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III.3 Estar aqui: escrita e “crise política”

1 EM BUSCA DA “AUTENTICIDADE”: JORNALISMO INVESTIGATIVO E OS

1.2 As “genealogias consagradas” em três contextos nacionais

1.2.2 França

Assim como para o caso da literatura nacional sobre o tema, o jornalismo investigativo tal como se desenvolveu na França é pensado principalmente pela negativa, ou seja, pelas aquisições do jornalismo norte-americano que aí não se encontrariam presentes. Contudo, a bibliografia aponta a existência de alguns desenvolvimentos paralelos, como na virada entre os séculos XIX e XX: enquanto nos Estados Unidos apareciam os primeiros muckrackers, na França a ocasião do “caso Dreyfus” (CHARLE, 2004; HUNTER, 1997) favoreceu a constituição de novas concepções acerca das atividades jornalística e intelectual.

Em termos de “contexto cultural”, Hunter (1997, p.60) destaca a alternância entre liberdade e repressão vivida pela imprensa francesa ao longo da sua história. A maior politização da imprensa, em relação aos Estados Unidos, é frequentemente destacada também como uma característica de relevo, o que tenderia a fazer com que houvesse uma desconfiança dos franceses em relação à imprensa em geral, e aos jornalistas investigativos em particular. A

47 Projeto capitaneado por jornalistas de diversos veículos que visava dar continuidade à pauta de Bolles, que

politização da imprensa e a sua inclinação subjetiva, analítica e literária, somando-se a uma legislação restritiva, seriam obstáculos ao desenvolvimento do jornalismo investigativo que, mesmo assim, teria encontrado formas de se estabelecer duravelmente (HUNTER, 1997, p.98).

A figura emblemática do “grande repórter” francês “ocupa o mesmo lugar mítico na história da investigação francesa que o do muckracker do outro lado do Atlântico (...). Mesmo se ele não é um verdadeiro investigador no sentido moderno (...), o grande repórter permanece um modelo de engajamento de coragem e de curiosidade” (HUNTER, 1997, p.63-64). Assim como os muckrackers norte-americano, o “grande repórter” teria como característica ainda uma forte “pulsão reformadora”.

Além do “caso Dreyfus”, a Segunda Guerra mundial e a Libération remodelaram as relações entre a imprensa e os poderes públicos, influindo na investigação jornalística. Uma nova geração de jornalistas, formada na imprensa da Resistência, se opunha aos que atuaram na imprensa colaboracionista. Se colocavam assim a serviço de uma democracia renovada, do Estado francês e dos valores da República. Um corolário dessa tomada de posição era uma parceria oficiosa entre Estado e imprensa, testemunhada pelas generosas subvenções do Estado em prol da refundação da imprensa no pós-guerra, como no caso da agência de notícias France-Presse.

O abalo dessa relação de complacência e dependência viria com a guerra da Argélia (1954-1962), quando a contestação social e política contra o conflito criou as condições para a emergência de uma imprensa que seria precursora da investigação jornalística francesa contemporânea, de modo similar ao que se passou nos EUA em relação à guerra do Vietnã. O final dos anos 1960, mais especificamente as agitações do “Maio de 68”, foi outro período importante. A cultura crítica e radical que brotava desses movimentos formou muitos jornalistas que posteriormente se destacariam como “investigativos”: “Indo mais tarde para o centro político, os jornalistas oriundos da esquerda radical guardaram um elemento-chave da mentalidade investigadora: a vontade subjetiva de transformar as instituições em nome do bem público” (HUNTER, 1997, p.74).

Com “Watergate”, a imprensa e o público franceses puderam ver o que uma imprensa agressiva podia fazer em prol da “democracia”, o que fez com que, ao mesmo tempo, o público tivesse mais compreensão para com as atividades de repórteres “agressivos” e que os jornalistas franceses buscassem diminuir o “atraso” em relação aos desenvolvimentos observados nos Estados Unidos. É o momento em que começam a ser debatidos os princípios da investigação jornalística no país, antes que um movimento geral nesse sentido aparecesse,

ao contrário dos EUA após o “Watergate”. Hunter (1997, p.80) situa em janeiro de 1981 a primeira discussão sistemática sobre jornalismo investigativo na França, num colóquio organizado pelo Centre pour le perfectionnement des journalistes (CPJ). A realização desse evento, ainda segundo Hunter (1997, p.80) tinha revelado um “movimento autêntico em direção à investigação” no jornalismo francês.

Até a primeira metade dos anos 1980, a elite jornalística francesa reporta a atualidade de modo mais voltado para a explicação e simplicação dos acontecimentos para o público, do que para uma postura de denúncia (RIEFFEL, 1984; HUNTER, 1997). Era uma imprensa que ainda dependia muito dos recursos do Estado e que, além disso, compartilhava os valores das instituições e personalidades dominantes48. Mas desde os anos 1970, e com maior ênfase a partir dos anos 1980 e 1990, os jornalistas de investigação se tornaram uma das imagens dominantes do jornalismo, como símbolos de excelência profissional e como incarnação pública do métier jornalístico (MARCHETTI, 2001, p.174). Concomitantemente, foram os anos em que se proliferaram escândalos envolvendo os grandes partidos e as altas autoridades políticas, mas também outras esferas da vida social49. É quando inicia-se o “paradoxo francês”

(MARCHETTI, 2001, p.188), ou seja: “(...) a midiatização da maior parte dos casos foi amplamente (mas não somente) iniciada e desenvolvida por jornais ‘de esquerda’ contra governos ‘de esquerda’”. Portanto, o período de Miterrand no poder (1981-1989) deu lugar ao crescimento e concentração das investigações jornalísticas, iniciando-se pelo “caso dos Irlandeses50”, em 1982, passando pelo “caso Greenpeace51”, em 1985. Quanto a este último, seu ineditismo para o jornalismo francês residiria no fato de que, pela primeira vez, uma investigação jornalística conseguiu derrubar um membro do governo.

Sustentado por um pelotão de repórteres da imprensa nacional (...), o movimento conheceu um novo desenvolvimento. Uma após a outra, as instituições dominantes da sociedade francesa (...) foram submetidas a um exame sem precedente. Uma após a outra, personalidades públicas e funcionários anteriormente irrepreensíveis foram colocados em causa, às vezes irremediavelmente. Nem a esquerda nem a direita fora poupada, fato revelador: a imprensa de investigação não respeitava mais as clivagens políticas, mesmo se suas fontes continuaram a se servir dela para enfraquecer seus adversários (HUNTER, 1997, p.96).

48 A privatização da TF1, em 1987, é geralmente apresentada como um passo importante na autonomização da

imprensa de informação geral do Estado francês, assim como o movimento mais geral de quebra do monopólio estatal sobre as mídias audiovisuais entre os anos 1970 e 1980 (HUNTER, 1997, p.104).

49 Garraud (1999) situa entre o final do século XIX e a Segunda Guerra mundial o período de maior venalidade

da imprensa e dos jornalistas, e da profunda imbricação entre o meio dos negócios, o mundo político e as mídias. Nesse período, “o métier de jornalista não constituía ainda uma profissão autônoma e bem definida, regida por condições de acesso e um código deontológico preciso” (GARRAUD, 1999, p.136-137).

50 Dizia respeito à prisão ilegal de três irlandeses considerados falsamente como “terroristas”.

51 Tratava da sabotagem de um navio de militantes ecologistas por agentes do serviço secreto francês no porto de

As redações começaram a se reestruturar: “No fim dos anos 80, a maior parte dos grandes jornais e cadeias de televisão na França empregaram especialistas da investigação ou equipes organizadas em torno de um investigador confirmado” (HUNTER, 1997, p.113). Dessa “década de escândalos”, os que mais tiveram repercussões e desdobramentos para o jornalismo francês talvez tenham sido a sequência dos “casos médicos” ligados à contaminação pelo vírus da AIDS. Embora primeiramente adstritos ao terreno da saúde, impactaram fortemente o mundo político. Para Hunter (1997, p.98), o fato de ser um “escândalo” ligado a outra esfera que não a política evidencia a “generalização da investigação” no país.

As iniciativas dessa geração de jornalistas contribuíram sobremaneira para a consolidação do jornalismo investigativo. Os “casos médicos” em pauta estão, segundo Marchetti (2010, p.81-113), no cerne das maiores transformações sofridas pela informação de saúde entre os anos 1980 e 1990 e revelam a perda do status de exceção da mesma, que passa a obedecer a lógicas de produção exteriores ao campo médico. Devido às suas múltiplas dimensões, a contaminação pelo vírus da AIDS acabou por participar desse “processo de ‘desmedicalização’, de banalização da informação de saúde e, de modo mais geral, da transformação das relações entre jornalistas e o universo médico” (MARCHETTI, 2010, p.81), assim como do espaço político. O autor se debruça então sobre os dois momentos de intensa midiatização do contágio pela doença em questão: o “caso da vacina anti-hepatite B” (1983) e aquele que ficou conhecido como o “escândalo do sangue contaminado”, que se estendeu de 1991 a 199752.

Em se tratando do “caso da vacina anti-hepatite B”, que consistiu basicamente no risco teórico de contaminação pelo vírus HIV através da vacina, o estado da estrutura do campo jornalístico ainda não favorecia a transformação deste caso num “escândalo” propriamente dito, ou seja, com uma carga de politização e dramatização elevada, muito embora as premissas de um jornalismo “crítico” e investigativo já estivessem presentes. À época do caso, os jornalistas especializados possuíam pouca autonomia em relação às suas fontes e o princípio de interpretação dominante ainda estava majoritariamente nas mãos dos cientistas, tornando o tratamento da informação em geral mais cauteloso. O “caso médico” subsequente, caracterizado pelos numerosos casos de AIDS registrados principalmente entre hemofílicos após transfusões sanguíneas efetuadas com sangue de doadores infectados pelo vírus,

cristalizou os conflitos internos ao campo jornalístico que foram gestados no período relativo ao caso anterior. O resultado dessas disputas foi um desapossamento da cobertura por parte dos jornalistas médicos e o protagonismo de jornalistas políticos e “investigativos” no tratamento do “escândalo”, o que mudou sensivelmente as formas de tratamento da informação de saúde, que se tornou mais moralizada, politizada e judicializada, a ponto das mídias se transformaram em um “tribunal da opinião pública53”.

Em síntese, o jornalismo investigativo, na França, se desenvolve em meio a uma espécie mercado editorial e comercial de denúncia dos “privilégios” da classe política (mas não apenas dela) que tem efeitos diretos na afirmação da identidade social e profissional dos jornalistas (CHARON, 2003), e, por essa via, na emergência da mencionada “nova categoria” de jornalistas que devem sua notoriedade aos “casos” que eles “revelaram”. Escrevendo no final dos anos 1990, Hunter (1997, p.121) apontava que o momento francês teria atingido um estágio comparável ao do jornalismo norte-americano no período posterior ao caso “Watergate”, retomando novamente a referência dos Estados Unidos como parâmetro de avaliação.