, p.167-176).

Os jornalistas que atuaram nesse período entendem que o impeachment marcou o início da consolidação de uma independência relativa da mídia, abrindo mais espaço e dando maiores condições para o desenvolvimento de trabalhos de cunho investigativo, ainda que a imprensa não tivesse, à época, uma experiência mais disseminada nesse tipo de cobertura. Mesmo que boa parte das informações divulgadas na imprensa fosse resultado da investigação conduzida pela CPI, e que alguns veículos de mídia tenham relutado durante certo tempo em atacar diretamente o governo Collor, alega-se que boa parte dos jornais fizeram algum tipo de investigação na época.

O depoimento de Marcelo José Beraba, ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), concedido a Matos (2008, p.130) dá a dimensão da importância do caso para os jornalistas:

Eu diria definitivamente que o impeachment reforçou a independência da imprensa em relação ao Estado. Você tem as décadas de 1960 e 1970 e neste período você tinha uma imprensa controlada (...) Quando a censura caiu, os jornais começaram a fazer uma reportagem mais investigativa do governo (...). Você tem uma tentativa de deixar a arena do jornalismo controlada para entrar numa área mais livre e investigativa (...). O que acontece com o impeachment é que (...) os jornais (...) vão se soltando, se desvinculando de compromissos.

55 “(...) o escândalo teve origem na entrevista concedida pelo irmão do presidente, Pedro Collor, à revista Veja. A

partir daí, com os desdobramentos do caso, que se transformaria rapidamente numa crise político-institucional, a mídia, com destaque para os jornais de circulação nacional e revistas semanais, desempenharia um papel ativo na escalada do escândalo através da prática de um intenso jornalismo investigativo que terminou acuando politicamente o presidente, que, na iminência de ser afastado pelo Congresso, optou pela renúncia” (AZEVEDO, 2010, p.17). Sobre o contexto geral de atuação da imprensa brasileira naquele período, ver Conti (2012).

O “Collorgate” permite observar algumas das controvérsias em torno das definições de jornalismo investigativo em jogo, evocadas no tópico anterior. Para Nascimento (2010, p.97- 98), o caso em pauta é um bom exemplo de jornalismo investigativo, embora contenha a “semente” do “fenômeno” do que chama de “jornalismo sobre investigações”: “Houve no episódio da cobertura da crise do governo Collor um pouco destas duas coisas: as reportagens investigativas alimentaram a CPI, que por sua vez alimentou as reportagens sobre investigações”. Na sua leitura retrospectiva do jornalismo investigativo brasileiro e do seu papel na revelação de “escândalos”, Marcelo José Beraba, desta vez em depoimento para esta tese, estabelece algumas nuances adicionais.

(...) eu vejo assim: tem alguns momentos em que o jornalismo investigativo é predominante. De uma certa maneira, ele domina o fazer jornalístico. E tem outros momentos em que o jornalismo investigativo é complementar. Tem alguns momentos em que o jornalismo é proativo e ele provoca uma investigação, e tem alguns momentos que ele vai a reboque. Então, se você pegar alguns casos concretos da nossa história...: o Riocentro é um jornalismo investigativo de um momento que predominou, ele foi proativo. Ou seja, ninguém investigava o Riocentro: o Ministério Público não investigava, a justiça não investigava, foi pra Justiça Militar. Todo o movimento era pra abafar o Riocentro. As equipes d’O Globo, JB, Veja, Estadão, mergulharam numa investigação própria: cada um com uma pecinha aqui, uma peça ali, alguma coisa assim. O Riocentro eu acho que foi o mais importante, mas todos os eventos, todos os casos relativos ao terrorismo daquele período (de bombas [na] ABI, OAB, etc. etc., aquele ambiente todo), quem investigou de fato, quem foi pra rua investigar, foi o jornalismo. Então, ali é forte. Collor o jornalismo foi complementar, o jornalismo investigativo foi complementar. Ou seja: embora você tivesse várias equipes – e eu, nessa época, tava na Folha de S.Paulo e dirigia a equipe de jornalistas investigativos, e a gente tava num esforço grande, em 90, de... Nós investigamos muito o PC Farias, por exemplo (o enriquecimento dele, e tudo mais) –, você tinha um limite de capacidade, de ferramentas do jornalismo investigativo (...). Nós não chegamos à corrupção do Collor, até o momento em que o irmão dele dá uma entrevista pra Veja e escancara a corrupção que tem no governo. Então, a partir dali você tem a abertura de uma CPI no Congresso. A entrevista do Pedro Collor, e depois a CPI, elas são os principais motores da investigação do “Collorgate”. O jornalismo tem uma importância, tanto que é a IstoÉ que descobre o Eriberto, que era o motorista, o Fiat e tudo mais. Mas ele é complementar. Se você pegar o volume de informação que sai naquele momento sobre o “Collorgate”, ao longo daqueles meses todos, ele é predominantemente vindo da investigação da CPI e de informações dadas pelas pessoas lá dentro (Entrevista com Marcelo José Beraba, concedida em 15 mar. 2016).

As significações políticas e profissionais do escândalo do “Collorgate” são extensas. Para além dos desdobramentos da CPI e queda de Fernando Collor, estava em jogo a possibilidade de “depurar” o sistema político da “jovem democracia”. Este ímpeto animou muitos jornalistas, jovens e experientes, que atuaram naquele conturbado contexto de “crise”. Em linhas gerais, as investigações e denúncias, capitaneadas em parte pela imprensa, contra o então presidente, serviam para confirmar uma “versão criminal” – no sentido de Briquet (2001, p.110) – da história recente do Brasil. Entra em pauta aqui a capacidade que as

mobilizações em torno do desvelamento de “escândalos”, que contam com a recorrente participação de jornalistas, têm de decidir sobre a legitimidade de um sistema político e de empresas de ruptura ou renovação do mesmo, como no caso da “magistratura antimáfia”, analisado por Briquet (2001, p.103).

Ao mesmo tempo que contribuía para fomentar percepções críticas em relação ao sistema político, o “Collorgate” permitiu, retrospectivamente, validar leituras quanto à legitimidade da intervenção dos jornalistas em nome da defesa da legalidade, que tendem a destacá-lo como caso exemplar das contribuições que os jornalistas podem dar para o “aprimoramento” das instituições e das práticas dos agentes públicos.

Mesmo que seja considerado por muitos como o ponto de partida da “febre investigativa” no país, casos e contextos anteriores são também considerados como compondo a “história” desse fazer jornalístico no contexto brasileiro, incluídos e consagrados nesse panteão de modo corriqueiro. Assim, alguns consideram que “já se fazia jornalismo investigativo” no país em meados dos anos 1920, como naquele que ficou conhecido como “Caso do Colar”, ou nas reportagens publicadas pela revista O Cruzeiro, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Ainda em se tratando de revistas, Realidade (publicação inaugurada em 1966, pela editora Abril, que encerrou suas atividades em 1976) é reconhecida no meio profissional como um dos abrigos da excelência da reportagem no Brasil, sendo constantemente lembrada e celebrada como um dos “ninhos” dos melhores repórteres brasileiros (SOUZA, 2004, p.77). Chegou a vender 500 mil exemplares por edição, sendo assim considerada como um “fenômeno editorial” para aquele período. A primeira geração de Veja (criada em 1968, por Mino Carta) também é celebrada como um dos locais onde se produzia o que à época se chamava de “grande reportagem”, na qual muito intérpretes da história do jornalismo brasileiro identificam elementos do jornalismo investigativo: “A reportagem de longo fôlego se fez presente e foi referência no jornalismo brasileiro, empolgando toda uma geração de profissionais e leitores, e escrevendo seu nome na história da imprensa nacional” (PEREIRA FILHO, 2004, p.51-52).

As marcas dos “grandes repórteres” seriam a “aventura”, o “romantismo”, a “entrega”, o “amor pelo ofício”. Com grande frequência, essas representações contribuem para a construção de imagens heroicizantes de jornalistas que, segundo a lógica do sacríficio do interesse particular ao interesse geral (BOURDIEU, 1996, p.50), muitas vezes colocam em risco as suas vidas em busca das pautas. É o caso da celebração do “legado” do jornalista Tim Lopes, assassinado por traficantes após ser capturado durante uma investigação na favela da

Vila Cruzeiro, ou ainda o de José Hamilton Ribeiro, que perdeu uma perna ao pisar numa mina durante a cobertura da guerra do Vietnã.

Com o golpe de 1964 e, principalmente, a partir do “golpe dentro do golpe” (AI-5) e da consequente entrada do país nos “anos de chumbo”, muitos jornalistas se viram obrigados a empreender “diásporas”, seja para a “imprensa alternativa” que se constituía, seja para editorias menos visadas pelos censores, como economia e esportes. As colunas sociais, como aquela de Ibrahim Sued, também são vistas como um dos locais a abrigar jornalistas “investigativos” durante a repressão.

Outro momento importante constantemente evocado como um marco do jornalismo investigativo foi aquele que ficou conhecido como o “Escândalo das mordomias”, desencadeado pela série de reportagens intitulada “Assim vivem os nossos superfuncionários”. Fruto de dois meses de uma investigação jornalística conduzida por Ricardo Kotschoe equipe, a série foi veiculada no jornal O Estado de S.Paulo em agosto de 1976 e teve grande repercussão junto à “opinião pública”, transformando em escândalo os privilégios que os funcionários do primeiro escalão do governo detinham. Além disso, a série ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo do mesmo ano.

Para muitos jornalistas, essa série de reportagens possui caráter paradigmático para o jornalismo investigativo e, de modo mais geral, para a liberdade de expressão. Publicada ainda durante o regime militar, as denúncias contidas nas matérias e seus efeitos teriam dado uma “nova dimensão ao jornalismo investigativo no Brasil” (SEQUEIRA, 2005, p.12) e amplificado o papel do jornalismo como representante dos interesses dos cidadãos, na medida em que revelava fatos controversos na alta burocracia pública que eram ocultados por grupos então no poder.