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2.3 Crítica ao modelo liberal do processo civil brasileiro: racionalismo e neutralidade

2.3.1 Racionalismo: a utopia da certeza no processo civil

“A utopia da certeza no processo civil” é o título dado por L. A. Becker ao capítulo em que pretende demonstrar a vã pretensão do processo em buscar a certeza e a verdade em uma época de incertezas. Já no início do capítulo o autor pondera que:

[...] temos instituições cujo funcionamento depende — e muito — da certeza. Estamos falando do processo civil. Não só a certeza que se busca na reiteração de decisões judiciais, sempre frustrada. Mas também a certeza que se coloca como objetivo ao final do processo: certeza na decisão, calcada na certeza das formas processuais no procedimento ordinário, amparada pela instrução probatória, consagrada pelo título executivo e pela coisa julgada, avessa a qualquer provimento de urgência anterior à decisão final, que em tese é a única decisão certa, precisa, porque fundada numa suposta “posse da verdade”. Além dessas duas exigências de certeza há mais uma: a certeza do direito a ser aplicado.171

Aborda, assim, a predominância da “vontade de verdade” no âmbito do processo como a “crença cega (porém fundadora das ciências!) na imprescindibilidade absoluta do que é verdadeiro; crença na superioridade da verdade, em sua prevalência sobre a aparência, a ilusão, a falsidade”, inclusive sobre a “probabilidade e a verossimilhança”.172

169 SILVA, Ovídio Baptista A. Op. cit., p. 56. 170 Ibidem, p. 56.

171 BECKER, L. A. Op. cit., p. 286-287. 172 Ibidem, p. 290.

A crítica que se faz, porém, com relação a essa premissa está no reflexo da “impotência da vontade de criar”, aliada ao medo do juiz de errar — a ponto de se esconder atrás do Código —, e na “exigência de certeza nas decisões, calcada na inexorável, desenfreada e teimosa ‘busca da verdade’”, a fim de atender “um mercado que precisou de uma justiça segura e previsível para desenvolver o Estado Industrial”.173

A ânsia da certeza na decisão foi “conservada em formol, ainda hoje na jurisdição tradicional” — em especial no procedimento ordinário —, desconsiderando o fato de que nas ciências em geral as tais certezas já foram “devidamente desmistificadas pela teoria do caos”.174 Becker ressalta que:

[...] a busca frenética da verdade não passa de um tapume de automatismo e suposta infalibilidade, a tentar fazer desnecessário qualquer prurido ético na decisão judicial. Se — como diria Eduardo Gianetti — falar em ética é falar em liberdade de escolha e em falibilidade, o sacrifício da escolha individual “no altar da perfeição infalível é escolher um mundo ‘perfeito’, mas no qual a experiência moral perdeu o sentido”. Em suma: o processo busca a verdade quando já desistiu da ética, assim como o juiz busca a lei quando já abdicou da justiça.

Por outro lado, como ressalva o autor, não se pode partir para o avesso dos dogmas da certeza e da verdade, em culto ao dogma do provável, pois “é questionável a eticidade de um processo civil voltado exclusivamente à celeridade, de modo ‘parnasiano’ — a rapidez pela rapidez, sem nenhuma preocupação com o acesso à justiça, isonomia real e outras questões relevantes”.175

A marca de conservadorismo no processo civil também foi objeto de preocupações de Ovídio Baptista, para quem “não é tarefa difícil descobrir as raízes ideológicas que presidem o sistema processual, mantendo seus compromissos com o racionalismo”, de onde “provém a suposição de que a lei jurídica seja uma proposição análoga às verdades matemáticas”.176

Assevera que:

O sentido a-histórico de nossas instituições liga-se a este pressuposto [...]. É daí que parte a premissa metodológica para sustentar que a norma jurídica, como uma equação algébrica, somente admite um resultado “certo”. Daqui é que devemos, então, extrair a seguinte conclusão: se a norma jurídica assemelha-se a uma proposição algébrica, será impensável supor que ela

173 BECKER, L. A. Op. cit., p. 291-292. 174 Ibidem, p. 313.

175 Ibidem, 315.

tenha “duas vontades”; que possa permitir a seus aplicadores uma dose, mínima que seja, de discricionariedade.

Para o sistema, a norma jurídica deverá ter, consequentemente, sentido

unívoco. Ao intérprete não seria dado hermeneuticamente “compreendê-la” mas, ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o problema “algébrico” da descoberta de sua “vontade”. Compreende-se, portanto, as razões que, no século XIX, fizeram com que os autores dos Códigos procurassem impedir que sua obra fosse interpretada. Reproduziu- se no século XIX a tentativa de Justiniano de impedir a compreensão hermenêutica de suas leis.177

Como apontam Jeferson Dyts Marin e Carlos Alberto Lunelli, esse paradigma racionalista surgiu para “sustentar a afirmação do antropocentrismo em face do teocentrismo”, quando o homem ousou desafiar Deus. Houve um deslocamento filosófico em que o homem, agora como sujeito de um mundo explicável por meio da razão, deveria garantir a verdade e a certeza, “afastando-se do provável e do plausível”.178

Era fundamental a ideia de que o homem tinha condições de reconhecer pela razão a construção lógica e coerente do mundo. O homem não se contentava mais com a sabedoria divina, “era necessário o esgotamento das possibilidades, para alcançar-se a certeza”.

A certeza, dessa forma, torna-se “um valor supremo, um dogma indiscutível, o que termina por produzir uma técnica científica adaptada a essa exigência, produzindo uma ciência processual mecanicizada”.179 Essa busca voraz pela certeza e, logo, pela segurança

jurídica, terminou por prejudicar o próprio ideal de alcance da justiça, até mesmo porque todo esse culto ao rigor lógico implicou “a consolidação de uma ciência jurídica dissociada da dimensão moral e comprometida com a ideia de que o alcance de seus propósitos derivaria da certeza e do rigor procedimental”.180

Portanto, os rumos da ciência jurídica, naquele momento histórico, foram conduzidos pela codificação, que incorporou métodos de raciocínio e dedução lógicos para escapar do subjetivismo do julgador, e, assim, materializar os propósitos da lei quanto ao alcance da certeza e da segurança.181

Nessa mesma linha de raciocínio, Ovídio Baptista elucida que a criação de um “mundo jurídico”, fechado em si mesmo e que contém “verdades eternas”, prescindindo dos fatos, está

177 SILVA, Ovídio A. Baptista. Op. cit., p. 17.

178 MARIN, Jeferson Dytz; LUNELLI, Carlos Alberto. O paradigma racionalista: lógica, certeza e o direito

processual. In: MARIN, Jeferson Dytz (Coord.). Jurisdição e processo: estudos em homenagem ao Prof. Ovídio Baptista da Silva. Curitiba: Juruá, 2009, v. 3, p. 28.

179 Ibidem, p. 33. 180 Ibidem, p. 39. 181 Ibidem, p. 36.

ligada ao paradigma do racionalismo do século XVII, que pretendia “tornar o Direito uma ciência demonstrativa tão exata quanto a matemática”.182 Diante disso:

O direito processual moderno, como disciplina abstrata, que não depende da experiência, mas de definições, integra o paradigma que nos mantém presos ao racionalismo, especialmente ao Iluminismo, que a História encarregou-se de sepultar. Esta é a herança que temos de exorcizar, se quisermos libertar de seu jugo o Direito Processual Civil, tornando-o instrumento a serviço de uma autêntica democracia. É ela a responsável pela suposta neutralidade dos juristas e de sua ciência, que, por isso, acabam permeáveis às ideologias dominantes, sustentáculos do sistema, a que eles servem, convencidos de estarem a fazer ciência pura.183

Nesses termos, Ovídio Baptista conclui que os “dois principais compromissos ideológicos inerentes à nossa compreensão do Direito e da missão do Poder Judiciário” estão na ideia de que o juiz somente deve respeito à lei, excluída qualquer possibilidade de compreensão hermenêutica, e a “tirania exercida pela economia sobre o resto. A função do Poder Judiciário não é mais fazer justiça, porém aclamar o mercado”.184 Assim sendo:

Com a separação entre teoria e prática, as classes dominantes conseguiram dois resultados significativos: (a) sujeitaram os magistrados aos desígnios do poder, impondo-lhes a condição de servos da lei; (b) ao concentrar a produção do Direito no nível legislativo, sem que aos juízes fosse reconhecida a menor possibilidade de sua produção judicial, buscaram realizar o sonho do racionalismo de alcançar a certeza do direito, soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretação da lei, no momento de sua aplicação jurisdicional, pudesse torná-lo controverso e portanto incerto.185

Esse paradigma racionalista, que supõe ser o Direito uma ciência tão exata quanto a matemática, resta evidente quando se depara com o conceito de jurisdição como declaração, adotado pelo Código de Processo Civil brasileiro por influência de Giuseppe Chiovenda. Segundo este conceito a função jurisdicional teria uma “natureza meramente ‘intelectiva’, enquanto pura cognição”, sendo que “a atividade do juiz deve limitar-se a revelar a ‘vontade concreta da lei’”, ou seja, “sua missão seria apenas verbalizar a ‘vontade da lei’ ou a vontade do legislador”.186

182 SILVA, Ovídio A. Baptista. Op. cit., p. 79. 183 Ibidem, p. 79.

184 Ibidem, p. 21-22. 185 Ibidem, p. 36. 186 Ibidem, p. 93.

Nesse sentido, a vontade da lei “já estava ‘concretizada’ ao instaurar-se o processo”, cabendo ao juiz “apenas revelá-la”. A premissa desse raciocínio chiovendiano é que a norma jurídica deverá ter um sentido unívoco, e “ao intérprete não seria dado hermeneuticamente ‘compreendê-la’ mas, ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o problema ‘algébrico’ da descoberta de sua ‘vontade’”.187

Outro ponto é que “quando se retira a autonomia do julgador, impondo-se a ele apenas a função de descobridor do sentido unívoco da lei, transfere-se ao legislador a responsabilidade pela realização da justiça”. Portanto, se a tarefa do juiz é apenas de descoberta, como se matemática fosse, “a realização dos ideais de justiça é própria do legislador e de ninguém mais”.188

Porém, como salienta Ovídio Baptista, os pressupostos são equivocados. Primeiro, porque se “imagina que a lei contenha todo o direito; que, como sustentam correntes do positivismo moderno, a justiça não seja problema do juiz. A justiça seria um problema do legislador: ou o juiz aplica a lei ou será irremediavelmente injusto (Hobbes)”. Segundo, porque, como se parte da “epistemologia do ‘certo’ e do ‘errado’, dizendo que o juiz deve descobrir a ‘vontade da lei’”, pressupõe-se que “possa haver apenas uma ‘vontade da lei’ a ser revelada na sentença”. Ou seja, por força do dogmatismo, não “é dado admitir que a lei, sendo hermeneuticamente interpretada, possa deixar ao magistrado uma margem de liberdade que lhe permita fazer o Direito progredir, harmonizando-o com as novas realidades sociais e históricas, capazes de revelar, agora, ‘outra vontade’ da lei”.189

Nesse conceito de jurisdição o papel do juiz fica restrito à análise do passado, como um historiador, sem a possibilidade de prover o futuro, tarefa esta exclusiva do legislador. Ora, sendo o juiz o “oráculo da lei”, cabe-lhe apenas revelar sua vontade, “tarefa que pressupõe isso que nossa doutrina indica como ‘cognição exauriente’. Somente após esse contraditório amplo, o julgador estaria em condições de ‘verbalizar’ (enquanto ‘bouche de loi’) a ‘vontade da lei’”.190 Diante dessa perspectiva racionalista, elimina-se a compreensão

hermenêutica do magistrado, retirando “qualquer legitimidade à retórica, enquanto ciência da argumentação forense”.

É por isso que o chamado processo de conhecimento “é o instrumento dessa ideologia” e “é por meio dele que o sistema pretende manter a neutralidade — melhor, a passividade — do juiz durante o curso da causa, para somente depois de haver descoberto a

187 SILVA, Ovídio A. Baptista. Op. cit., p. 93.

188 MARIN, Jeferson Dytz; LUNELLI, Carlos Alberto. Op. cit., p. 34-35. 189 SILVA, Ovídio A. Baptista. Op. cit., p. 244.

‘vontade da lei’ (Chiovenda), autorizar-lhe a julgar, produzindo o sonhado juízo de certeza”.191

Em razão dessa total submissão à lei, Ovídio Baptista faz uma distinção entre o ato de julgar, que é uma função intelectiva, e o ato de decidir, que tem natureza volitiva, o que possibilita a escolha entre mais de uma opção. Isso porque:

Como a exclusiva missão de nossos juízes é descobrir a “vontade da lei”, fica subentendido que eles não têm a mínima possibilidade discricionária de opção entre duas ou mais alternativas que o sistema reconheça como legítimas. Logo, nossos juízes apenas julgam, sem poder decisório. O ponto culminante da crise paradigmática encontra-se aqui. Sem a compreensão hermenêutica que supere o dogmatismo, não haverá solução. E isto supõe

discricionariedade.

É claro que, na prática, todos sabemos que os juízes realmente decidem. Todavia, essas autênticas decisões, reveladoras de componente volitivo do ato jurisdicional, não devem ser admitidas como uma possibilidade legitimada pelo sistema. A solução é fazer que o juiz simule a construção de um silogismo, para dar a impressão de que seu raciocínio seguira o modelo matemático.192

Portanto, a conclusão que se chega diante desse paradigma racionalista é a de que o verdadeiro julgador não é o juiz, mas sim o Código, que contém a vontade da lei. O processo civil revelador de uma verdade insculpida na lei pertence a uma ciência da descoberta, que faz do juiz um matemático da época do Iluminismo.

Essa é a crítica feita ao racionalismo, que não se compatibiliza com a dimensão hermenêutica que se pretende conferir ao direito processual — uma ciência da compreensão —, que exige dos juízes um verdadeiro raciocínio jurídico.