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III.3 Estar aqui: escrita e “crise política”

1 EM BUSCA DA “AUTENTICIDADE”: JORNALISMO INVESTIGATIVO E OS

1.2 As “genealogias consagradas” em três contextos nacionais

1.2.1 Estados Unidos

Matriz exportadora de boa parte daquilo que se entende por “jornalismo moderno” (CHALABY, 2003; NÉVEU, 2006), o contexto norte-americano oferece as primeiras referências em termos de jornalismo investigativo que são constantemente retomadas pelos jornalistas e pela bibliografia42. O “caso Watergate”, a mais emblemática investigação jornalística do país, que se expandiu para todo o mundo como “modelo” da investigação jornalística bem-sucedida (LEMIEUX, 2001a, p.94), ilustraria o melhor daquilo que o jornalismo teria para oferecer à democracia: “fazer o poder prestar contas” (WAISBORD, 2001). O caso ainda teria dotado a atividade jornalística de um certo glamour que não estaria presente no cotidiano do jornalista, e determinado a emergência e valorização de uma forma de praticar o jornalismo que envolve pesquisa e investigação (HUNTER, 1997; ABREU e LATTMAN-WELTMAN, 2001).

Desde aquele momento, a mídia norte-americana passou a considerar o “jornalismo investigativo” como a atividade mais nobre de sua profissão (...). A partir daquele “escândalo”, o protótipo de jornalista passou a ser um descobridor de verdades escondidas pelas conveniências dos poderosos. Ao revelar à sociedade as entranhas e artimanhas do poder, o jornalista se torna um elemento essencial do equilíbrio democrático (...). E o escândalo passou a ser assim o validador maior daquela

41 Ver, por exemplo, Melo e Monteiro (2015).

42 A preponderância dos exemplos e parâmetros jornalísticos norte-americanos se deve também a lógicas

editoriais, que contribuem para fazer circular, com forte divulgação, termos, temas e retóricas que devem seu poder de atração ao simples fato da sua ampla difusão (BOURDIEU e WACQUANT, 2008, p.25). Nascimento (2010, p.33) aponta então que parte desse destaque pode estar ligado à grande produção norte-americana sobre o tema, assim como à facilidade com que essa produção é acessada e exportada.

atividade profissional: a consagração do bom jornalista é o papel central que seus colegas lhe conferem na produção de um “bom” escândalo (GRÜN, 2018, p.79).

Fruto do trabalho de Bob Woodward e Carl Bernstein, repórteres do The Washington Post, o caso iniciou-se com um episódio de escuta ilegal na sede do Partido Democrata dos Estados Unidos efetuada por pessoas ligadas ao governo republicano, que culminou com a renúncia do então presidente Richard Nixon em 9 de agosto de 197443. Imagem mítica do

jornalismo investigativo, e do jornalismo de modo geral, “Watergate” revela muito mais do que os supostos efeitos benéficos que os jornalistas podem trazer à sociedade democrática. Estamos diante de um marco significativo do processo de imposição do modelo e da concepção de jornalismo norte-americano ao conjunto das produções jornalísticas em outros países, que também teve uma repercussão importante no jornalismo feito no Brasil.

As sucessivas denúncias que o Post começou a fazer sobre o caso, ainda sem a atenção dos outros jornais, despertaram com o tempo a inquietude do poder judiciário e de parte da “opinião pública44”. Em termos de jornalismo investigativo, “Watergate” teria introduzido

uma série de inovações metodológicas, como o uso de fontes anônimas, que foram mesmo muito criticadas à época pelas autoridades responsabilizadas, como sendo um “abuso jornalístico” (HUNTER, 1997, p.24). Além do tipo de fonte utilizada, a construção de um carnet d’adresses pelos dois repórteres teria sido também uma inovação. Mas o “pioneirismo” residiria talvez principalmente no “abandono” da ideia rígida de objetividade que vigorava no jornalismo de então, com os jornalistas se tornando atores da história e o Post, ao empreender as denúncias contra a administração Nixon, virando um “adversário”, e não apenas um veículo que noticiava um fato.

Ainda que seja a principal referência do jornalismo investigativo, caso quase típico- ideal da “função histórica” de “cão-de-guarda” da democracia, que é muito atribuída a essa prática profissional (HUNTER, 1997, p.18), a busca pelas “origens” fez os autores dedicados à história do jornalismo naquele país identificaram na passagem do século XIX para o século XX as primeiras investidas de jornalistas contra os “poderosos”. Assim, a “era dos

43 Maiores detalhes sobre o caso podem ser encontrados em Bernstein e Woodward (1976) e em Schudson

(1993, 1995, 2004). Em Todos os homens do presidente, os atores do “escândalo” são apresentados como “heróis” (os jornalistas e as fontes anônimas), “trouxas” (os investigadores oficiais, cujo trabalho fora sabotado pelos líderes políticos), “vítimas” (o público e os idealistas que faziam parte da administração Nixon) e “vilões” (o presidente e sua entourage) (HUNTER, 1997, p.26). A transformação do enredo do livro em película cinematográfica contribuiu para influenciar o comportamento de repórteres por todo o mundo (NASCIMENTO, 2010, p.39).

44 Tomada aqui no sentido atribuído pelo senso comum. Sobre o “efeito de consenso” que este tipo de artefato

muckrackers45” (1902-1912), como ficou conhecida, representaria o momento em que a imprensa norte-americana se tornou mais sistemática na sua postura ativa de denúncia.

Segundo Hunter (1997, p.12), já na época colonial era possível observar denúncias de escândalos na imprensa, mas “os primeiros esboços de uma imprensa capaz de documentar suas acusações, num espírito de serviço público, remontam apenas aos anos 1830”. Nesta década, os jornais passavam por um lento e progressivo processo de apartamento de uma postura “partidária” para uma posição mais afeita a um ideal de objetividade que começava a se constituir (SCHUDSON, 2010, p.14), buscando atingir o maior número de leitores e confortar esse novo papel de vigilância e denúncia. Foi uma época em que a imprensa encampou várias “cruzadas” com forte uso da “moralidade” e do sensacionalismo. Para Schudson (2010, p.25), a década de 1830 representou uma “revolução” no jornalismo norte- americano, que se traduziu no triunfo da “notícia” sobre o editorial e dos “fatos” sobre a opinião, acompanhando a expansão da democracia e do mercado no país. Os “barões da imprensa” do período se empenharam em “cruzadas jornalísticas por meio de grandes denúncias” (NASCIMENTO, 2010, p.34).

A “era dos muckrackers” foi marcada pelo espírito dessas “cruzadas” das décadas anteriores, e seus protagonistas eram “detectores de escândalos” e foram os “verdadeiros fundadores da investigação à americana” (HUNTER, 1997, p.13). Em linhas gerais, eram jornalistas engajados, “parciais”, que tinham uma “pulsão pelo ativismo”, e buscavam mostrar injustiças e causar indignação na população. Sua atuação durante a primeira década e início da segunda década do século XX levou à implementação de muitas reformas que, às vezes, foram mesmo redigidas pelos próprios muckrackers, em estreita cooperação com associações e/ou partidos políticos (HUNTER, 1997, p.14).

O arrefecimento dessa “era” é atribuído a dois fatores principais: 1) a fadiga do público relativamente à profusão de denúncias publicadas e; 2) a consagração da “objetividade” como princípio profissional, que teria ocorrido em 1923, no seio da ASNE (American Society of Newspapers Editors), que implicava a crença e a demanda pela neutralidade do repórter diante de interesses partidários ou particularísticos. No entanto, o muckracking não desapareceu completamente da imprensa, mas deixou de ser uma tendência predominante para se tornar uma “corrente de esquerda e marginal do jornalismo americano” (HUNTER, 1997, p.15).

45 Designação dada pelo presidente Theodore Roosevelt em um discurso proferido em 1906, com conotação

pejorativa, utilizada para criticar os jornalistas que “chafurdavam na lama” à procura de escândalos. Com o tempo, a expressão adquiriu uma conotação positiva, a ponto se tornar uma das imagens míticas da profissão no país, e sinônimo de jornalismo investigativo (NÉVEU, 2006; NASCIMENTO, 2010; DEMENECK, 2013).

A “tradição” dos muckrackers, portanto, não apenas se mantinha como dispunha de “herdeiros”, que reativaram essa “tradição” no contexto de agitação política e transformações sociais dos anos 1960, década em que “renascem” os muckrackers. Novos jornalistas teriam então descoberto a força das receitas contidas nos trabalhos dos seus predecessores do início do século. Em consonância com isso, a existência de um leitorado jovem e interessado por esse tipo de jornalismo mais agudo contribuiu para essa espécie de “renovação”.

O processo que Hunter (1997, p.18) chama de “revolução da investigação” é constituído pela sobreposição de alguns “movimentos jornalísticos”, todos eles baseados na contestação do ideal de “objetividade”, tal como este tinha se consolidado no início dos anos 1920. O primeiro deles é a chamada “imprensa alternativa” americana, imprensa underground que veiculava opiniões de extrema-esquerda e revolucionárias. Era composta por jornalistas majoritariamente “amadores” e muito politizados, que rejeitavam a objetividade por considerá-la uma forma eufemizada de prejulgamento, pois privilegiava os pontos de vista oficiais e silenciava as minorias sociais ou políticas. Na passagem dos anos 1960 para os anos 1970, essa imprensa radical se torna mais “profissional”, se dotando de meios jornalísticos para documentar suas críticas sociais. Beneficiou-se desse público leitor jovem, em meio ao qual os jornais “tradicionais” perdiam terreno.

O segundo vetor da “revolução” em pauta foi a corrente do “New Journalism”, que apareceu no meio dos anos 1960 em algumas revistas e artigos mais longos nos jornais. Sua crítica à ideia de objetividade residia mais no lugar a ser ocupado pelo jornalista em suas reportagens. Para o ideal assim erigido, o narrador/jornalista tinha que estar ausente, como um observador neutro e externo. Para os aderentes do “novo jornalismo”, tratava-se justamente do contrário. Inspiravam-se fortemente na tradição literária e opinativa do jornalismo francês (WEBER, 2002; CHARLE, 2004), com suas longas reportagens, inferências, e com a interação entre o repórter e suas fontes ocupando o centro da narrativa. “Sem fazer investigação propriamente dita, os ‘novos jornalistas’ conseguiram contudo levantar muitos escândalos simplesmente expondo aspectos pessoais, e mesmo íntimos, de seus assuntos, que a imprensa convencional tinha evitado anteriormente” (HUNTER, 1997, p.21). A partir dos anos 1970, os principais jornais e revistas dos Estados Unidos começaram a fazer uso das técnicas do “novo jornalismo”, cuja principal contribuição teria sido o restabelecimento do primado do relato.

O terceiro “movimento” da “renovação” do muckracking é situado no bojo da guerra do Vietnã (1955-1975), particularmente entre os correspondentes americanos enviados para a cobertura do conflito. Estava em jogo principalmente as relações entre as redações dos

veículos de comunicação e as autoridades americanas: enquanto os anúncios oficiais sobre a evolução do conflito apresentavam o progresso do exército norte-americano, os correspondentes in loco, junto às suas fontes não-oficiais, começaram a mostrar que a guerra estava prestes a ser perdida, e não ganha. A tentativa da administração das notícias sobre a guerra pelo governo colidiu ainda com a crescente “cultura de oposição” que se desenvolvia no seio das universidades, no jornalismo e no próprio governo em meio à efervescência política e cultural dos anos 1960 (SCHUDSON, 2010, p.191). O somatório dos conflitos racioais, da guerra do Vietnã e do “caso Watergate” contribuíram para produzir um clima generalizado de antagonismo em relação ao sistema político na sociedade, que também influiu nos modos como os jornalistas se portavam diante dos fatos. A publicação dos Pentagon Papers, em 1970, pelos jornais The New York Times e The Washington Post, evidenciou o “abuso de confiança” praticado pelas autoridades para com a imprensa e o público. Trata-se de farta documentação sobre as mentiras do governo em relação ao conflito. Como desdobramento dessa defasagem entre os anúncios oficiais e o que os repórteres de guerra noticiavam do front, a imprensa dos Estados Unidos teria passado a não apenas apreciar os fatos de uma nova forma, mas também a encarar as fontes oficiais de modo menos complacente, o que levou Hunter (1997, p.22-23) a concluir que:

A ideia segundo a qual o jornalismo é um combate permanente pela verdade adquiriu um novo sentido: a verdade que defendia o jornalista não será mais a dos dirigentes ‘legítimos’ da sociedade, mas a sua, fundada no seu próprio conhecimento dos fatos. O jornalismo lutou por muito tempo para se tornar um métier; de repente, ele se tornava uma missão.

Ao “caso Watergate” e à renúncia de Richard Nixon seguiu-se uma “era de grande exaltação do jornalismo de investigação” e, entre os anos 1975 e 1980, o trabalho de investigação foi considerado como um teste fundamental da seriedade de um jornalista (HUNTER, 1997, p.30; PROTESS et al., 1991). O status social dos repórteres, e não apenas dos responsáveis pela queda do então presidente, se beneficiou muito desse imediato pós- “Watergate”, uma vez que se tornaram uma espécie de “bastião da esperança” em meio a uma sociedade considerada corrompida.

A percepção por parte dos cidadãos de que a sociedade norte-americana se encontrava em profundo dessaranjo se relacionava principalmente à conduta privada dos agentes políticos. Para Chantal (2001), a peso da vida privada no debate público nos EUA se relaciona com a herança cultural do puritanismo (com a centralidade do tema da ordem moral e do controle das condutas que ele implica), mas principalmente com a orientação à direita

consolidada pela eleição de presidentes conservadores ao longo de três décadas, e com as condições institucionais do debate público. Entre os governos de Franklin Roosevelt e John Kennedy, as condutas privadas dos presidentes se mantiveram ao largo dos olhares da imprensa. A partir dos anos 1970, cresce a importância do aspecto pessoal dos personagens oficiais e a imprensa passa a busca o sensacional “em um ritmo frenético” (CHANTAL, 2001, p.292). Essa mudança de atitude geral da imprensa permite em parte explicar o aumento de escândalos ligados a assuntos privados no país. A partir daí, alguns passam a entender a postura “inquisitora” como uma característica do “estilo americano” de fazer jornalismo (SABATO, p.1993, p.1-24).

Entretanto, já nos anos 1960, “o jornalismo investigativo estabeleceu importantes cabeças de ponte institucionais nos meios de comunicação” (SCHUDSON, 2010, p.27). Anos antes do “caso Watergate”, portanto, observou-se o desenvolvimento de equipes de repórteres investigativos nos principais jornais metropolitanos dos Estados Unidos, em parte devido à corrida pelo “furo” e pela crescente competição da televisão. Ao passo que as organizações jornalísticas passaram a investir no trabalho “investigativo”, os próprios repórteres reconhecidos por esse tipo de atuação começaram a ver a si mesmos como um grupo de pleno direito (SCHUDSON, 2010, p.27).

Em 1967 é promulgada a primeira versão do Freedom of Information Act (FOIA), a legislação que regula o acesso a informações públicas do governo por parte de qualquer cidadão, sob requisição. Esse dispositivo legal era pouco utilizado pelos jornalistas antes de “Watergate”. Após o “escândalo”, o FOIA foi alterado em duas ocasiões (1974 e 1976), ampliando o escopo de informações passíveis de serem fornecidas pelo governo, o que favoreceu os jornalistas “investigativos” do país, que começaram a fazer uso frequente da lei nas suas reportagens.

A criação, em 1969, de um fundo destinado exclusivamente a financiar reportagens investigativas (Fund for Investigative Journalism), consolidou, na visão de Schudson (2010, p.222-223) o desenvolvimento desse “jornalismo não convencional”46. Com o surgimento da Investigative Reporters and Editors (IRE), em 1975, a investigação jornalística à americana teria deixado de ser uma realização de profissionais atomizados, para se tornar uma prática codificada e transmissível (HUNTER, 1997, p.34), ainda que admita-se que uma parte importante desses conhecimentos são informais e não podem ser encontrados nos livros ou

46 No mesmo sentido é sintomática a mudança ocorrida no prêmio Pulitzer a partir de 1964, quando uma

categoria denominada “Reportagem Local” foi substituída pela categoria “Reportagem Investigativa”, enfatizando e legitimando um papel mais ativo, reformista e denunciador da imprensa norte-americana (NASCIMENTO, 2010; MELO, 2015).

manuais (ETTEMA e GLASSER, 1998, p.17-59). A partir de então, a investigação teria se “generalizado”, no sentido de que qualquer instituição da sociedade podia ser alvo do escrutínio de jornalistas. O objetivo do “grupo de repórteres investigativos” que criou a IRE era compartilhar informações “e proteger a reportagem investigativa de se tornar um ‘modismo’ e ‘atrair repórteres em busca de notoriedade’” (SCHUDSON, 2010, p.222). A entidade apareceu apenas um ano depois da queda do então presidente, e um dos seus primeiros feitos foi empreender uma investigação própria sobre o assassinato de um dos seus membros, o jornalista do Arizona Republic Don Bolles, em 1976, no que ficou conhecido como The Arizona Project47.

O conjunto de iniciativas voltadas para um jornalismo “crítico” e “investigativo” anteriores ao “caso Watergate” permite a Schudson (2010, p.223) afirmar que: “As reportagens de Watergate coroaram, em vez de inaugurar, a onda do jornalismo investigativo, mas fizeram isso de forma tão impressionante que Watergate pode se tornar um símbolo de importância permanente para a atividade do jornal”. Mas a maior ou menor predominância do jornalismo considerado “investigativo” na cena pública faz com que essas oscilações sejam interpretadas em termos de “ciclos” ou “surtos”, estabelecendo-se uma continuidade lógica entre, por exemplo, a “era dos muckrackers” e o período “pós-Watergate”.