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4.2 Delineamentos de uma nova ótica processual: racionalidade procedimental da

4.2.4 Círculo hermenêutico da jurisdição

É nesse contexto que se desenvolve a tese de Hermes Zaneti, para quem o atual modelo deve superar o paradigma legalista, uma vez que “é característica do processo volatilizar a certeza do direito material”. Ou seja, “o direito discutido no processo é sempre incerto, é sempre ‘problemático’”, não podendo ser considerado como uma verdade imutável. Isso porque “entre processo e direito material ocorre uma relação circular” — um círculo hermenêutico.698

Na definição de Eduardo Cambi, o “círculo hermenêutico é um método interpretativo que significa que não se pode compreender o todo sem as partes, e vice-versa, pois a parte é tão determinada pelo todo como o todo pelas partes”,699 sendo que essa compreensão deve ser

feita em um contexto já pré-concebido. O círculo hermenêutico conecta, em um intercâmbio, fatos e normas em um mesmo processo interpretativo, pois “a norma abstrata e indeterminada somente será definida pela realidade factual, e, a realidade factual, pela norma nos seus sinais característicos relevantes”.700

Verifica-se aqui a importância dos influxos do giro linguístico no Direito. Realmente, “a interpretação é uma operação de caráter linguístico, realizada em um contexto histórico- social”. Essa interpretação, pois:

[...] Está condicionada pelo contexto, conquanto se efetua em condições sociais historicamente caracterizadas, as quais determinam usos linguísticos, decisivamente operantes na atribuição do significado. A mediação

semântica, realizada pelo intérprete, na atribuição do significado, não depende da descoberta de “vontades” pré-determinadas. Tais vontades somente podem ser levadas em consideração em um processo de

697 MITIDIERO, Daniel. Op. cit., p. 76-77.

698 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 205-206. 699 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 286-287.

interpretação, limitado pelo espaço linguístico dos conceitos ou das palavras, suscetíveis de alteração do próprio contexto.701

É a partir desse processo hermenêutico que é possível ao juiz exercer a jurisdição, com base no novo conceito desta. Como esclarece o autor:

Em outras palavras, como um texto normativo é suscetível de comportar vários significados (plurisignificatividade), o juiz, ao interpretá-lo ou determinar o significado objetivo deste texto, no contexto dos fatos constantes no caso concreto, exerce uma liberdade de opção ou, em termos pragmáticos, opera uma decisão, construindo e aplicando a norma particular (“regra de decisão”). O produto da interpretação é a norma jurídica. Para chegar a ela, o juiz parte de um problema que foi colocado pelas partes, no processo judicial, mas que também encontra, no julgador, uma “pré- compreensão”, tanto da realidade existencial quanto do texto a ser interpretado. É este pensar conjuntamente a realidade e o texto, propondo-se a precisar o sentido da “norma-produto” (“regra de decisão”), que constitui o

círculo hermenêutico.702

No mesmo sentido Luiz Guilherme Marinoni pontua que:

Atualmente, para a aplicação da lei, diante do pluralismo que caracteriza a sociedade contemporânea [e constante transformação dos fatos sociais], é imprescindível compreender o caso concreto. É preciso, antes de aplicar a lei, atribuir sentido e valor ao litígio. Ou seja, a jurisdição não mais se limita a tornar a lei — abstrata e genérica — particular quando da resolução do caso concreto, pois necessariamente deve atribuir sentido ao caso concreto para interpretar a lei e solucionar o litígio, exatamente por ser indiscutível que a sociedade e os casos concretos não podem ser regulados sem se considerarem suas especificidades.

A necessidade de compreender o caso litigioso, interpretar a lei e controlar a constitucionalidade a partir dos direitos fundamentais não permite que se diga que a jurisdição continua a ter a função de atuar a vontade da lei.703

Disso resulta que a lei (direito material), como resultado da atividade legislativa, não é por si só expressão de justiça, isto é, da ratio essendi dos direitos fundamentais. A norma é abstrata, sem vontade constante e dependente do caso concreto, o que demanda uma complexa tarefa hermenêutica “para deixar de ser um enunciado vazio, capaz de múltiplas e contraditórias alternativas de solução”.704 Assim, “a função dos intérpretes em geral e do

701 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 287. 702 Ibidem, p. 333.

703 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso... Op. cit., p. 411. 704 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 287.

Poder Judiciário, em especial, não é, tão-somente, descrever significados, mas reconstruir sentidos, para aplicar o ordenamento jurídico ao caso concreto”.705

Nesses termos, como a norma do caso concreto passa pela certificação do Poder Judiciário, “o processo serve ao direito material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele”.706 Entretanto, o fato de o processo ser instrumental não o torna servil ao

direito material, pois entre eles existe um nexo de finalidade, considerando que “o processo lida com a aplicação do direito, com a busca da justiça e não só com a lei, espécie de ‘justiça’ previamente estabelecida pelo legislador para casos-tipo”.707

Em outras palavras, toda vez que um direito é posto em juízo, transforma-se em expectativa, ideia inicialmente trabalhada por James Goldschmidt. Esta é maior ou menor, a depender do tipo de norma afirmada, se regra ou princípio, o que torna diferente a intensidade do ônus argumentativo. Desta forma, “é no discurso judicial com a participação das partes e do julgador, com a sua colaboração (pretensão de correção) na interpretação dialógica, que se dá o sentido e significado, ora de regra, ora de princípio, ao dispositivo afirmado”. Portanto, é na conjunção dos três sujeitos processuais que se tem “um sentido reconstruído de interpretação”.708 Zaneti aponta que:

Com isso, o papel do juiz aumenta de responsabilidade e poder, pois deverá atuar para a densificação desses princípios e cláusulas, rompendo com a estrutura estanque da divisão de poderes anteriormente pensada. O aspecto virtuoso está justamente na potencial adaptação desses novos diplomas e institutos jurídicos à realidade concreta do direito, uma adaptação garantista na realização dos objetivos constitucionais.709

A tarefa atribuída ao juiz intérprete, que, inclusive, precisa lidar com o conteúdo moral das normas, deve levar em conta que nenhum magistrado, como ser humano e integrante de uma sociedade, é neutro, por possuir sua pré-compreensão ou “arraigadas concepções morais, filosóficas, religiosas ou políticas”. Desta feita, no Estado Democrático de Direito, o juiz deve ter um autoconhecimento e uma autocrítica.

Demais disso, nessas condições o juiz passa a ser um sujeito empírico, que analisa sua relação consigo, não mais relacionando mecanicamente o sujeito e o objeto, e decide a partir dos instrumentos científicos de que se serve, da comunidade que integra e da sociedade de que é membro. Eduardo Cambi leciona que:

705 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 290. 706 Ibidem, p. 205-206.

707 CAMBI, Eduardo. Op. cit., p. 222.

708 ZANETI JÚNIOR, Hermes. Op. cit., p. 231-232. 709 Ibidem, p. 251.

A ciência jurídica reflexiva parte do pressuposto de que o sujeito e o objeto são, mutuamente, construídos. A verdade não está no objeto — na lei — a ser revelada pelo Judiciário. A ciência jurídica reflexiva permite: i) verificar que o direito é um fenômeno cultural, não sendo possível aplicá-lo com

neutralidade, devendo seus operadores, diante da existência de mais de uma opção de valor, tomar posições e estarem conscientes da opção tomada; ii) construir novas práticas transformadoras dos aplicadores do direito; iii) aprofundar o conhecimento dos sujeitos processuais e de todos os partícipes do processo de concretização das normas jurídicas, buscando saber qual o papel social que podem desempenhar em um dado momento histórico; iv) ampliar a capacidade do direito, como instrumento de poder, de produzir conhecimento válido e socialmente legítimo.710

Com isso, conforme lições de Marinoni, “o processo deixou de ser um instrumento voltado à atuação da lei para passar a ser um instrumento preocupado com a proteção dos direitos”, pois “o juiz, no Estado constitucional, além de atribuir significado ao caso concreto, compreende a lei na dimensão dos direitos fundamentais”. Sendo assim, considerando o poder estatal de dar proteção aos direitos, não se pode ignorar a dimensão de legitimidade democrática. E, “a legitimidade do exercício do poder, nas democracias, se dá através da abertura à participação”.711

Realmente, diante do conceito diverso de jurisdição no Estado constitucional, o processo “tem de ser estruturado não apenas consoante as necessidades de direito material, mas também dando ao juiz e à parte a oportunidade de se ajustarem às particularidades do caso concreto”. Por isso, “o processo, atualmente, é o próprio procedimento. Mas não apenas, como quer Fazzalari, o procedimento realizado em contraditório — até porque essa exigência é óbvia e inegável —, mas igualmente o procedimento idôneo às tutelas prometidas pelo direito material e à proteção do caso concreto”.712