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O Brasil, diferentemente dos países centrais — que passaram pelo paradigma do Estado Social —, teve seu processo de transição democrática no final da década de oitenta. Esse atraso no “calendário histórico teve consequências fundamentais no domínio da garantia dos direitos”.156 Isso porque:

De uma forma ou de outra, os países periféricos e semiperiféricos viram-se na contingência de consagrar constitucionalmente ao mesmo tempo os direitos que nos países centrais tinham sido consagrados sequencialmente ao longo de um período de mais de um século, ou seja, no período liberal, os direitos cívicos e políticos, no período do Estado-Providência, os direitos econômicos e sociais, e no período do pós-Estado-Providência os direitos dos consumidores, da protecção ambiente e da qualidade de vida geral. Obrigados, por assim dizer, a um curto-circuito histórico não admira que estes países não tenham, em geral, permitido a consolidação de um catálogo tão exigente de direitos de cidadania.157

Como leciona Celso Campilongo, “no caso específico do Brasil, a transição democrática apresenta-se, ainda, como o tempero apimentado de todo o processo. ‘Transição democrática’ significa, para a teoria política, redistribuição de poderes e reconstrução das regras do jogo político”. Consequentemente, pressupõe “um período de disputa acentuada a respeito da lei e da interpretação a ser dada ao direito in fieri”.158

Entretanto, nesses países que passaram por uma transição democrática tardia — como é o caso do Brasil —, o Poder Judiciário só muito lenta e fragmentariamente têm assumido sua corresponsabilidade política na atuação do Estado para a implementação dos direitos sociais.

Boaventura enuncia que “a distância entre a Constituição e o direito ordinário é, nestes países, enorme e os tribunais têm sido, em geral, tíbios em tentar encurtá-la. Os fatores desta

155 SADEK, Maria Tereza; ARANTES, Rogério Bastos. A crise do Judiciário e a visão dos juízes. Revista USP,

n. 21, p. 34-45, mar./abr./maio 1994. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/21/04-sadek.pdf> Acesso em 10 dez. 2012.

156 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas

sociedades contemporâneas. Op. cit., p. 32.

157 Ibidem, p. 32.

tibieza são muitos e variam de país a país”.159 Eles vão do conservadorismo dos magistrados,

em virtude de concepções arcaicas aprendidas nas faculdades de Direito, até o procedimento rotinizado da justiça retributiva e a deficiência da organização judiciária, com sua carência de recursos humanos e materiais.

Entretanto, mesmo sem os países periféricos e semiperiféricos terem passado pelo Estado Social — e nem pela crise deste — como ocorreu nos países centrais, Dierle Nunes esclarece que “no final da década de 1980, considerada a ‘década perdida’ para os países em desenvolvimento, os órgãos financeiros mundiais — Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial — pressionaram os países da América Latina a novas práticas de índole liberal”.160

Propôs-se, então, um ajuste macroeconômico, a fim de reforçar o discurso do livre mercado. Como aponta o autor, não condiz com este movimento liberal a instituição da participação no âmbito do Judiciário e do processo, como controle da função estatal, e nem, por outro lado, incrementar a atuação e intervenção judicial, nos moldes da teoria socializadora do processo. Seria necessária, assim, a “criação de um modelo processual que não oferecesse perigos para o mercado, com o delineamento de um protagonismo judicial muito peculiar, em que se defenderia o reforço do papel da jurisdição e o ativismo judicial”, mas, por outro lado, “não se assegurariam as condições institucionais para um exercício ativo de uma perspectiva socializante ou, quando o fizesse, tal não representasse um risco aos interesses econômicos e políticos do mercado e de quem o controla”.161

Tal assertiva é confirmada pela elaboração, por parte do Banco Mundial, do Documento Técnico n. 319, em junho de 1996, com propostas que “privilegiavam predominantemente a busca de um processo célere e que garantisse a defesa da propriedade privada e do mercado. Isso fica claro no cotejo de inúmeros trechos do aludido documento, que sub-repticiamente conjugam acesso à justiça com defesa do setor privado e do mercado”.162

Dierle Nunes conclui em tom severo que essa perspectiva processual, por ele denominada “neoliberal”, enseja um sistema voltado para a produtividade (art. 93, inc. II, alínea “c”, CRFB/88 com nova redação dada pela EC/45), em que o cidadão é um mero espectador privado (consumidor) da “prestação jurisdicional”, como se a função jurisdicional fosse um órgão prestador de serviços e servisse apenas como “aparato empresarial que

159 SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os Tribunais nas

sociedades contemporâneas. Op. cit., p. 33.

160 NUNES, Dierle José Coelho. Processo... Op. cit., p. 157. 161 Ibidem, p. 159.

devesse fornecer soluções (produtos e serviços) do modo mais rápido, à medida que os insumos (pretensões dos cidadãos) fossem apresentados (propostos)”.163

Nesse contexto, a interpretação dos princípios processuais constitucionais “passa a ser feita em perspectiva formal, como se fossem utilizados tão-somente para que o processo obtenha máxima eficácia prática dentro de critérios quantitativos (e privatísticos) e não qualitativos”.164 Sem dúvida, essas exigências fizeram com que o Brasil assumisse uma

postura denominada neoliberal.

Nas lições de Paulo Bonavides, o “Estado Neoliberal, por natureza, essência e substância, é Estado anti-social, de conteúdo burguês, circunscrito aos direitos da primeira geração, girando em redor de um rígido formalismo jurídico e implodido, já, no campo constitucional, pelos direitos das demais dimensões”.165

O resultado dessa influência no Brasil está nas diversas reformas feitas no Código de Processo Civil. Entretanto não se pode ignorar que a essência das alterações da legislação está em consonância com as exigências das agências internacionais neoliberais (Banco Mundial), especialmente no que tange à celeridade. Essas reformas aumentam sem dúvida o quantitativo das decisões, mas não garantem, por outro lado, a melhora qualitativa das mesmas.

Jânia Maria Lopes Saldanha, neste ponto, leciona que “essa busca pela produtividade visa atender o ideário neoliberal da máxima produção em tempo real”, sendo “visível a aproximação do Direito com os interesses econômicos, em prol da máxima eficiência entendida como produtividade”.

Aduz, então, que essas leis reformadoras do Código foram meros instrumentos, sem qualquer carga axiológico-normativa, que vieram para atender interesses bem definidos de forças políticas e econômicas e, portanto, constituíram-se de uma índole político-social- econômica. Conclui que essa instrumentalização “reduz o Direito e a Jurisdição ao mais puro funcionalismo, em outras palavras, redução da Justiça à lei, refinado produto das concepções positivistas do século XIX que perpassaram o século XX e aportaram ao século XXI com toda a força de sua expressão”.166

Por fim, sintetizando as reformas, L. A. Becker pondera que essas inovações conduzem a uma sociedade “dromocrática”:

163 NUNES, Dierle José Coelho. Processo... Op. cit., p. 163. 164 Ibidem, p. 164.

165 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2008, p. 44.

166 SALDANHA, Jânia Maria Lopes. A influência do neoliberalismo sobre a jurisdição: a difícil sintonia entre

eficiência e efetividade. In: MARIN, Jeferson Dytz (Coord.). Jurisdição e processo: estudos em homenagem ao Prof. Ovídio Baptista da Silva. Curitiba: Juruá, 2009, v. 3, p. 62.

Talvez essa demanda dirigida exclusivamente à celeridade seja algum indício de que estamos longe de uma sociedade democrática, e mais próximos de uma sociedade dromocrática, na feliz expressão de Paul Virilio. O apelo à velocidade (dromos), o apelo à eficiência, tendem a minar os fundamentos da democracia. Afinal, aos olhos do neoliberalismo, a decisão democrática é um processo mais conflituoso, ineficaz e demorado que as decisões capitalistas, que são tomadas a todo tempo e chegam mais rápido aos destinatários. [...]

Transportando essa discussão para o processo civil, é preciso democratizar o processo civil, e não exclusivamente dromocratizá-lo. Se ele é lento, não é por causa de algum excesso de “democratismo”, mesmo porque ainda há verdadeiros nichos de autoritarismo no processo civil e no Judiciário, inclusive se desconsiderarmos o fato de que o corpo do nosso CPC foi aprovado em pleno período de repressão política e se ignorarmos o modelo tecnoburocrático de composição do Judiciário brasileiro. O fato é que a luta

pela efetividade do processo não pode descurar da luta pela sua democratização.167

Diante de todas essas considerações, percebe-se claramente que o Brasil caminhou de um Estado Liberal para um Estado Neoliberal, onde permanece a predominância da lei, no caso lei do mercado, e a defesa do interesse de poucos.

2.3 Crítica ao modelo liberal do processo civil brasileiro: racionalismo e neutralidade