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4.2 Delineamentos de uma nova ótica processual: racionalidade procedimental da

4.2.2 Processo e racionalidade procedimental

O processo, no constitucionalismo contemporâneo, “além de outorgar à jurisdição a possibilidade de proteger os direitos, deve ser legítimo, espelhando os valores que fazem do Estado uma democracia ou que conferem ao exercício do poder natureza democrática”. Nesses termos, como já mencionado, “o processo deve ser aberto ao contraditório ou estar aberto à participação dos particulares que a ele recorrem e são afetados em suas esferas jurídicas pelos atos de positivação de poder do Estado-juiz”.647 Conforme Marinoni:

[...] o processo necessita de um procedimento que seja, além de adequado à tutela dos direitos, idôneo a expressar a observância dos direitos fundamentais processuais, especialmente daqueles que lhe dão qualidade de instrumento legítimo ao exercício do poder estatal. Portanto, o processo é o procedimento que, adequado à tutela dos direitos, confere legitimidade ao exercício do poder jurisdicional.648

Em outras palavras, “o processo é o procedimento em contraditório que não dispensa a publicidade e a argumentação explicitada através da fundamentação. Apenas essa forma de participação é capaz de legitimar o processo”.649

O direito processual civil, pois, “exerce papel determinante, por ser direito fundamental, compartilhando, em essência, a natureza democrática”. Segundo Hermes Zaneti, “o que se pretende afirmar é que a nova ótica constitucional e o novo direito processual seguem a lógica da participação em contraditório, da racionalidade prática procedimental”.650

O autor esclarece que essa racionalidade preocupa-se com “a observância de um procedimento orientado por regras convencionadas ou institucionalizadas que leva à justificação, legitimação e validade da atitude prática racional”.651 Assim, “o papel da

646 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 280.

647 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 412. 648 Ibidem, p. 412.

649 Ibidem, p. 417.

650 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 148. 651 Ibidem, p. 71.

racionalidade prática procedimental é decisivo nesse jogo de composição de forças”, considerando que:

[...] O processo jurisdicional, entendido como procedimento em contraditório (módulo processual) que se movimenta no âmbito da jurisdição, pelas próprias características do discurso processual, possibilita aos contendores um espaço privilegiado de discussão, no qual o requisito da pretensão de correção se trata do controle pelos participantes e pela sociedade (presente e futura) de que se busca uma “solução ótima” para a aporia fundamental de justiça.652

Diante disso, em um contexto pós-positivista a finalidade do Direito, e obviamente do processo, está na sua “abertura para a democracia”, pois “é só no marco democrático que existe a possibilidade de um Estado de Direito Constitucional”.653 Propõe-se “um resgate da

complexidade do fenômeno processual e da legitimidade da discussão entre os participantes da decisão, para sua formação e racionalidade”, pois “o processo é complexo na sua aplicação, afastando reduções lógico-formais”,654 como se fazia pela ideologia do Código de

Processo Civil de 1973.

Nos moldes atuais, a realidade se potencializa no processo, sendo que “a mera afirmação em juízo de um direito o torna incerto”. Desta feita, “a ‘resposta’ depende do procedimento, se apresenta no curso do diálogo”, de forma que a pretensão de correção no processo está no procedimento. Insta ressaltar, juntamente com Eduardo Cambi, que a verdade jurídica “é construída, em um processo do qual participa o intérprete, não sendo demonstrada, mas legitimada mediante um processo de justificação”.655 Isso porque essa

verdade não está no consenso obtido ao cabo do procedimento, “mas, antes disso, nas condições para que o consenso seja bem fundamentado, e um consenso bem fundamentado está baseado na força do melhor argumento”.656

Entretanto, não se defende um modelo puramente procedimental, por demandar uma situação ideal, em que todos os participantes do procedimento possuam iguais oportunidades, o que é irrealizável em sociedades complexas e desiguais. Trata-se de um procedimentalismo que parte de um conceito idealizado de democracia e não se preocupa com a efetivação dos direitos fundamentais.

652 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 165. 653 Ibidem, p. 151.

654 Ibidem, p. 71-72.

655 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 284. 656 Ibidem, p. 285.

De fato, como leciona Marinoni, “a legitimação da jurisdição não pode ser alcançada apenas pelo procedimento em contraditório e adequado ao direito material, sendo imprescindível pensar em uma legitimação pelo conteúdo da decisão”. Aduz que:

É que o contraditório e a adequação legitimam o processo como meio, porém não se prestam a permitir a identificação da decisão ou do resultado do processo, ou melhor, a garantir o ajuste da decisão aos compromissos do juiz com os conteúdos dos direitos fundamentais. O procedimento pode ser aberto à efetiva participação em contraditório e adequado ao procedimento material e, ainda assim, produzir uma decisão descompromissada com o conteúdo substancial das normas constitucionais.657

Não se quer com isso defender o inverso do procedimentalismo, ou seja, o substancialismo, que dá ênfase somente ao conteúdo material dos preceitos constitucionais, que devem se aplicados pelos juízes de acordo com uma concepção atraente dos valores morais que lhes servem de base. Para tanto seria preciso tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores, e o Judiciário seria o competente para definir, conforme preferências compartilhadas, o conteúdo e a extensão desses valores, bem como o que pode ser discutido e expresso como digno deles.

A visão substancialista, como “concepção axiológica de aplicação dos direitos fundamentais, se adapta ao perfil solipsista de reforço do Poder Judicial”.658 Como aponta

Dierle Nunes:

A visão de um protagonismo judicial somente se adapta a uma concepção teórico-pragmática, que entrega ao juiz a capacidade sobre-humana de proferir a decisão que ele repute mais justa de acordo com sua convicção e preferência (solipsismo metódico) segundo uma ordem concreta de valores, desprezando, mesmo em determinadas situações (hard cases), possíveis contribuições das partes, advogados, da doutrina, da jurisprudência e, mesmo, da história institucional do direito a ser aplicado.659

Portanto, no Estado Democrático de Direito não se pode adotar radicalmente nenhuma das teorias, pois nesse paradigma a interpretação está assentada na intersubjetividade, ou seja, a democratização do processo “pressupõe uma interdependência entre os sujeitos processuais, uma co-responsabilidade entre estes e, especialmente, um policentrismo processual”.660 O

processo não pode ser “visto como instrumento técnico da jurisdição (e do juiz) que poderia

657 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 446-447. 658 NUNES, Dierle José Coelho. Processo... Op. cit., p. 189. 659 Ibidem, p. 191-192.

formar uma decisão com qualquer conteúdo”.661 Pelo contrário, o conteúdo das decisões

judiciais deve ser resultado do fluxo discursivo de todos os participantes.

Em outras palavras, “nem a forma nem o conteúdo bastam sozinhos em face da falibilidade” do conhecimento humano, “uma vez que, na prática justificativa, garante-se, no máximo, que a troca de argumentos abranja todas as informações e razões relevantes atualmente disponíveis, devido à inexistência de fontes de evidência e argumentos definitivos em questões práticas que possam ser determinados antes do procedimento argumentativo”. Por isso, o procedimento deve garantir “um espaço público com ampla participação dos próprios interessados em condição paritária e sem delegação de responsabilidades a quaisquer escolhidos”.662

Amplia-se, assim, “a importância do processo, de sua estrutura normativa e, especialmente, dos princípios e regras dele institutivos, na medida em que deve ser assegurado um espaço-tempo racionalmente construído para a participação de todos os interessados na tomada de decisões”.663

Marinoni compartilha o entendimento de que, para além do procedimento, a legitimação da decisão judicial também se dá pelo seu conteúdo. Afirma que apesar de ser possível o estabelecimento, pelo procedimento, de alguns “critérios objetivadores da atuação judicial na compreensão do significado dos direitos fundamentais”, não há garantia de que “as decisões judiciais que neles se fundam sejam uniformes”.664 Assim:

[...] o juiz, para definir o conteúdo substancial de um direito fundamental, deve argumentar de modo racional com o objetivo de convencer. A inevitabilidade da racionalização da decisão através da argumentação, porém, não quer dizer que a legitimidade da decisão derive apenas da argumentação, e não do conteúdo dos direitos fundamentais. Ou melhor, a necessidade de argumentação não deixa de lado o conteúdo da decisão como fator de legitimação da jurisdição.

Não basta qualquer decisão. É preciso que a decisão se funde em critérios objetivadores da identificação do conteúdo do direito fundamental e que se ampare em uma argumentação racional capaz de convencer.665

Tem-se, assim, que o procedimento legítimo “é atrelado a valores que lhe dão conteúdo, permitindo a identificação das suas finalidades”, pois ele, à luz da presente teoria processual, “não pode ser compreendido de forma neutra e indiferente aos direitos

661 NUNES, Dierle José Coelho. Processo... Op. cit., p. 194. 662 Ibidem, p. 138.

663 Ibidem, p. 139.

664 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 454. 665 Ibidem.

fundamentais e aos valores do Estado constitucional”. Há de se ter em mente, porém, que esses valores “não são inteiramente pré-definidos em relação ao próprio processo”, uma vez que “eles têm seu sentido permanentemente construído e reconstruído no interior da mesma prática social à qual servem de fundamento”.666 Dierle Nunes defende:

[...] que o procedimento é constitutivo de todo o processo de decisão, de modo que para o aqui defendido processualismo constitucional democrático, a comparticipação e o policentrismo são institutivos de um processo normativamente disciplinado pelos direitos fundamentais, que garantirá uma formação adequada dos provimentos, sem que estes possuam conteúdos fixos predeterminados ao se aplicarem as normas (princípios e regras). Tal procedimento respeitará e fomentará a participação e contribuição de todos os envolvidos nas esferas decisórias.667

Ademais, é por meio da argumentação que o juiz poderá demonstrar a legitimidade do conteúdo da decisão, ainda que esta seja contra a decisão parlamentar (lei), mas a favor de um direito fundamental. A mola propulsora dessa relação é o conceito de democracia participativa, que introduz a discussão de todos os sujeitos participantes do processo judicial.

Ou seja, o valor democracia “age de forma instrumental durante todo o processo, refletindo particularmente sobre a necessária motivação das decisões judiciais”, que possibilita o correto exercício do Poder Judiciário frente à “garantia de controlabilidade externa e difusa sobre a justiça e a legalidade das decisões que resultam da atividade jurisdicional”.668 Tem-se, assim, que o valor da democracia no Estado Constitucional tem sua

expressão no processo por meio do princípio do contraditório, que se caracteriza como “valor- fonte da dialética processual”.669