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4.2 Delineamentos de uma nova ótica processual: racionalidade procedimental da

4.2.5 Relevância da argumentação jurídica no processo

Em vista dos apontamentos anteriores, ressalta-se que a correção da decisão é determinada pela razão, “a qual, por se tratar de uma correção normativa, deve ser a razão prática”. E, por envolver o processo judicial um discurso racional, a pretensão de correção somente se torna possível pela “argumentação jurídica”. Isso porque a “conexão entre o direito e a razão é um problema que envolve fundamentação judicial dos direitos

710 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 311.

711 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 413. 712 Ibidem, p. 427.

fundamentais e tal questão, embora não leve à obtenção de decisões com conteúdos determinados, abre espaço para a ponderação como forma de aplicação dos direitos fundamentais”.713

A preocupação que surge, nesse ponto, é que os princípios presentes nas Constituições contemporâneas, como normas a serem interpretadas no caso concreto, albergam valores e possuem conteúdos morais. Por isso, “há de se construir uma adequada metodologia para as decisões judiciais, calcada na racionalidade prática, preocupada em inibir subjetivismo e injustiças”. É possível, entretanto, o controle da legitimidade dessa nova ideia de jurisdição a partir de uma “motivação objetiva, clara e transparente”.714

Portanto, resta clara a importância da teoria da argumentação jurídica para a consolidação do modelo de processo jurisdicional democrático, pois a “função argumentativa está assentada na dialética”, como a arte do diálogo, “voltada a sopesar argumentos, confrontar opiniões e decidir com equilíbrio”.715

Ademais, a busca pela verdade do processo, considerada caso a caso e como valor a ser alcançado, “está ligada à ideia de motivação judicial como forma de controle das decisões emanadas do Poder Judiciário”.716 Cambi aduz que:

Assim, deve-se privilegiar a concepção pragmática da verdade, considerando-a como um produto do discurso jurídico, produzido intersubjetivamente. É obtida no decurso do conflito entre vários discursos, em um auditório de participantes competentes e razoáveis. A obtenção dessa verdade tem componentes subjetivos e objetivos, sendo obtida no curso do processo onde se assegura, às partes, plenas condições de participação (garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa), para poderem deduzir os melhores argumentos para convencer o órgão judicial de que têm razão e merecem a tutela jurisdicional. Compete, ao final, aos juízes dizer quais são os melhores argumentos para decidir quem deve obter a tutela jurisdicional.717

Para se evitar, porém, um “processo interminável de argumentação, com a impossibilidade de se obter uma ‘única decisão correta’, é necessário traçar uma linha-limite, não ideal”. Dessa forma, faz-se necessário adotar um conceito pragmático de argumento, no sentido de se descobrir qual o papel “que ele desempenha no interior de um jogo de argumentação, vale dizer, saber até que ponto pode contribuir para solucionar o problema da

713 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 288. 714 Ibidem, p. 309.

715 Ibidem, p. 320. 716 Ibidem, p. 323. 717 Ibidem, p. 322-323.

aceitabilidade ou não aceitabilidade de uma pretensão de validade controversa”.718 Nesse

sentido:

A motivação adequada e efetiva é aquela que contém justificações suficientes sobre as questões de fato e de direito, sendo, por isto, fundadas em “bons argumentos”. Estes devem ser considerados “bons” não somente para o juiz que profere a decisão, mas também por todos aqueles que possam valorar, posteriormente, as razões que formaram o convencimento judicial. [...] Dessa forma, pode-se afirmar que os argumentos são a expressão

pública da reflexão.

O processo judicial é um espaço polifônico, no qual diversas vozes se entrechocam e onde emergem vários pontos de vista sobre as questões em litígio. [...] Compete ao juiz organizar tais “falas” e transmitir, no momento da decisão, um discurso aceitável, capaz de se amparar nas “palavras da lei”.719

Pode-se afirmar, mais, que o juiz, ao se utilizar da teoria da argumentação jurídica para decidir, deve se responsabilizar por um discurso aceitável que encontre amparo na Constituição, que é o verdadeiro norte que se tem no atual paradigma.

Essa teoria tem ligação direta com o dever de motivação judicial, já inserto na própria Constituição Federal. Como já se demonstrou que o “Direito é uma obra hermenêutica, a ser constantemente interpretado e reinterpretado”,720 é preciso que os juízes motivem,

adequadamente, as decisões, para que aquele não se transforme em um instrumento arbitrário. Além disso, a motivação garante que os interessados “tenham a real dimensão do sentido atribuído, pelo Judiciário, aos direitos discutidos no processo judicial”, possibilitando a impugnação da decisão por meio de recursos, bem como o controle democrático do exercício do poder.721 Nas palavras de Eduardo Cambi:

[...] não é qualquer decisão que deve ser aceita socialmente como forma de exercício do poder. Deve-se, pois, buscar a legitimação social da decisão judicial, não podendo o juiz se esconder atrás da suposta neutralidade da norma. Concretizar os direitos fundamentais não é o mesmo que transformar juízes em legisladores. Por isto, para além de princípios, e regras, deve haver uma teoria da argumentação jurídica, na qual seja possível buscar uma

decisão racionalmente fundamentada.722

No processo jurisdicional democrático, pois, “é a justificação racional da decisão interpretativa que assegura que a interpretação não foi arbitrária”. Essa garantia de

718 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 336. 719 Ibidem, p. 336-337.

720 Ibidem, p. 338. 721 Ibidem, p. 338. 722 Ibidem, p, 338-339.

“correção” da decisão, no sentido de ser uma decisão aceitável racionalmente e apoiada em um discurso jurídico, por meio de uma “fundamentação que se desenrola argumentativamente”, torna-se uma “precondição da própria legitimidade do exercício do poder”.723

A teoria da argumentação jurídica, pela qual se fundamentam as regras do discurso, é vista como uma “teoria processual de correção prática”, pois uma norma será tida como correta e válida se for resultado de um procedimento em que se realiza um discurso prático racional.724

Portanto, concebendo-se que o Direito não se resume às leis positivadas, mas que engloba também a norma do caso concreto, tem-se que o “direito vivente” compreende os momentos do texto e do ato, pois a norma derivada “da aplicação das regras gerais e abstratas a casos reais” se dá mediante a hermenêutica jurídica, pela qual o juiz obtém a norma adequada ao caso concreto. Desta feita, é a argumentação jurídica que se realiza da interpretação do ordenamento jurídico como um todo, a fim de se efetivar direitos, e não as normas em si consideradas, que produz o chamado direito vivente.725

Em suma, importante transcrever os dizeres de Eduardo Cambi sobre argumentação e motivação no processo judicial:

A teoria do discurso jurídico não é uma máquina capaz de produzir

respostas exatas e objetivas ou de atribuir pesos definitivos aos direitos, mas apenas mostra que são possíveis deduzir argumentos racionais sobre os direitos. Aliás, quando se argumenta, se o faz para alguém; por isso, quem argumenta dialoga. Assim, a argumentação jurídica está condicionada ao

auditório, ao qual se dirige o diálogo. Logo, a argumentação a que se dirige o diálogo depende da época e do lugar, dos níveis e dos ambientes de compreensão, porque envolve a comunicação e a compreensão da mensagem. Portanto, não se argumenta em definitivo, posto que não há soluções infalíveis para problemas práticos.

O discurso racional, ao incluir a questão da tutela dos direitos fundamentais, torna possível estabelecer critérios objetivos para a aproximação entre o direito e a moral. Os juízes devem levar a sério a Constituição, não permitindo que os direitos fundamentais se tornem promessas constitucionais não cumpridas.726

Assim, a Constituição, apesar de não poder transformar todos os direitos em realidade de forma imediata, vincula “os juízes, que devem fundamentar suas decisões em standards

723 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 341. 724 Ibidem, p. 343.

725 Ibidem, p. 342. 726 Ibidem, p. 346-347.

jurídicos objetivos, sem que, destarte, ajam arbitrariamente ou possam vir a se colocar no lugar dos legisladores”.727

É fato que esse novo conceito de aplicação do direito material causa uma “erosão do Direito positivo”, que é ultrapassado pelos juízes e pelas partes. Isso pode, caso não utilizado com razoabilidade, se tornar “uma arma perigosa a serviço do arbítrio”. Não se pode, porém, encarar essa evolução como um abandono do Direito codificado, relegando-se a lei a segundo plano, pois esta continua a ter uma aplicação forte em grande parte dos casos. Nesse sentido, a nova realidade retrata-se no abandono de falsas certezas com relação a todo o direito, inclusive ao processo civil, e com isso uma mudança de mentalidade e uma visão dotada de coerência jurídica.728 Conforme elucidativo entendimento de Zaneti:

Para acompanhar a natureza das coisas, o jurista precisa reeducar sua forma de pensar, reformar seu pensamento, adequando-o ao modelo do estado Constitucional Democrático Pluralista de Direito que foi implantado em 1988, cerrando um círculo evolutivo de democratização crescente do direito brasileiro, começado pelo sistema positivado na Constituição (a chamada constitucionalização do direito), já bastante reconhecida no direito civil, no direito penal, no direito processual penal, mas não bem aplicada ao processo civil, em toda a sua potencialidade.

No processo, como se observou, o jurista vê tendencialmente um direito processual constitucional e um direito processual infraconstitucional, identificando-se o chamado “paradoxo metodológico”.

As características desse círculo evolutivo já foram descritas: a formação de um processo constitucional como método de controle judicial do poder e garantia de participação das partes na formação dos atos decisórios (módulo processual); a necessária aplicação, a esse quadro, de uma racionalidade prática procedimental, única capaz de traduzir em espaços democráticos de participação os mecanismos predispostos pela Constituição; a falência da departamentalização dos poderes e o reconhecimento da função política do Poder Judiciário como uma necessidade nos Estados constitucionais; a circularidade dos planos do direito, implicando uma relação biunívoca entre o direito material e o direito processual, com a constante abertura ao “problema” pelo direito (tópica).729

Como conclui Hermes Zaneti Júnior, o que ainda falta no direito processual é superar a ideologia do Código de Processo Civil de 1973, que fez do processo um instrumento puramente técnico. Precisa, assim, ter uma filosofia que não seja a de um discurso abstrato, mas “a filosofia do ‘pensar certo’ (contextualizar, problematizar, agir)”, pois processo não é pura técnica, e nem técnica é um fim em si mesmo.730 O processo como técnica deve ser visto

727 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 347.

728 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 252. 729 Ibidem, p. 252-253.

como caminho, colocado à disposição da sociedade para se atingir o bem-estar e a paz social. Nesses termos, no constitucionalismo contemporâneo, em que se tem “a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais”, além da consolidação de uma “nova hermenêutica”, o processo deixa de ser visto “como fenômeno técnico, voltado para atender aos anseios do mercado e vinculado à proposição liberal”, para se tornar um instrumento democrático na medida em que pode “auxiliar na formação de uma sociedade democrática e inclusiva”.731

Marinoni conclui seu pensamento afirmando que o processo é procedimento e, dessa forma, pode ser visto como instrumento, mas no sentido de “módulo legal ou conduto com o qual se pretende alcançar um fim, legitimar uma atividade e viabilizar uma atuação”, ou seja, “é o instrumento através do qual a jurisdição tutela os direitos na dimensão da Constituição”.732 Define, pois, que o processo:

É o módulo legal que legitima a atividade jurisdicional e, atrelado à participação, colabora para a legitimidade da decisão. É a via que garante o acesso de todos ao Poder Judiciário e, além disto, é o conduto para a participação popular no poder e na reivindicação da concretização e da proteção dos direitos fundamentais. Por tudo isso o procedimento tem de ser, em si mesmo, legítimo, isto é, capaz de atender às situações substanciais carentes de tutela e estar de pleno acordo, em seus cortes quanto à discussão do direito material, com os direitos fundamentais materiais.733

Sinteticamente, nesse processo constitucionalizado e democrático, desenvolvido no âmbito de um sistema dialético, que garante uma “racionalidade procedimental” discursiva e argumentativamente construída em contraditório, prioriza-se, de um lado, o direito das partes de participarem da construção da decisão jurisdicional e, de outro lado, o dever do magistrado de fundamentar essas decisões, demonstrando racionalmente que as alegações das partes foram consideradas e, com isso, possibilitar o controle da sociedade e legitimar sua atuação.

4.3 Processo jurisdicional democrático como instrumento limitador do poder e